A livraria da cidade alta de Igniva era um local tão respeitável quanto qualquer estabelecimento dos arredores. Diz-se “respeitável” entre os abastados dali e “caro” entre os miseráveis que moravam pelo porto. Eric, um dos sócios da livraria e também um dos atendentes, preferia ficar no conforto de onde sempre esteve, diferente de alguns conhecidos que se “aventuravam” nos bordéis e bares de lá.
Eric, ao contrário deles, era um leitor ávido e tinha um gosto por ficções épicas e fantasia, coisa que demandava de si uma porção maior de sossego e silêncio. Ainda que fosse apegado aos livros, achava uma pena que a sessão de fantasia e contos heróicos de sua loja ficava cada vez mais abandonada agora que a clientela se interessava pelos romances dos folhetins semanais.
Os dias eram bem previsíveis na loja de livros, viam pessoas da alta sociedade de todas as idades, a maioria dos clientes fiéis aparecia sempre no mesmo horário. As terças eram os dias mais calmos, os que Eric escolhia para meter os pés sobre o balcão de madeira e colocar as leituras da universidade (ou do seu livro de cabeceira) em dia.
Nesta terça em particular, ele fez isso, e se distraiu, sereno, até que o som do sino da porta o despertou de seus pensamentos concentrados.
O que viu já lhe escapava à expectativa: uma figura masculina usando um longo sobretudo escuro. Parecia pesado ao andar, como se seus bolsos estivessem cheios. Ele tinha a pele dourada do sol, ombros largos, cabelos negros longos e uma carranca tão fixa à expressão quanto uma máscara seria. Sua presença fez Eric se sentir como um rato assustado, ele encolheu as pernas e se endireitou atrás do balcão, hesitando em cumprimentar o cliente peculiar.
— Boa tarde, senhor…
Eric tentou reconhecê-lo, em vão. O homem apenas se aproximou lentamente, preenchendo o ar da livraria com o cheiro forte de sua colônia. Seus olhos estreitos e cansados miraram Eric como duas escopetas engatilhadas.
— Aqui tem livros sobre monstros marinhos?
O ar que o jovem vendedor tinha engolido voltou e saiu leve entre os lábios entreabertos. Ele piscou, desacreditando da pergunta que o homem misterioso tinha feito.
— Monstros marinhos? Ficção, você quer dizer?
O homem de preto riu uma gargalhada engraçada e meio maldosa.
— Existe algo sobre monstros marinhos que não seja ficção? Se tiver, vou querer também…
Eric o olhou com curiosidade, seu olhar perdeu o foco novamente, indo de seus olhos sombrios para seu vestuário incomum. Mas não demorou. A sessão de ficção fantástica era a sua preferida, tinha a organizado não tão longe do balcão; embora se sentisse um pouco intimidado pela presença estranha, não foi tanto esforço, dar alguns passos e lhe mostrar a prateleira. A maioria dos livros ali tinham a capa de couro ou camurça azul.
— Você é uma visita incomum aqui na loja, como se chama?
Por alguns instantes, Eric ganhou nada mais que um jogo de sobrancelha e um olhar desconfiado.
— Sou o Sr Lee. Pelo menos para você que parece mais jovem.
— Eu… Tenho 24 senhor.
— Parabéns. Você parece a sua idade. — O dito Sr Lee soou vago e lançou o olhar para os livros, tomou um na mão e interagiu com seus lados. Depois devolveu e saiu vendo os títulos dos outros. — Pode me dar um momento?
— Claro… Sr Lee.
Eric voltou para o balcão, mas não conseguiu ignorar aquela presença que atraía sua atenção. Seus passos, apesar de parecer pesados, pareciam extremamente calculados, seus gestos todos lentos demais, pacíficos demais enquanto ele tomava mais um livro nas mãos calejadas. Pegou “O Kraken” e depois “Lendas de Atlântida” e por um momento o Sr Lee pareceu pertencer bem mais àquelas ficções que à realidade. Seria ele um…?
— Quanto por esse? — O homem indagou, lhe mostrando a capa do livro “Mistérios da Sétima Profundeza”. Eric piscou um instante.
— Oitenta.
— De cobre?
— Não. Prata.
A resposta o fez devolver o livro para a prateleira e dar alguns passos para longe dali. Eric se decepcionou, mas não porque ele não ia comprar o livro.
— Quais os horários em que a loja fica aberta? — O Sr Lee perguntou, havia um tom malandro em sua voz. Mesmo assim Eric lhe deu um pequeno cartão com os horários de funcionamento. — Obrigado… Senhor?
— Só Eric, por favor.
— Obrigado. Eric. — E sorriu, com um fio de cabelo rebelde invadindo seu belo rosto.
