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História Ai Meu Deus! Tinha que ser eu... - Parte 1: O começo


Escrita por: BelleFlanders

Capítulo 1 - Parte 1: O começo


Fanfic / Fanfiction Ai Meu Deus! Tinha que ser eu... - Parte 1: O começo

Parte 1: O começo

 

TIC TAC...TIC TAC...O relógio de parede marcava 9:54. Pelas persianas semi-abertas, entravam alguns feixes da luz do sol que tornavam a sala, ocupada por mobílias de escritório de tons frios, um lugar menos inóspito e quase aconchegante. Ao meu lado, uma mulher de cabelos brilhantes e longos, certamente tratados por alguma tintura de tonalidade bastante clara. Ela não me olhava. Permanecia durante aquele longo período de espera observando suas unhas decoradas. Olho para as minhas e percebo que há semanas, talvez meses, não as lixo. Escondo minhas mãos por baixo da camisa branca de listras azuis, que na verdade nem era minha, e sim, fruto de uma demonstração de gentileza da dona Lúcia.

Olhei para o relógio novamente, que lamentavelmente ainda marcava 9:56. Alguém deveria entrar na sala a qualquer momento. Olhei para baixo e percebi que minha perna direita chacoalhava ritmicamente. Enquanto ao lado, a mulher de pernas longas e pele acetinada, permanecia com suas pernas cruzadas e imóveis. Três quartos de suas coxas estavam expostas e o que sobrava estava coberto pela peça de baixo do taiêr vermelho vivo que trajava. Minhas pernas inquietas estavam cobertas por uma calça jeans preta, que afortunadamente, muito se assemelhava a uma calça social.

Um ruído de passos vindo do lado de fora é percebido pela moça ao lado e os scarpins negros de salto agulha se voltaram para a posição de repouso sobre o chão. Imobilizei minhas pernas e me ajeitei na cadeira. O som dos passos se tornava mais próximo e uma voz masculina perguntava algo a alguém, provavelmente uma funcionaria. Olhei pela ultima vez o relógio e vi que ele marcava 9:59.

Um homem calvo de meia idade, alinhadamente trajando um terno caqui passou através da porta e se voltou às duas moças que o aguardavam.

“Bom dia, senhoritas.” disse se sentando na cadeira que ficava do outro lado da escrivaninha, frente a nós.

“Bom dia” respondeu a moça loira em um tom esnobe.

“Bom dia” respondi com nervosismo na voz.

“Muito bem...Qual de vocês duas é Andressa Couto Queiroz?”

“Sou eu.” respondeu a moça com orgulho.

O homem calvo deu um leve sorriso, como que tivesse acertado intimamente o seu palpite.

“Ah! Pois bem senhorita An-dre-ssa.” O homem parecia se divertir ao enfatizar o nome da moça. “Vejo que a senhorita têm um ótimo currículo.” O homem aparentava ter um modo tipicamente arcaico ao se referir a pessoas do sexo oposto ao qual não tinha intimidade.

A mulher apenas sorriu como que concordando com o elogio do entrevistador.

“É bacharel em administração de empresas, com ênfase em gestão financeira. Vejo também que a senhorita têm uma ótima carta de recomendação de seu ex-chefe...o senhor....”

“Arthur Cavalcante.” Completou em um tom de voz que demonstrava orgulho.

Logo percebi que se tratava do sobrenome de um dos fundadores da empresa.  

“Sim, claro...e...o que a faz querer pleitear uma vaga de secretária com um currículo tão bom.”

A moça permaneceu em silencio com uma expressão enigmática.

“Imagino que não tenha trabalhado como secretária para o doutor Cavalcante.”

A mulher lançou-lhe um olhar fulminante e o homem, intimidado, resolveu mudar de assunto.

“A senhorita é solteira.....casada....?” o homem abriu mais os olhos, que eram circundados por bolsas escuras, para observar o currículo, tentando assim disfarçar seu constrangimento.

“Fui casada com Vinícius Almeida, mas infelizmente nos divorciamos recentemente.” Lamentou a moça.

“Ah, sim Vinícius Almeida! Do Grupo Prado & Almeida. Grande empresário da Construção Civil.” Falava cheio de entusiasmo como se o conhecesse pessoalmente. “É....sinto muito pelo fim do casamento, senhorita.” lamentou sem parecer genuinamente desapontado.

O homem calvo resolveu então analisar o outro currículo. Abriu a pasta de polipropileno transparente onde estava anexado o currículo que eu, há poucas semanas havia deixado na recepção da Luna Vita Cosméticos e Saúde. Fez uma expressão de desgosto com sua face envelhecida e voltou seu olhar para mim.

“Michele Pereira de Souza.” O homem torcia e retorcia o rosto como que estivesse insatisfeito com as informações contidas no currículo que lia.

Assim como a candidata ao lado, eu também optei em permanecer em silencio. Minhas entranhas se retorciam como que quisessem sair de meu abdome.

“A senhorita têm formação em química. Uhm...curioso.”

Ignorei o desconforto abdominal e resolvi responde-lo.

“Sim. Sou Licenciada e Bacharel em Química. E tenho mestrado em Química Orgânica.” Respondi fingindo estar confiante.

O homem levantou as sobrancelhas com ar perplexo e prosseguiu a entrevista.

“Contudo, não vejo referencias de empregadores do ramo empresarial. A senhorita alguma vez já trabalhou como secretária?” O homem me olhava com olhos desafiadores.

Minhas vísceras subiam pelo meu abdome em direção a minha caixa torácica, se afunilando no meu pescoço. Pelo menos era isso o que eu sentia.

“Na verdade não.” respondi com os nervos na voz.

O homem me lançou um olhar perplexo e desaprovador.

“E porque pensa que pode conseguir ser contratada como secretária DA PRESIDÊNCIA desta empresa?!” Nem é preciso dizer que suas têmporas estavam rígidas e vermelhas.

Eu poderia muito bem ter lhe dito a verdade. Que fazia cinco anos que eu estava formada. Que o máximo que eu havia conseguido era um emprego como monitora de um cursinho, onde os alunos me tratavam como se eu fosse uma trintona fracassada. Que meu grande sonho era ser uma pesquisadora de prestígio, mas que meu currículo estava há anos luz de um currículo minimamente apto a ser selecionado para atuar na área. E que principalmente agora. Justamente agora. Eu precisava de um emprego que me pagasse o aluguel, a luz e o condomínio, já que minha melhor amiga, que dividia o apartamento comigo desde a época da faculdade, estava prestes a se casar.

Porém, decidi responde-lo com uma mentira padrão, já que se eu abrisse a boca e falasse um décimo de tudo isso, as minhas chances de conseguir esse emprego, que já eram mínimas, estariam instantaneamente aniquiladas.

“Bem...apesar de não ter formação na área, sou uma pessoa que aprende rápido...e acredito que posso tratar das responsabilidades de uma secretária sem maiores dificuldades.” Respondi com a voz tremida.

