Enquanto íamos para a minha casa, percebi o quanto “a garota da cânula” era legal. Ela falara que eu não dirigia bem, e realmente, não dirijo...
— Fui reprovado três vezes e na quarta o cara teve pena de mim... — Afinal, eu era um pobre garoto sem uma das pernas e que dirige de forma esquisita, eu sei, porém não era considerado um perigo para a sociedade.
Ela me olha de um jeito estranho, mas logo não aguenta e solta um sorriso, um lindo sorriso por sinal... — Acho que foi mais um caso de privilégios do câncer. — ela diz.
— É... — digo passando a marcha e dando uma pequena arrancada, o que fez ela rapidamente se segurar no banco.
Um silêncio paira no ar até que ela se prontifica a quebrá-lo.
— Então, você estuda? — pergunta Hazel arqueando a sobrancelha.
— Estudo. — respondo — Na North Central. Mas estou atrasado um ano, dei uma parada no segundo; E você?
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — Uau!
Hazel me contou o “histórico” de sua doença, diagnosticada com câncer em estágio IV aos treze anos. Ela passou por uma cirurgia, radioterapia, quimioterapia... Tudo na tentativa de tratamento.
“Nossa, essa garota é uma guerreira, mas não deixa de estar quase morrendo.” — pensei. Mas claro que eu tinha que animá-la, não ao contrário.
— Então você precisa voltar a estudar! — incentivei.
— Na verdade, não dá. — ela me olha um tanto cabisbaixa. — Porque já peguei meu certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no MMC. — Faculdade comunitária que tem na cidade.
— Uma universitária. — brinquei — Isso explica a aura de sofisticação...
Eu sorrio, e ela empurra meu braço correspondendo o sorriso. O toque de sua mão, por mais agressivo que fosse me agradava, afinal, o que não me agrada nessa garota? — Nada! — pensei.
Ao virarmos a esquina de minha rua cantando pneu, Hazel arregala os olhos assustada e se tranquiliza assim que estaciono o carro na garagem.
— Ufa, estamos a salvos! — ela caçoa da minha cara.
— Claro, enquanto estiver sobre os meus cuidados, Hazel Grace... — eu pauso e ela arqueia a sobrancelha esperando o desfecho da frase. — Você sempre estará bem. — Concluo.
Entramos e ela me segue, assim como se faz as pessoas tímidas ao entrarem pela primeira vez na casa de alguém. Ela logo repara as frases espalhadas por toda a residência.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos. — explico, com receio dela achar isso um tanto bizarro. — Estão por toda parte.
— Percebi. — ela sussurra achando que eu não conseguiria ouvir, mas é, eu ouvi.
***
Meu pai me chama e eu vou até ele e como sempre estão escrevendo mais uma daquelas frases.
— Esta é Hazel Grace. — eu disse esticando o braço direito em direção a ela.
Ela me olha timidamente, se ajeita e responde:
— Só Hazel.
Houve aquela troca de cumprimentos e as mesmas perguntas que são feitas quando conhecemos alguém. E eu observo pra ver até onde isso iria chegar.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac? — minha mãe pergunta enquanto coloca frangos nas tortilhas e meu pai os enrolava e botava num pirex.
Pensei em uma resposta adequada.
— Foi inacreditável. — respondi.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres. — minha mãe adverte. — Hazel, você gosta de lá?
Até eu sabia a resposta, mas parecia que ela queria agradar meu pais, o que era bom, muito bom!
— A maioria das pessoas é bem legal. — Hazel responde.
— Foi exatamente o que achamos das famílias do Memorial quando estávamos no meio do tratamento do Gus. — meu pai se pronuncia — Todo mundo era gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as melhores pessoas na sua vida.
Aproveito a situação e faço uma piadinha.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa virar um Encorajamento. — digo e logo percebo que meu pai não gostou. Então, eu passo meu braço por trás de seu pescoço e digo:
— Só estou brincando pai. Eu gosto desses malditos Encorajamentos. — tento aliviar a situação — De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. — Ele me olha e revira os olhos logo em seguida.