.
Na semana seguinte, o estranho Sr Lee apareceu todos os dias para repetir o mesmo ritual de pegar o livro “Mistérios da Sétima Profundeza” e se sentar numa poltrona final do corredor. Não tinha modos, Eric percebia, se sentava espalhado, com as pernas bem abertas e mascava chiclete enquanto lia. Mesmo assim, seus dedos gentis não deixavam amassar uma página sequer. Como podia haver gentileza na brutalidade? Beleza no mistério? Eric entendeu, depois de mais um dia recebendo a mesma visita, que o Sr Lee havia resolvido usar sua livraria de biblioteca.
Eric permitiu que prosseguisse, apesar do que fariam outros sócios. E não fez isso apenas por achar que o Sr Lee não tinha condições de comprar o livro que tanto queria devorar, mas por que tinha muita curiosidade no interesse que o homem demonstrava naquela sessão. E alguns pensamentos sobre ele, mesmo de longe, começaram a se tornar conclusões.
Nessa terça da manhã seguinte, Eric usou o pretexto de limpar as prateleiras para se aproximar do incomum leitor, que agora usava a mesa de canto e um diário de folhas envelhecidas para fazer anotações sobre o livro. Eric viu que ele avançava, chegando na metade.
O Sr. Lee estudava, mas quando viu a aproximação alheia, fechou seu diário.
— Por que lê tanto esse? — Eric perguntou, em tom manso — É um artista?
O homem parou a leitura e olhou para o jovem vendedor; pela primeira vez o estranhava de verdade. Sorriu, e algo no seu sorriso transmitiu desconfiança e uma curiosa camada de empolgação.
— Depende do que você considera como arte.
— Pensei que podia ser um artista desses fugidos, meio perturbados. — O jovem respondeu, perdendo o jeito.
O Sr Lee pareceu ofendido com isso e cruzou as pernas, deixando o livro de lado de vez.
— Como chegou nessa conclusão, querido amigo?
Eric sentiu o sarcasmo adoçando as palavras recém ditas do moreno, mas não deixou de sorrir ao ser chamado daquela forma.
— Bem, me desculpe a intromissão, primeiramente… É que você tem dedos bem calejados e vejo que trabalha no sol. Está procurando temas tão lúdicos, eu sugeriria que é um escultor, pesquisando o tema da próxima obra de arte a ser exibida em praça pública.
O Sr Lee sorriu e sua feição irônica congelou até sua imagem parecer um retrato de si mesmo. Conseguia perceber em Eric uma certa atuação, uma mentira mascarada pelo seu sincero interesse. As mãos envergonhadas de Eric buscaram o esconderijo nos bolsos não muito depois de ter sido examinado.
— Certo… É uma boa observação. — Foi tudo o que o Lee disse.
— Mas não é isso. — Eric insistiu.
— Não.
— Então… É um marinheiro?
— Se quiser chamar assim…
Foi quando a máscara do jovem vendedor caiu de vez e o Sr Lee pôde percebê-lo bem claro.
— Um simples marinheiro não tem tempo para leituras.
Sangyeon ergueu o queixo pronunciado e conteve um sorriso desafiador de ser visto por aquele que ainda não sabia o seu famoso nome. Ou será que já? Teriam sido eficazes os retratos falados e as descrições em colunas de jornais? Na cidade baixa isso nunca foi preocupação, mas ali poderia ser.
Quebrando todas as expectativas que ele poderia ter naquele instante, Eric deu as costas e saiu examinando a prateleira de livros mais uma vez.
— É uma pena que tenha pulado alguns livros tão bons, mas talvez deva ser melhor começar pelo óbvio — Eric provocou. Suas mãos alcançaram “O Kraken” de capa escura e textura suave — Você não é escultor, muito menos escritor. Mas quer ser o próximo a relatar uma história assim.
E mostrou o livro para o outro, que agora se levantava e se aproximava, numa lentidão tensa. Eric continuou.
— Mas você não acredita no Kraken, né? — Eric riu e esperou a reação do outro. Nada além de uma nuvem escura. — É… Talvez ele seja grande demais para ser enfrentado.
E devolveu o livro para a estante.
— Atlântida parece um desafio à sua altura… Ou seria, se você e seus homens soubessem respirar debaixo d’água!
Sangyeon riu e negou, incrédulo do próprio divertimento. Eric olhou para o livro cuja história interessava mais ao homem.
— Mas… Sereias? Elas parecem mais fáceis para você, porquê?
— Você realmente já leu tudo isso? — O Lee tentou desviar o assunto e apontou para a prateleira novamente, mas os olhos de Eric estavam vidrados nas páginas amarelas, aquelas que ele mesmo já tinha percorrido as mãos curiosas.