O homem me lançou um olhar incrédulo. Em seguida se voltou novamente à análise do meu currículo.

“Vejo aqui que a senhorita fala inglês. How-Is-Your-English?” perguntou pausadamente demonstrando sua dificuldade em pronunciar as palavras.

De repente, minhas entranhas retornaram aos seus devidos lugares e meu espírito de confiança tomou o domínio sobre mim.

Fine, thank you. I speak English since I was a teenager, so that’s not a problem to me. I can fluently write, read and talk in English.”

O jovem senhor calvo mais uma vez demonstrou sua desagradável surpresa retorcendo suas feições faciais.

“A senhorita têm mais alguma habilidade?” perguntou tendo certeza que ouviria a resposta Não.

Yo también hablo español afluentemente, por supuesto. Arranho um pouquinho de francês. Oui monsieur. E estudei alemão por um tempo, apesar dele estar meio enferrujado. Ich spreche Deutsch, aber es gibt viel lange, dass ich nicht praktizieren.”    

O astuto entrevistador calvo de meia idade me olhava com olhos esbugalhados e expressão abobalhada.

“É....bem....ãhn....acho por bem encerrarmos a entrevista por aqui. Nosso RH entrará em contato com as senhoritas assim que tivermos uma resposta quanto ao preenchimento da vaga.” Estendeu a mão primeiro à senhorita de vermelho e depois a mim.

Os três presentes saíram da sala. O senhor calvo parou em frente a uma das funcionárias e começou a lhe passar instruções, provavelmente sobre o que havia acabado de acontecer na sala. Eu e a mulher de vermelho seguimos rumo ao elevador. Me voltei para algumas das funcionárias e me despedi delas apenas com um sorriso, que foi retribuído naturalmente. A loira de taier vermelho seguiu sem olhar para os lados. Tendo se deslocado mais depressa do que eu, pude observa-la de costas. Era uma mulher bem alta, deveria ter por volta de um metro e setenta e cinco, mas de salto devia alcançar um e noventa. Tinha um corpo curvilíneo apesar de ser magra como uma atriz da Globo. Carregava no braço direito uma bolsa que me parecia ser da Victor Hugo, apesar de eu não ser muito boa para identificar essas coisas.

Parei em frente ao elevador, ao lado da moça que já o aguardava. Quando o mesmo chegou ao nosso andar, a moça de vermelho adentrou-o antes de mim. O elevador estava vazio, exceto por nós duas. Alguns segundos depois um celular toca e a mulher de vermelho o saca da bolsa.

“Arthur? Olá meu amor, tudo bem?.....Já....acabei de sair da entrevista.....Ai siimmm....correu tudo bem, meu amor.....Claro......sim, meu amor, o Celso me tratou muito bem...Siiimmm, ele leu a carta de recomendação que você me escreveu, meu amor, sim.....sim... foi tudo bem meu amor....Ele só me disse que o RH entrará em contato assim que tiverem a resposta sobre a vaga.....É claro que nós vamos nos ver hoje á noite meu amor...Um beijo...Até mais meu amor....Tchau.” a mulher falava ao celular em um tom artificialmente carinhoso. Depois, desligou o telefone e o colocou novamente na bolsa.

Com um ar vitorioso e arrogante a mulher saiu do elevador e seguiu em direção à saída do prédio. Eu, aflita, saí cabisbaixa pensando que mais uma vez alguém havia passado na minha frente e conseguido o emprego no meu lugar.

Segui pelo jardim que ornava a entrada do prédio sede da empresa e fui em direção ao ponto de ônibus. Olhei o horário no meu relógio de pulso. Eram dez para as onze. Iria ter que esperar pelo menos por meia hora o ônibus que ia para o meu bairro. Cruzei os braços e olhei para o fim da avenida esperando que eu estivesse errada sobre o itinerário do ônibus. Foi quando vi a loira passando pela avenida, dirigindo um Renault Symbol bordô. Ela passou em frente ao ponto de ônibus e me olhou debochadamente.

Essa mulher deve ter obsessão por vermelho.

Senti uma raiva imensa. Senti vontade de chorar. Mas era quase hora do almoço e o ponto estava cheio. Eu não iria chorar na frente de todo mundo. Jamais!

* * *

            Eram quase onze horas quando vi o Celso vindo na minha direção no corredor do quinto andar. Tinha um almoço marcado para o meio dia e meio com o diretor comercial da sede norte-americana da Merck. Precisava ainda passar na lavanderia, pegar o terno da Armani que havia deixado hoje de manhã (e que por um milagre estaria livre das duas nódoas gigantes, fruto do ultimo coquetel de fim de ano da empresa, que impregnavam o paletó há mais de quatro meses, mas na época, a ressaca da festança me impediu de notar que estavam lá), ir até em casa, tomar um banho a jato, me vestir, e ir direto ao Maison Blanche da Avenida Imperial

 “Doutor Rodrigues?”

 Tentei me esquivar e dar meia volta, mas percebi que já era tarde demais.

“Doutor Rodrigues. Entrevistei duas candidatas agora pouco, conforme o senhor requisitou. Uma delas se encaixa perfeitamente ao cargo de sua secretária...”

 “Depois falamos sobre isso Celso. Agora estou atrasado para um compromisso.”

Continuei andando em direção ao elevador, mas é claro que ele continuou me seguindo como um cachorro vira-lata sem dono.

 “Estou com o currículo da candidata. Veja doutor Rodrigues, ela tem até curso superior. Em administração de empresas.”

Achei bastante estranho uma administradora de empresas se prestar a uma entrevista de emprego para uma simples vaga de secretária. Tomei o currículo das mãos do Celso para conferir se o velhinho não estava tendo uma crise de Alzheimer.

Realmente, conforme dizia no currículo, a candidata havia se formado em Administração de Empresas pela UNIFAC. Constava que o curso tinha ênfase em gestão administrativa e que a candidata havia feito estágio na Lages Simões Consultoria e Empreendedorismo. Quando voltei a primeira página do currículo para checar os dados pessoais...Ah! Mas vejam só. Já dizia a tia Pacheca “Meu filho, quando a esmola é demais, corre por que a polícia tá vindo atrás.”

“Mas era só o que me faltava. Aquele pilantra do Arthur querendo me fazer de trouxa.”

“Mas doutor? O doutor Cavalcante não enviaria até aqui uma ex-funcionária sua que não fosse de total confiança.”

“Pois é Celso. É justamente aí que mora o problema.”

O elevador havia chegado ao andar. E como era de se esperar o capachinho entrou junto comigo.

 “Você têm aí o currículo da outra candidata?”

  O Celso assentiu com a cabeça e me passou a pasta.

Abri direto na parte de informações profissionais. Constava que a candidata era formada em Química pela Universidade Estadual de Santa Efigênia e que tinha mestrado em Química Orgânica também por lá. QUÊ?! Também constava que ela havia trabalhado como professora substituta de química e ciências em algumas escolas particulares e que seu ultimo emprego havia sido como monitora da disciplina de Química no Trigonus. Olha só! A escola onde eu estudei! Impressionantemente a garota falava fluentemente inglês e espanhol, e ainda tinha leve domínio de francês e alemão. Poxa!