Minha mãe pergunta se Hazel irá ficar para o jantar e ela diz que provavelmente ficará, mas que tem de estar em casa as dez e que não come carne.
Eu não entendo o porquê e pergunto:
— Os animais são fofos demais?
— Quero diminuir a quantidade de morte pelas quais sou responsável.
Vieram várias coisas na minha mente e pensei em dar meu parecer, mas me calei, achei mais oportuno. Minha mãe tinha que puxar assunto novamente e eu já não via hora de assistir o filme e sair daquela situação.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
— Obrigada. — Hazel agradece.
É estranho, eu sei, mas ela chama a minha atenção de uma forma inexplicável. Há uma sintonia entre nós, parece que já nos conhecíamos.
— A Hazel e eu vamos assistir ao “V de Vingança” para que ela possa ver a doppelganger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século vinte e um.
— A sala é toda de vocês — meu pai faz um gesto abrangente todo alegre.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão.
Meu pai ri.
— Boa tentativa. — Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace. — questiono.
— Só Hazel. — ela insiste.
— Então, mostre o porão para a “Só Hazel’. E depois volte aqui para cima e assista ao filme na sala de estar.
Eu bufo, me equilibro na perna e giro o quadril, jogando a prótese para a frente. Apesar de não satisfeito, concordo.
Descemos as escadas, ela passava o olhar nas minhas prateleiras lotadas, com meus troféus, simbolizando jogadas como saltos com arremesso, driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis.
Logo, me sinto obrigado a explicá-la o porquê de ter aquilo tudo.
— Eu jogava basquete. — explico.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esse tênis e essa bola são privilégios do câncer. — vou até a TV, onde estão guardados os DVDs e videogames e logo encontro o “V de Vingança”.
Eu falo em como eu me sentia ao jogar basquete e sobre os atletas que praticam corridas com obstáculos e reparo algo estranho nela. — Está tudo bem? — pergunto um tanto preocupado.
Ela havia se sentado na beira de minha cama e naquele instante me dou conta que a mesma está toda revirada, o que é muito vergonhoso quando se recebe a visita de uma garota.
— Tudo bem. — ela responde — Só estou prestando atenção em você. Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e o “dia D”. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando agora.
Hazel balança a cabeça dando a entender que está concordando com tudo que estou dizendo. Esse geste me fez admirá-la cada vez mais, não pelo gesto em si, mas pela forma que ela me olha, ou que ajeita o cabelo de príncipe colocando-o atrás da orelha, da sua doce voz e até mesmo da sua respiração dificultosa, o que é ruim, mas é a sua marca. E eu adoro isso. Estou sorrindo com meus próprios devaneios e ela corta logo o silêncio.
— Você tem irmãos?
— Hein? — acordo do transe.
— Você falou algo sobre crianças enquanto me explicava sobre o basquete...
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas elas são mais velhas. Elas têm… — Não me recordo e recorro ao meu pai em busca de resposta. — PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito! — ele grita lá da sala.
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E você, tem irmãos?
Ela movimenta a cabeça negativamente.
Me sinto um pouco mal por só falarmos de mim, ou de minha família, ou de algo que eu tenha feito... E ela sempre concordando e não me dizendo nada as coisas que faz.
— E aí, qual é a sua história. — sento-me ao lado dela.
— Já contei minha história pra você. Fui diagnosticada quando...
— Não, não a história do câncer. — não é possível que ela só fale disso. — A sua histórias, seus interesses, passatempos, paixões, fetiches e etc.
— Hmm. — ela pensa em uma resposta.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto. Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Ela mantêm o silêncio, o que me faz achar que sim, ela deixou o câncer interferir a vida dela, mais que o normal.
— Não tenho nada de extraordinário. — ela se manifesta.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça. — Impossível uma garota tão interessante não ter nada de extraordinário. — penso.