— Você sabe que tem lá né, Sr Lee? A Canção das Marinhas…
Sangyeon ficou estático e Eric arregalou os olhos quando o entendimento criou forma em sua mente efervescente. Seus lábios carnudos se entreabriram para sugar o ar que se transformaria num grito de exclamação, mas o indicador certeiro do pirata os selou antes que o pacífico silêncio da livraria fosse quebrado.
— Shh… Você sabe demais, garoto.
Os olhos redondos de Eric eram uma piscina de empolgação e, agora, medo. Uma mistura incomum aos seus dias, esses tão monótonos que ele tinha esquecido o quão rápido seu coração podia bater.
— Lee Sangyeon — Eric sussurrou como o segredo que era, de fato. O outro assentiu devagar. — Eu não vou contar para ninguém.
— É assim que funciona — Sangyeon respondeu, sorrindo sacana. Estava perto do outro, seu dedo indicador deslizando pelo seu rosto angelical até cair no espaço entre eles. Que era pouco. Eric teve uma curta visão de suas tatuagens que escaparam pela gola quando se moveu para tomar o livro sobre Atlântida da mão de Eric e devolvê-lo para a estante. — Eu sei que você vai ficar quieto, até porque não sabe nada além do meu nome…
Eric moveu apenas as íris castanhas para os cantos dos olhos quando encarou o livro na mesa ao lado. Sangyeon bufou, impaciente.
— Certo, talvez um pouco mais.
— Eu não vou entregar você. Na verdade eu até…
— Até?
— Até te admiro…
Eric desviou o olhar para não encarar a verdade que ainda lhe atingia com a impressão de uma fantasia indecente e seu coração disparou como se tivesse vivendo uma aventura, apenas por estar em sua companhia.
— Você já é assunto em muitos portos. Se tivesse lido “Relatos do Mar Aberto” teria entendido. Você é temido por que vai onde ninguém mais consegue.
O sorriso ladino de Sangyeon rasgava-lhe a face enquanto ele ouvia o fluir estranhamente confortável da fala de Eric.
— Por muito tempo achei que já estivesse morto… Mas não. Dizem que há algo mágico com você, que te deixa assim invencível. É verdade?
Sangyeon gostava de decepcionar aqueles olhos, vê-los brilhar em um suspense infinito. Senti-los sobre si mesmo enquanto lia, passivos, silenciosos. Sabia que aquela área da cidade alta estava segura para refúgio, era um lugar em que era um completo desconhecido, um maltrapilho qualquer. Mas não para Eric. Que jovem inteligente ele era… Nunca tinha conhecido outro aventureiro tão discreto.
— Você está romantizando essas lendas — Sangyeon desistiu da ideia de voltar a ler seu livro e suspirou, vendo o belo garoto a sua frente oscilando entre expressões de confusão e admiração. — Não há nada de extraordinário com o que você devia se importar.
— Já me importo. Por algum motivo, quero saber como vai ser. Quantos homens você vai levar. Quantos dias vai ficar em viagem. E quero que volte vitorioso, com um tritão mudo enjaulado — E apontou para a capa do livro alheio. — Eu acredito em tudo isso.
— É por isso que me deixou ficar? Por que você “acredita” em piratas? — Sangyeon bufou em zombaria e Eric se sentiu um pouco menor, mas com vontade de revidar.
— Não. Deixei porque eu tinha a impressão de que te conhecia. Queria descobrir. E bem… Essa era uma sessão tão solitária.
Sangyeon ergueu as sobrancelhas grossas.
— Está falando da livraria? Ou de si mesmo?
Eric ficou vermelho e soltou uma risada junto do ar de seus pulmões. Mas a reação se esgotou como uma chama efêmera e os dois voltaram a se encarar; um lendo o outro como um livro de contos de fadas.
— Você é bem mais bonito que nos retratos falados… — Eric murmurou. Foi a vez de Sangyeon virar o rosto e caminhar, sem jeito, ainda que tentasse disfarçar os próprios atos com uma forte dose da própria marra. Queria se distanciar dele, mas seu jeito certinho e sua insistência eram magnéticas. Era lindo com seu cabelo castanho bem penteado, seu perfume e os lábios volumosos.
As qualidades mais marcantes de Eric lembraram a Sangyeon que ele tinha um tipo.
— Mas que maldição… — O pirata murmurou e começou a andar de costas, relaxado. — Certo. Eu acredito em você. Mas saiba que uma ameaça é sempre uma ameaça.
— E eu sou só um livreiro.
— De fato.
Ambos soltaram o riso amigável e Sangyeon voltou para sua poltrona. A poltrona que tomara para si de forma silenciosa.