“Não, Celso. Essa candidata aqui é bem melhor. Ligue para o RH e diga para eles prepararem o contrato DESTA.” E chacoalhei a pasta enfatizando a minha escolha. “Quero ela trabalhando comigo na segunda-feira.”

O Celso tinha uma cara de quem tinha chupado maracujá azedo. Aquela cara que ele faz quando está surpreso, mas não quer transparecer.

E depois de toda uma eternidade o elevador chegou ao térreo e saí deixando para trás o gerente de contratações da Luna Vita Cosméticos e Saúde.

 Segui em direção ao estacionamento. O Borges já estava me esperando com as chaves do carro nas mãos.

 “Obrigado, Borges!”

Entrei no carro e girei a chave na ignição. O rádio ligou automaticamente. Tocava uma música pop que pelo timbre de voz deveria ser de alguma dessas cantoras teen.

Tell me what you got to break down the walls

You just might need dynamite, yeah

Tell me what you got to break down the walls

Kick senseless, my defenses

Tell me what your gonna do

I need you to light the fuse

Tell me what you got to break down the walls

You just might need dynamite

Saí do estacionamento e tomei a avenida rumo à lavanderia. Ah, como faz falta uma secretária numa hora dessas! No ultimo mês, a Leda vinha ocasionalmente me dando uma mão em um assunto ou outro. Mas a questão é que por mais que eu seja o presidente da empresa, não acho justo fazê-la priorizar os meus problemas. A Leda já é secretária do Celso e a funcionária mais antiga da Luna Vita, o que por si só já lhe causa uma sobrecarga de trabalho considerável. Além disso, já tem idade suficiente para estar aposentada, e creio que só não fez isso ainda por consideração ao meu pai.

Mas tudo bem, isso não importa porque segunda feira meus problemas estão resolvidos.

 

* * *

 

“Juro que se essa não for a ultima, eu caio mortinha no chão.”

Era sexta-feira, cinco e meia da tarde. Eu e Isadora embalávamos as ultimas caixas de sua mudança para o apartamento novo. Eram caixas e mais caixas de livros, CD’s, DVDs, e todo tipo de parafernália que você possa imaginar. Em uma das caixas havia ursos de pelúcia que ela ganhou do Pedro (seu noivo e, num futuro bem próximo, marido) desde a época do ensino médio, quando eles começaram a namorar. Havia uma caixa também cheia de papéis de bala, chiclete, chocolate e até sacos de pipoca que eram mantidos como recordação dos passeios românticos realizados durantes os doze anos de namoro. Uma de suas gavetas era repleta de panfletos de filmes que estiveram em cartaz nos últimos...sei lá....nhennhentos anos. Tentei convencê-la a jogar tudo foram, mas ela se manteve irredutível e tivemos que arranjar MAIS UMA CAIXA para guardar todos eles.

“Ai, Mi. Tô exausta! Não aguento mais. Nunca imaginei que fosse dar tanto trabalho empacotar meia dúzia de gavetas.”

“MEIA DÚZIA?!”

Olhei a meu redor, e sério! Tinham pelo menos umas trinta caixas de papelão empilhadas no quarto.

“O Pedro disse que só vai poder vir amanhã de manhã buscar as caixas. Vamô tê que dormir no meio desse terremoto.”

Eu e a Isadora já estávamos tão cansadas que deitamos ali mesmo no chão do quarto. Pelo menos até recobrarmos as energias e conseguirmos chegar até as nossas camas.

“Que horas ele vem?”

“Ele disse que vem cedo...tipo umas onze horas.”

“Cê tá de brincadeira comigo?!”

“Ah, cê sabe como ele é. Se tem que fazer alguma coisa tem que ser pra ontem. Só que não.”

Eu e a Isadora rimos feito duas adolescentes retardadas.

Tentei esticar a cabeça para ver se resto do corpo ia, mas não tinha jeito. Tive que continuar deitada.

“Acho que vocês vão ter que fazer umas cinco viagens amanhã pra poder levar tudo isso.”

“Iiii, nem vai. O porta-mala do carro é grande. Fora que dá pra levar também no banco de trás. Cê tá com fome?”

“Pior que tô. Só que a preguiça, viiiiiixi...tá pior que a fome.”

A Isadora se levantou e foi até a mesinha de telefone. Pegou a lista e abriu nas páginas amarelas.

“Pode ser pizza?”

“Pra mim tá ótimo, Isa.”

Tentei mais uma vez erguer o corpo, mas a força acabava na metade do caminho.

“Meia calabresa, meia mussarela?”

“Beleza!”

 Ai ai minhas costinhas!

“Beleza. O cara disse que vai demorar uns trinta e cinco minutos.”

O telefone tocou e a Isadora que já estava ali perto atendeu.

“Alô...Sim, se encontra. Quem gostaria?”

De onde eu estava deitada dava para ver ela tapando o telefone.

“Mi, é um cara lá daquela empresa que você fez entrevista hoje.”

Levantei mais ligeira que o The Flash e corri em direção ao telefone.

“Alô?...Sim, sou eu...Amanhã? Mas, amanhã é sábado!...Ah, você vai estar aí no período da manhã...OK. Amanhã cedo estarei aí...Até...”

“HAAAAAAAAAAAAAAAAAA.”

Dei um berro e pulei no pescoço da Isa.

“ELES ME CONTRATARAM! ELES ME CONTRATARAM!” eu pulava e berrava no ouvido dela.

“HAAAAAAAAAAA” ela também gritava.

Ficamos, feito duas malucas, pulando, gritando e girando abraçadas.

“PARABÉNS, MI!!!!!!!!”

“BRIGADA!”

Por um momento senti meus olhos marejarem, mas me mantive firme.

“O que ele te disse?”

“Que eu preciso ir amanhã até a empresa... pra assina o contrato... e que segunda-feira eu já começo.”

Depois de toda a agitação, eu e a Isadora estávamos ofegantes. Sentamos no chão uma de frente para outra.

“Ai, Isa. Nem tô acreditando que eles me escolheram pra vaga.”

“Ah, tá?! Você sempre fala isso. Ai, vô tira zero nessa prova! Ai, fui mó mal na apresentação daquele trabalho! Ai, nem ferrando que eu vou conseguir entrar nesse mestrado.” A Isa me imitando parecia aquela participante idosa do BBB.

“Não, sério Isa! Dessa vez eu só entrei por um milagre! A outra moça que estava na entrevista comigo...”

“Como assim? A entrevista foi em grupo?” ela me olhava incrédula e perplexa.

“Não. Foi só eu e uma outra moça. O cara que entrevistou a gente me odiou de cara e adorou o Currículo dela.”