— Hmm, ler? — ela palpita.
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos e ficção pretensiosa, poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace, você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros maneiros com M maiúsculo, não lê? — pergunto curioso.
— Acho que sim. — ela responde, me parece um pouco duvidosa.
— Qual é o seu livro favorito? — insisto.
— Humm — murmurei.
Novamente ela parou pra pensar e fiquei esperando pela resposta assim como espero ansiosamente pela lasanha da minha mãe. Hmmm, só de lembrar me sinto faminto.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial — ela disse.
— Tem zumbis? — pergunto, sou louco por zumbis.
— Não — ela responde.
— Stormtroopers?
Ela balança a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro. — ela diz um tanto sem graça
Eu sorrio. E penso: por que não lê-lo? Posso conhecê-la melhor através dessa leitura.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que não contém stormtroopers — prometo. Viro-me para uma pilha de livros na parte de baixo da mesa de cabeceira. Pego um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na primeira página, falei: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Estendo o exemplar de “O preço do alvorecer”. Ela ri, e o pega logo em seguida. Nossos dedos se tocam e eu acabo segurando minha mão. — Fria — eu disse, apertando com o dedo o seu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — ela diz.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — eu disse, e me levanto e a puxo, na intenção de trazê-la comigo.
***
Vimos o filme, Hazel em um lado do sofá e eu do outro. Ela ocupou o lugar vago com seus braços o que me deu um receio de me aproximar e deixá-la desconfortável, eu sei que eu sou o homem e que eu devia ter feito alguma coisa, mas eu queria dar um espaço pra ela, afinal teremos outras oportunidades. Érr, eu espero.
Após o filme, meus pais nos serviram que comemos pelo sofá mesmo, e não poderia de comentar, estavam uma delícia.
Não havia mais assuntos, e eu precisava mudar isso, já estava ficando zonzo com os créditos do filme.
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — ela responde, mesmo achando que ela não gostou muito.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — ela disse.
Logo, levanto-me do sofá e procura as chaves do carro. Minha mãe se senta ao lado dela e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Ela olha fixamente para o Encorajamento acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos reconhecer o prazer? (O Encorajamento que meu pai estava fazendo mais cedo).
— É — Hazel disse. — Um pensamento agradável.
Hazel foi dirigindo meu carro até sua casa, e eu, bom, fui no banco de carona, ela disse que ficou bem melhor ali e rimos com isso. Coloco algumas músicas que amo da banda The Hectic Glow, mas ela não conhecia nenhuma delas.
Eu olhava o seu carrinho de oxigênio, e pensava como deveria ser andar com aquilo ao seu lado, pra cima e pra baixo, ou pra qualquer lugar que você fosse. Não que eu quisesse ter um, afinal, de estranho já basta minha prótese. Mas era isso que eu achava interessante, ambos tínhamos algo esquisito, o que nos tornara perfeito um para o outro.
Chegamos, ela estaciona o carro e eu desligo o rádio. Sinto uma enorme vontade de beijar aqueles lábios que aparentavam ser quentes e sedutores, ela me olha fixadamente e eu faço o mesmo.
— Hazel Grace. — Digo e seus olhos brilharam ao ouvir seu nome — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — ela responde
Ela fica envergonhada, mas continua a me olhar.
— Podemos nos ver de novo? — pergunto, e sim, eu estava nervoso. Como assim Augustus Waters, o galanteador, estava nervoso!
Ela sorri.
— Claro.
— Amanhã? — tento não parecer desesperado.
— Paciência, Gafanhoto — ela disse. — Assim vai parecer que você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei “amanhã”. Quero ver você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa parte do dia de amanhã.
Ela revira os olhos.
— Estou falando sério — confirmo, pra ela não achar que é brincadeira ou coisas de um conquistador.
— Você nem me conhece direito. — Ela pega o livro de dentro do console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — digo.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no livro.
Eu quase não acreditando no que ouvi, solto um sorriso, o mais bobo de todos.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
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