No dia seguinte, quando Sangyeon buscou pelo livro, notou que, em vez de jazir na mesma prateleira onde sempre o deixava, estava agora no balcão, sobre os braços de Eric. Ele, que quando o viu entrar, sorriu tão largo quanto podia. O pirata só não conseguiu perceber que ele tremia uma das pernas, um pouco nervoso além de aparentemente contente. Sangyeon apontou para o livro.
— Mudou de ideia? Vai me expulsar hoje? — Riu-se o pirata.
— Não… — Os olhos de Eric percorreram o lugar antes de parar na expressão atraente de Sangyeon. — Resolvi dar pra você.
O Lee ficou parado onde estava e bufou, seu gesto cético recorrente.
— O livro.
— Sim? Por que?
— Tenho certeza que a história é boa o suficiente para ser lida mais de uma vez. E também um pouco cruel de deixar esse exemplar aqui, não acha? Abandonado, inútil. Ficaria muito melhor com você, para ser relido religiosamente, como uma escritura sagrada.
— Bem… — O peito de Sangyeon relaxou e ele se aproximou, feliz em alcançar a capa dura do exemplar — Obrigado!
Mas Eric afastou antes que o fizesse.
— Eu ainda tenho minhas condições…
— Não adianta fazer promoção.
— Não é isso.
Eric sorriu doce e tombou a cabeça, seu tronco estava inclinado sobre o balcão de forma que parecia tão mais dócil do que realmente era.
— Me encontre depois do trabalho. — Eric sussurrou — Quero te pagar uma bebida.
.
Fizeram como previsto. Quando já era tarde e o pátio na frente da loja já estava calmo, Sangyeon acompanhou Eric até uma das estalagens da Cidade Alta de Igniva e eles tomaram alguns coquetéis, pagos com parte da generosa poupança do rapaz. Infelizmente não conversaram muito além desses momentos meio constrangedores em que um deles, geralmente Eric, iniciava um monólogo sobre algo que o outro não sabia nada a respeito. Eram tão diferentes um do outro que chegaria a ser um encontro difícil, se não tivessem perfeitamente alcoolizados.
Eric um rapaz comum, com sonhos ambiciosos; Sangyeon um homem ambicioso, que pouco sonhava a noite.
Mas numa surpresa inesperada, eles se gostaram, nem que fosse para olhar um para o outro após um monólogo e não saber que reação expressar, pois Eric se importava com as belas estátuas na Praça das Águias e Sangyeon nunca tinha ido lá.
— Um dia vou mandar construir uma para você e erguer em algum lugar. — Eric disse, seus lábios encostados no caneco, entre um gole e outro. Sangyeon sorriu.
— Não sou um herói.
— Não… Não disse que era.
Quando saíram da estalagem, procuraram uma viela isolada e escura. Eric se sentiu consumando a maior aventura de sua vida quando deixou Sangyeon colocá-lo sentado sobre um caixote de madeira e beijá-lo, voraz. Tinha deixado todos os seus bons modos em casa e não planejava recuperá-los tão cedo, não enquanto Sangyeon o estivesse tocando e o pressionando contra a parede fria de tijolos. Suas línguas compartilhavam o gosto forte do destilado e mais algumas deliciosas sensações quando se roçavam, macias. O pirata era delicado com o jovem, era simples e certeiro. Já ele, tinha virado um caos ofegante após minutos de beijo. Seus lábios pulsavam no ritmo do coração nervoso.
Um desfecho agradável para um encontro que talvez jamais se repetiria. Estiveram tão imersos nas sombras dos toques mútuos que, quando o céu clareou, já na hora de se despedir, até chegaram a esquecer o gatilho bobo que os levou até aquele beco.
Eric tirou o livro da sua bolsa e cheirou suas páginas uma última vez, seu gesto fez Sangyeon gargalhar baixinho. Só então entregou para ele e o pirata guardou em seu bolso interno.
Antes que fossem, contudo, Sangyeon decidiu entregar ao livreiro um anúncio que vira mais cedo no cais.
“Procuramos aprendizes de marujo”
— O que é isso?
— Eu reconheço uma alma corajosa quando vejo uma — Sangyeon respondeu, agora um tanto mais misterioso do que quando se viram pela primeira vez — quem sabe a gente se encontre de novo.
Foi a vez de Eric bufar incrédulo. Ele dobrou o anúncio com cuidado e guardou no bolso antes de inclinar para o homem à sua frente, segurou sua nuca e lhe roubou mais um beijo. Dessa vez tanto de despedida como de agradecimento.
Então o céu pintou a cidade de azul claro e o pirata virou, de longe, apenas mais uma das sombras erradias que habitavam a névoa de sua imaginação.
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