“Ah, Fala sério, Mi! Você tem um baita currículo! Quem dera metade das secretárias daquela empresa tivessem a formação que você tem. E eu nem sei por que você ainda fica insistindo em arranjar uns empregos meia-boca. Você devia mandar seu Currículo pra Minerobrás, isso sim!”

“Ah, tá!” falei baixinho.

Mas bem no fundo eu sabia que a Isa estava certa. Eu sei que não sou uma pé-rapada-analfabeta-funcional. Sei que tenho capacidade de me destacar nas coisas que eu faço. Sei que posso procurar um trabalho melhor e mais adequado a minha formação. Mas a sensação que tive ontem não foi nada diferente do que eu sempre sinto quando faço uma entrevista de emprego ou dou uma aula sobre balanceamento de reações. De que as pessoas não me dão credibilidade pelo fato de eu ser gorda. Me odeiam de cara porque não sou daquelas que se mata na academia para entrar num mini-vestido tubinho manequim 38. Porque não dou a mínima para tentar ser igual a TODAS as meninas do planeta: cabelo alisado de chapinha, franjinha de lado, barriga negativa, balada, foto com biquinho no Face (e tem coisa mais cafona que chamar Facebook de feice?).

Mas independente de qualquer coisa eu estou muito feliz. Feliz por que finalmente tenho um trabalho que vai me garantir um teto, um banho quente, e minha tv a cabo. Feliz porque daqui a uma semana eu estarei no altar, como madrinha de casamento da minha melhor amiga. E principalmente, feliz porque agora, finalmente, parece que as coisas vão começar a dar certo.

 

* * *

 

“Como assim ele não quis contratar a Andressa?!”

Arthur Cavalcante falava de seu iPhone 5 recém adquirido em Miami durante um breve encontro de negócios. Já passavam das seis da tarde e o transito estava caótico.

“Pois ele que fique sabendo que eu também sou acionista daquela empresa. Não é porque o papaizinho dele resolveu bater as botas que ele pode sair por aí brincando de presidente e destruindo o patrimônio alheio.”

De dentro de seu Audi A8 não era possível ouvir o ruído das buzinas nem dos motores dos carros que vinham do lado de fora.

“É claro que eu sei, seu energúmeno. Mas por isso mesmo que preciso de alguém que me represente naquela empresa.”

Uma menina que aparentava ter em torno de oito anos passava por entre os carros parados segurando uma caixa de balas. Bateu no vidro do lado do motorista, mas o proprietário do carro, propositadamente distraído, não atendeu ao chamado.

“Não, seu incompetente. Não quero que faça nada. Não quero que fale nada até que eu diga que pode abrir o bico.”

Arthur encerrou a ligação. Realmente era impossível encontrar alguém que conseguisse cumprir uma simples tarefa. Mas isso não importava mais porque ele já sabia exatamente o que precisava fazer.

 

* * *

 

Muito bem...deixa eu ver....o jantar tá no forno...o vinho... a champanhe tá na geladeira...o que falta mais...ah, já sei! 

Fui até o rack da televisão. Olhei para a pilha de CD’s. Avaliei as possibilidades e por não saber o gosto musical da minha convidada, resolvi apostar no que sempre funcionava com as mulheres. Retirei um CD do Bruno Mars, coloquei na bandeja do mini-stereo e apertei o play.

                                  

Easy come, easy go

That's just how you live, oh

Take, take, take it all

But you never give

 

Olhei no relógio. 8:49. Ainda faltava uns minutos para ela chegar, o que dava tempo para eu preparar a banheira. Lá, já havia dois jogos de toalha e dois roupões que a Jussara, minha empregada, havia deixado hoje de manhã. Ela sempre fazia isso às sextas-feiras porque sabia que eu sempre passava o fim de semana acompanhado.

Liguei a água quente e joguei uns sais de banho que minha mãe trouxe do Marrocos nesta ultima viagem que ela havia feito. Acho que a champanhe vai combinar bem mais com essa banheira. Fui até o bar que ficava na sala, peguei duas taças de cristal e levei-as ao banheiro. Peguei o balde de gelo, coloquei a champanhe e posicionei-a sobre a beirada da banheira entre as taças.

DLINNN DLONNN.

Opa é ela!

Fui até a sala, ajeitei as almofadas do sofá e parei em frente à porta. Uff. Vai lá garoto!

Quando abri a porta, a visão que tive foi de um monumento. Um espetáculo. Uma oitava maravilha que tinha acabado de bater a minha porta somente para fazer a minha noite feliz. Ela vestia um vestido preto justo que contornava e realçava toda a sua geografia longilínea. O vestido não passava de um palmo de comprimento, o que favorecia muito, tanto as coxas como a comissão de trás. Ela também usava um colar com um pingente que pousava, afortunadamente, sobre a junção dos seios que afloravam do decote inacreditavelmente generoso.

“Ooooii.” Cumprimentou inclinando a cabeça para o lado.

“Oi...noossa, você tá um espetáculo.” Respondi escaneando cada centímetro da moça.

“Ah...brigada.” ela inclinou a cabeça para o outro lado e sorriu.

Me aproximei para dar um beijo nela.

“Uhm...cheirosa.” ela usava um perfume levemente doce, que eu particularmente gosto nas mulheres.

“Você gostô?”

“Nossa!” E vou gostar ainda mais do resto!

Apoiei a mão sobre as costas dela, quase na altura da cintura e a conduzi até o sofá.

“Você quer beber alguma coisa?”

“Ah, quero sim!”

Fui até a mini-adega que ficava na cozinha e peguei o vinho que já havia separado antes dela chegar.

“Trouxe um Chateau Montrose safra 98. É um dos meus vinhos favoritos. Pode ser?”

“Claro.”

Fui até o bar e peguei o saca-rolha esperando que a conversa não fosse se estender por muito tempo.

Levei a garrafa aberta e duas taças até a mesa de centro. Servi o vinho nas duas taças e entreguei uma para ela.

“Brigada.” Respondeu com um sorriso malicioso nos lábios.

Houve um breve silencio que teria sido constrangedor caso eu não tivesse iniciado o assunto padrão.

“Dani...E então...Como estão as campanhas?”

Modelos adoram se gabar de suas campanhas publicitárias e contratos internacionais. Elas ainda aproveitam para falarem mal das outras modelos, contando histórias onde elas são as vítimas. A tática é sempre manifestar reações de concordância. Se ela estiver falando do quão elogiada ela foi, no último desfile da Dolce & Gabbana em Roma, você esboça um sorriso aberto simulando estar orgulhoso dela. Se o assunto for o patife do editor chefe da revista, que a cortou do editorial na ultima hora, o ideal é você fechar o cenho em sinal de revolta e perplexidade. E principalmente, quando estiverem se lamentando do cafajeste do ex-namorado que a trocou por outra modelo vinte gramas mais magra, sempre se ofereça como o seu ombro amigo.

Ela deve ter falado durantes uns quinze minutos. Não sei exatamente, pois não pude olhar no meu relógio de pulso e o relógio de parede da cozinha estava justamente na direção onde ela estava sentada, tampando a minha visão. Antes que ela começasse a falar sobre o quão maravilhosa estava a coleção outono inverno da Gucci, resolvi trazer a tona o assunto do jantar.

 “Você está com fome? O cardápio de hoje está delicioso. Antepasto de alho poró e Vitela Barrosã com molho de alcaparras.”

Essa é uma tática ótima e funciona particularmente bem com as modelos. Ela serve especificamente para quando queremos pular direto para a sobremesa.

“Uhm...não...acho que estou com fome de outra coisa.”

Ela inclinou o corpo na minha direção e aproximou o rosto na altura do meu queixo esperando que eu guiasse seus lábios até os meus. Minhas mãos que estavam apoiadas no sofá foram em direção ao seu pescoço, depois aos ombros, às costas, à cintura e finalmente às cochas.

Minha boca se desprendeu da boca dela e foi descendo, explorando o maravilhoso parque de diversões que estava ali, de portões abertos, apenas aguardando a minha chegada à sua atração principal.

 

 To every girl that I meet

This is what I say:

Run run runaway, runaway baby

Before I put my spell on you

You better get get getaway, getaway darling

'Cause everything you heard is true

Your poor little heart will end up alone

'Cause what knows I'm a rolling stone

So you better run run runaway, runaway baby

           

            Deitei o corpo dela sobre o sofá enquanto ela tirava a minha camisa. Deitei sobre ela e comecei a procurar pelo zíper do vestido. Ela me ajudou a encontra-lo e a terminar o serviço. Entrelacei suas pernas ao redor do meu tronco e levantei do sofá segurando ela no colo. Ela jogou os braços ao redor do meu pescoço enquanto nos dirigíamos para o quarto.

 

So you better run run runaway, runaway baby!

 

* * *

 

“Pedro, pela ultima vez. Se você não sair AGORA de casa a Michele vai se atrasar.”

Era sábado de manhã. A Isadora tinha feito questão de me dar carona até a Luna Vita. Ela ligou para o Pedro às seis horas da manhã dizendo que ele tinha que vir até aqui nos buscar e me levar até a empresa. Eu insisti para ela não fazer isso. Disse que chegaria em 45 minutos indo de ônibus e que não havia o menor cabimento tirar o pobre do Pedro da cama em pleno sábado.

Eram sete e meia da manhã e o noivo da minha melhor amiga relutava em despertar.

“Pedro? PEDRO? Ah, eu desisto. PEDRO?” ela estava quase engolindo o telefone.

“Tudo bem, Isa. Não precisa. O ônibus passa quase aqui na porta. Rapidinho eu resolvo isso e já tô de volta.”

“NÃO. Se eu falei que a gente te levava, é porque a gente vai te levar.” Ela andava de um lado para o outro da sala segurando o telefone sem fio na mão, sem se importar mais se ele estava ou não do outro lado da linha.

DLIN DLON

“Nossa. Quem será uma hora dessas?” ela colocou o telefone de volta no gancho e olhou pelo olho mágico da porta.

“É o Otávio, do 301.” Disse ela sussurrando.

“Quem?”

“O Otávio! Filho da dona Divina. Aquele que trabalha na Minerobrás.”

Continuei olhando para Isa com cara de alface.

“Anda, abre a porta.” Disse ela gesticulando para que eu me movesse.

Como boa amiga que sou, obedeci a sua ordem e abri a porta.

“Oi, bom dia!”

O rapaz devia ter seus vinte poucos anos. Certamente era mais novo do que eu. Tinha uma voz meio fina, tipo de adolescente saindo da puberdade. Seu porte físico era do tipo mignon, magro e baixinho, mas ainda sim não era de todo feio.

 “Bom dia.” Respondi sem empolgação na voz.

O rapaz me olhava de cima abaixo como se estivesse cara a cara com o Godzilla pela primeira vez.

“Meu nome é Otávio. Eu moro ali no 301. Meu apartamento está sem gás desde ontem à noite e queria saber se vocês estão tendo o mesmo problema.”

“Oi, Otávio. Entra!” disse ela sorrindo.

E logo percebi que a Isadora já estava com segundas intenções.

 O rapaz ficou meio sem graça. Talvez por não esperar pelo convite, mas mesmo assim entrou.

“Ah, então. Aqui está tudo normal, né Mi.” Ela olhava para mim como querendo dizer: Vai Michele, conversa com o menino.

“É.”

E eis que o silencio constrangedor toma conta da nossa morada.

A Isadora olhava para mim, cobrando uma reação. Mas eu continuava estática como um guarda inglês.

“Acho que vou dar uma olhada no nosso chuveiro...pra ver se ele tá esquentando?”

“Já usei o chuveiro hoje. Ele tá funcionando normal.” Disse em tom de apatia.

Percebi que ela começava a ficar aflita por seu plano não estar dando certo.

“Ah, então...”

E mais uma vez, o fantasma do silencio constrangedor se manifestava.

“É, acho que vou ter que falar com a companhia de gás” disse o rapaz sem jeito.

“É...” a Isa também estava sem graça.

E eu continuava em silencio.

“Então tá...eu já vou então. Brigado.”

“De nada. Se precisar de mais alguma coisa pode bater aqui.” disse a Isa em sua ultima tentativa de tornar aquela mini-visita em algo menos desagradável.

“Brigado, tchau!” disse o menino indo em direção à porta.

“Abre a porta pra ele, Mi.”

 Abri a porta.

O rapaz saiu.

Fechei a porta.

“Poxa, Mi! Você também?! Custava ter sido simpática com o garoto?”

“Eu não gosto quando você fica tentando me alcovitar!”

“ALCOVITAR?!” disse ela com as mãos na cintura e a expressão enfurecida. “Eu tento te ajudar e você ainda reclama?!”

Por mais que para mim toda essa cena fosse um grande absurdo, eu entendia que ninguém no mundo era igual a mim. As pessoas têm essa necessidade descabida de se relacionarem, namorarem, beijarem na boca. SÓ QUE EU NÃO SOU ASSIM. E não adianta eu tentar explicar isso para a Isadora. Porque para ela eu tinha mesmo é que arranjar um namorado e ser feliz, PONTO FINAL. Mas para mim essas duas coisas não tem nada a ver uma com a outra. AO CONTRÁRIO, a chance de uma pessoa ser infeliz vivendo um relacionamento é muito maior do que se ela aprender a ser feliz através das coisas que ela própria conquista. O que eu quero dizer é que sim, EU SOU UMA SOLTEIRA BEM RESOLVIDA! Não quero um homem que me proteja, não quero casar, não quero ter filhos, não quero seguir um protocolo de obrigação social: nascer → crescer → namorar → formar na faculdade → arranjar um emprego que pague bem → noivar → casar → ter filhos → trabalhar/cuidar da casa/cuidar dos filhos/cuidar do marido → ver os filhos fazendo a mesma coisa que você fez → ser avó → cuidar dos netos → morrer. Não que eu seja, o que as pessoas chamam hoje em dia de assexuada. Eu gosto de rapazes, acho eles ás vezes até interessantes, mas nem por isso saio por aí desesperada correndo atrás de um par de calças que me banque. Acho legal quando alguém conhece uma pessoa bacana, que te acrescenta coisas boas, que é leal, companheira. Mas isso não é algo que acontece todo dia! A Isa, por exemplo, teve a maior sorte do mundo. Conheceu o Pedro no segundo ano do ensino médio e os dois estão juntos (E FELIZES!) até hoje!

Fui até o quarto pegar a minha bolsa e as chaves de casa.

“Isa, acho melhor eu ir. Deixa o Pedro sossegado. Qualquer coisa eu ligo pra vocês de lá da empresa. Daí vocês passam lá e me buscam...”

Ela fez uma cara de tá bom! O que que eu posso fazer.

“Eu ligo pra vocês quando eu tiver saindo de lá.”

“Ok, então. Beijo. Se cuida.”

“Beijo, tchau.”

Saí de casa e desci até o ponto da Rua Oswaldo Cunha. Esperei uns quinze minutos até chegar o 105, que ia até a Avenida dos Palmares onde está localizada a empresa que a partir de hoje será meu local de trabalho. Subi no ônibus e senti um friozinho bom na barriga.

           * * *

HELLO MOTO bizzzzzz HELLO MOTO bizzzzzz HELLO MOTO bizzzzzz HELLO MOTO

 

Estiquei o braço e comecei a tatear aleatoriamente procurando pelo meu celular. Ao recobrar mais uma mínima parte da minha consciência, lembrei que ele ainda estava no bolso do paletó. Levantei da cama e fui até a cadeira do computador onde o tinha colocado quando cheguei do trabalho.

“Alô?” a voz quase não saía das minhas cordas vocais.

“Bom dia, Bela Adormecida!”

Ah, não é possível. O que ele quer comigo há uma hora dessas!

“Arthur...Bom dia.” Disse pigarreando.

“Estou interrompendo alguma coisa?”

O filho da mãe ainda curti uma com a minha cara.

“Não, de forma alguma.”

“Estou ligando apenas para lhe comunicar que quero convocar o conselho para uma reunião segunda-feira pela manhã.”

COMO É QUE É?!?!?!?!?!

“Uma reunião com o conselho? Segunda-feira?” Você só pode tá de sacanagem.

“Sim.”

“E qual é o motivo para tanta urgência?”

“Prefiro discuti-los na presença de todos no dia da reunião.”

Minha vontade nesse exato momento era esmurrar a parede, já que a cara de pau do Arthur estava a quilômetros de distancia do meu alcance. Só não fiz isso porque não estava sozinho e não queria assustar a visita.

“Ok. Vou ligar para a minha...” e então eu me lembrei que eu ainda não tinha uma secretária. PUTA QUE PARIU, QUE MERDA!!!!

“Para os membros do conselho. Assim que tiver a resposta de todos ligo avisando sobre o horário da reunião.” Minhas têmporas estavam tão tensas que me davam dor de cabeça.

Desliguei o celular e levei minhas mãos a cabeça.

“O que foi? Quem era no telefone?” ela se levantou enrolada no lençol, veio em minha direção e sentou no meu colo.

“Ah....nada. Nada do que você precise se preocupar.” Mas a minha voz mostrava o contrário.

“Ah, não fica assim. Vem. Eu tenho um jeito de te deixar despreocupado.”

Ela se levantou e deixou o lençol cair de propósito. Foi andando de costas e me puxando pelo braço em direção ao banheiro. A banheira estava preparada desde ontem e a champanhe já havia esquentado há horas. Mas quem se importa! Agora iriamos estar ocupados demais para se preocupar com isso.

* * *

 

BOM DIA, VOCÊ ESTÁ NA METROPOLITAN FM 105,6. A RADIO JOVEM DE MONGRADO. AGORA, 6:01.

Ao contrário dos outros dias, que levanto da cama contra a minha vontade e levo a manhã inteira para me recuperar do mau humor, hoje acordei esboçando um sorriso enquanto me espreguiçava.  A Isadora iria acordar mais tarde porque seu primeiro paciente (ela é fisioterapeuta e trabalha numa clinica no centro da cidade) estava marcado para as dez horas.

Na época que trabalhava no cursinho, roupa era a menor das minhas preocupações. Enfiava uma calça jeans e uma camiseta, ou uma blusa de malha e ia embora. Mas agora era diferente. Como não tenho roupa social, vesti a mesma calça preta jeans da entrevista e coloquei uma camiseta preta e uma jaqueta jeans por cima. Nos pés infelizmente iria ter que aposentar meu tênisinho de guerra. Ao invés, coloquei uma sapatilha chiquezinha que costumo usar quando vou ao cinema com a Isa.

O ônibus das sete é um dos piores para se tomar durante a semana. Ele sai da garagem às 6:45 e passa no ponto perto de casa às 7:02. Mal tinha começado seu percurso e já estava lotado. Quando subi não havia mais lugares e tive que ir em pé ao lado de um velhinho que parecia não tomar banho desde o golpe militar de 64.

Cheguei à Avenida dos Palmares às 7:55. Ao entrar pela recepção da Luna Vita me deparei com a mesma moça loirinha que havia me orientado sobre o local onde ocorreu a entrevista de emprego na quinta-feira.

“Bom dia. Eu sou a nova secretária da presidência...”

“Ah! Michele, não é?” ela sorriu e logo me entregou o crachá.

“Sim.” Sorri em retribuição.

“A sala da presidência fica no sexto andar, mas acho melhor você subir até o quarto andar e falar primeiro com a Leda. Vou avisar a ela que você está aqui.”

Ela retirou o telefone do gancho e discou o ramal.

“Leda? A nova secretária do Dr. Rodrigues está aqui. Ela já está subindo aí pra falar com você. Tchau!”

“Desculpa. Eu esqueci de perguntar o seu nome naquele dia...”

“Letícia.” Sorriu mais abertamente.

“Prazer em te conhecer, Letícia.”

“O prazer é meu!”

“Eu vou subir. Até mais!”

“Até!”

O elevador já estava no térreo. Entrei e apertei o número 4.

Quando saí do elevador, uma senhora de cabelos castanhos e curtos me aguardava na porta. Ela usava uma camisa de estampa floral e calça social azul marinho combinando com a estampa da camisa. Parecia ser tão simpática quanto a Letícia.

“Olá! Bom dia!” disse sorrindo.

“Bom dia!” Retribui com a mesma alegria.

“E então? Empolgada pro seu primeiro dia?”

“Muito.” Respondi com o friozinho bom na barriga.

Ela me explicou sobre todo o regulamento da empresa. Me mostrou como bater o ponto, me falou sobre os horários de trabalho, intervalos de almoço, onde ficava cada departamento e em que andar ficava cada setor, sempre muito gentil e atenciosa. Ai, tudo isso aqui parece um sonho!

“Agora vamos subir para a presidência.”

Ela me guiou até o sexto andar. Ao sair do elevador percebi que o andar era bem menor que o anterior, provavelmente porque as três portas possíveis de serem vistas dali davam acesso a salas bem mais amplas do que as do piso inferior. A decoração, todavia, era bem mais sofisticada. Uma das paredes tinha um quadro gigante, de uns quatro metros de comprimento feito de metais e outros materiais que jamais tinha visto como peça de arte. As portas eram largas com maçanetas verticais longas, exceto por uma delas que era dividida em duas partes, e as maçanetas eram horizontais.  Além disso, havia duas mesas de escritório, feitas de vidro. Cada uma delas ficava ao lado de cada porta de maçaneta vertical.

“O doutor Rodrigues e o doutor Vilaça ainda não chegaram. Vou aproveitar para te mostras a sala deles.”

Ela seguiu em direção a primeira porta à esquerda.

“Essa é a sala da vice-presidência.”

De fato eu estava certa. A sala era enorme comparada às outras do quarto andar. A mesa de vidro era duas vezes maior que a mesa que ficava do lado de fora. Ainda havia um banheiro privativo e uma sala menor que eu não entendi bem para que servia.

“Vamos agora para a sala da presidência.”

Se a sala da vice-presidência já era grande, a da presidência então...nem se fala. Parecia maior que o meu apartamento. A mesa de vidro era quase do mesmo tamanho a da outra sala, talvez um pouco maior. À direita de quem entrava havia um mini-bar com bebidas destiladas e um frigobar. Do lado esquerdo havia uma mini-sala de estar (e entenda mini em comparação à sala toda. Provavelmente era maior que a sala da minha casa.) com dois sofás de dois lugares, uma mesa de centro e uma TV de LCD fixada na parede. Havia também uma porta que dava para um banheiro privativo e ao lado outra que dava acesso a um elevador privativo. Havia também uma terceira porta, nos fundos da sala que estava trancada, mas pelo que a Leda me falou, ela era usada apenas como um tipo de arquivo morto.

Saímos da sala da presidência nos dirigimos à sala de reuniões que ficava do outro lado do andar. A sala não era tão ampla quanto as anteriores, mas era demasiadamente comprida. Basicamente a sala era tomada por uma mesa que comportava pelo menos umas trinta pessoas. Ao fundo havia um projetor e um desktop no canto. Do outro lado da sala havia uma mesa tipo buffet, forrada com uma toalha branca bem longa, que quase arrastava no chão. Sobre a mesa havia copos prontos para serem usados, duas garrafas térmicas tamanho industrial, xícaras, guardanapos, saches de açúcar e adoçante, colherinhas enfim, toda a parafernália para cafezinho.

“Vem. Vamos voltar para a administração. O doutor Rodrigues já deve estar chegando.”

Assim que a Leda chamou o elevador o mesmo abriu. De dentro dele saiu um homem alto, de fisionomia marcante e porte físico típico dos atletas olímpicos. Usava os cabelos castanhos penteados para trás e vestia um terno preto e gravata azul marinho.

“Ah, doutor Rodrigues! Essa é a Michele. A sua nova secretária.”

Putz! Meu chefe deve ter a minha idade. Por essa eu não esperava.

Ele me estendeu a mão com uma expressão enigmática. Não pude distinguir se ele estava contente ou desapontado com a minha presença.

“Olá. Seja bem vinda a Luna Vita.” Ele tinha um tom de voz seco e intimidador. Não consegui dizer nada e apenas retribui o aperto de mão.

“Eu já apresentei a ela a empresa.” Disse a Leda. Acho que não era só eu que se sentia intimidada.

“Fez bem.” Respondeu no mesmo tom.

“Leda, você já providenciou o receptivo para a reunião?” agora ele assumiu um tom mais cortes, mas ainda sério.

“Ah, sim doutor Rodrigues. Falei com o pessoal da copa hoje cedo conforme o senhor me pediu.”

“Ótimo. Michele. Venha comigo. Preciso lhe passar algumas instruções sobre a reunião do conselho.”

Ele seguiu em direção a sua sala. Olhei para Leda que me retribuiu com um olhar de boa sorte. Eu apertei o passo para conseguir alcançá-lo.

“Primeiro preciso que você prepare a pauta da reunião. Vou lhe passar os tópicos que serão discutidos. Quero que imprima nove cópias, pois esse será o numero de membros presentes. Você também ficará responsável por redigir a ata e enviá-la aos membros até amanha de manhã por e-mail.”

Ai, meu Deus! Ata?! Eu lembro vagamente de como se faz uma, pois no segundo ano da faculdade, fiz parte da comissão organizadora da Semana de Química da UESE. Recebíamos uma após cada reunião mensal, mas eu nem me dava o trabalho de abrir os arquivos.

“Sim, senhor.” Sussurrei aflitamente.

“Ah! Quando os membros do Conselho chegarem, diga para que esperem na sala de reuniões. A reunião esta marcada para as dez e acredito que eles começarão a chegar a qualquer momento. Veja também com o pessoal da copa se está tudo preparado para a recepção dos membros.”

Pauta, Ata, Copa, Conselho. Será que eu tô esquecendo de alguma coisa?

Ele entrou na sala sem dizer mais nada. Supus que a mesa de vidro da área externa fosse para uso da secretária. Sentei a mesa e liguei o computador. Cinco segundos depois o telefone tocou.

“Alô?”

“Você não diz alô. Você diz Presidência Luna Vita, bom dia. Venha até a minha sala.”

Ai meu Deus! Mal comecei e já tô dando gafe.

Me levantei da mesa e entrei na sala da presidência.

“Bata na porta antes de entrar.”

Ai meu Deus! Ele tá uma fera comigo!

“Desculpe.” Fiquei parada sem esboçar qualquer reação.

“Sente-se aqui. Vou lhe passar os temas da pauta. Você vai precisar de papel e caneta.”

Na mesa lá fora só havia o computador e nenhum material de escritório. Fiquei parada, sem saber o que fazer. Ele percebeu a minha cara de alface, abriu a gaveta e tirou um bloco de anotações e uma caneta.

“Tome.” Disse ele em tom de conformação.

Peguei o bloquinho e me sentei na cadeira de visitantes em frente a ele.

“Quero que redija a pauta com os tópicos exatamente da forma como vou ditar. Sem nenhuma vírgula a mais ou a menos.”

 Me voltei para o bloquinho e assenti com a cabeça.

“Item único. A pauta da reunião do Conselho realizada no dia presente aborda aspectos exclusivamente de interesse do senhor Arthur Cavalcante, membro do conselho desta empresa. Os temas a serem abordados são de natureza desconhecida tanto para o presidente e vice-presidente quanto para os demais membros. A reunião de caráter extraordinário foi convocada fora do regime comercial e infringe a norma 9.2.2. do regulamento do conselho que diz que qualquer reunião, sendo ela de caráter emergencial ou não, deve ser comunicada com no mínimo 48 horas de antecedência, em horário comercial e dia útil. A regra só excede a casos de força maior, com devida justificativa aceita pelo conselho. Caberá a ele decidir se esta reunião será válida e se as conclusões tomadas durante a mesma deverão ser acatadas pela empresa.”

A caneta voava sobre o papel. Minha letra ficou praticamente ilegível já que ele mal parou para respirar enquanto ditava a pauta.

“Ok. Pode voltar para a sua mesa.”

“Com licença.” Me levantei e segui para a porta.

Estava me sentindo como se tivesse saltado de paraquedas no meio do olho de um furacão. Sentei em frente ao computador, abri o ícone do Word e comecei a digitar as anotações. Foi quando percebi a porta do elevador se abrir e para a minha total surpresa e desespero, saiu de dentro dele a loira que disputou comigo a vaga de secretária da presidência.

Ai meu Deus! O que que ela tá fazendo aqui?

 

* * *

 

BOM DIA, VOCÊ ESTÁ NA METROPOLITAN FM 105,6. A RADIO JOVEM DE MONGRADO. AGORA, 5:50.

Desliguei o radio relógio e fui direto para o banheiro. O dia hoje prometia então era melhor começa-lo de uma vez. Lavei o rosto, escovei os dentes, me vesti e desci direto para a academia do condomínio. O fim de semana havia sido muito desgastante (no bom e no mal sentido) e malhar iria, de certa forma, me ajudar a exorcizar todo o transtorno gerado por aquele maldito verme do Arthur.

Malhei até às sete, subi, tomei um banho, me vesti para o trabalho, li as noticias do dia no iPad enquanto tomava o café da manhã e fazia as ultimas ligações para o acerto da reunião do conselho. Por fim, consegui sair de casa às oito horas.

O transito não estava dos piores e consegui chegar a Luna Vita às 8:40. Entreguei as chaves do carro ao Borges e segui para a recepção.

“Bom dia, Letícia.”

“Bom dia, doutor Rodrigues.”

“A Leda já chegou?”

“Sim, senhor. Ela está com a sua nova secretária na administração.”

“Ok, Leticia. Obrigado.”

 Ah! Finalmente eu tenho uma secretária.

Chamei o elevador e subi até o quarto andar.

Ao chegar ao departamento administrativo procurei pela Leda, mas não a vi em nenhuma parte.

“Sônia, você sabe onde a Leda está?”

“Ah, Doutor! A Leda subiu agora pouco com uma moça na presidência. Acho que elas ainda devem estar lá.”

“Ok. Obrigado.”

Voltei para o elevador, que ainda estava no quarto andar. Entrei e apertei o número 6. Olhei para o relógio. 8:50. A reunião estava marcada para as dez então acho que ainda tinha um bom tempo para organizar os últimos detalhes necessários. Só de pensar nas atrocidades que iria ter que enfrentar nessa reunião, Arh...melhor não pensar.

“Ah, doutor Rodrigues! Essa é a Michele. A sua nova secretária.”

Quase tomei um susto com a Leda, mas ainda sim mantive meu semblante imóvel. Ao lado dela estava a moça que havia contratado. Quando vi seu currículo nem me ocorreu de olhar a foto 3x4 anexada às informações pessoais. Pessoalmente vi uma moça de cabelos castanhos, rosto redondo com óculos, tinha estatura mediana e era gorda, extremamente gorda. Ela usava jeans e camiseta e parecia uma aluna do ensino médio, apesar de aparentar ter mais idade.

“Olá. Seja bem vinda a Luna Vita.”

“Eu já apresentei a ela a empresa.”

“Fez bem.”

Ah! Preciso perguntar...

“Leda, você já providenciou o receptivo para a reunião?”

“Ah, sim doutor Rodrigues. Falei com o pessoal da copa hoje cedo conforme o senhor me pediu.”

“Ótimo. Michele. Venha comigo. Preciso lhe passar algumas instruções sobre a reunião do conselho.” E segui rumo a minha sala.

“Primeiro preciso que você prepare a pauta da reunião. Vou lhe passar os tópicos que serão discutidos. Quero que imprima nove cópias, pois esse será o numero de membros presentes. Você também ficará responsável por redigir a ata e enviá-la aos membros até amanhã de manhã por e-mail.”

“Sim, senhor.” Disse ela tentando acompanhar os meus passo.

“Ah! Quando os membros do Conselho chegarem, diga para que esperem na sala de reuniões. A reunião esta marcada para as dez e acredito que eles começarão a chegar a qualquer momento. Veja também com o pessoal da copa se está tudo preparado para a recepção dos membros.”

A garota parecia um pouco lenta, física e mentalmente dizendo. Entrei na minha sala, me acomodei, liguei o computador e disquei o ramal de sua mesa.

“Alô?”

“Você não diz alô. Você diz Presidência Luna Vita, bom dia. Venha até a minha sala.”

Mal olhei para a porta e ela já havia entrado.

“Bata na porta antes de entrar.”

“Desculpe.” Respondeu com tom de medo na voz.

“Sente-se aqui. Vou lhe passar os temas da pauta. Você vai precisar de papel e caneta.”

Ela permaneceu me olhando com cara de cachorro cego em dia de mudança. Lembrei que antes de ser contratada, a garota era professora de química e percebi que teria que pegar mais leve com ela. Abri a gaveta da escrivaninha, tirei um bloco de anotações e uma caneta e entreguei a ela. A garota agora parecia menos assustada.

“Quero que redija a pauta com os tópicos exatamente da forma como vou ditar. Sem nenhuma vírgula a mais ou a menos.”

Ela abaixou a cabeça e começou a escrever freneticamente. Quando terminei pedi para que voltasse a seu posto de trabalho.

Não fazia nem dois minutos que ela havia saído e o telefone tocou. O identificador de chamadas mostrava o ramal da secretária.

“Pronto?”

“Doutor Rodrigues? Tem uma moça aqui...ééé....chamada...Andressa...Couto Queeeiroz...ela diz que veio para a Reunião do Conselho...”

“Diga a ela que infelizmente ela não poderá participar da reunião, já que esta é exclusiva para membros do conselho.”

A reunião nem começou e já tô sentindo cheiro de podridão.

“Doutor Rodrigues? Ela diz que veio a pedido do Doutor Cavalcante...”

E eis que a origem do cheiro suspeito é revelada, e só poderia vir daquele gambá do Arthur.

“Não precisa dizer mais nada. Estou indo até aí.”

Respirei fundo. Calma, você não precisa quebrar a cara de ninguém para resolver os seus problemas. Uffu....calma.

Abri a porta e me deparei com uma mulher, com as mãos apoiadas sobre a mesa olhando para a minha secretária com cara de furiosa.

“Algum problema?”

A mulher automaticamente se colocou de pé e amenizou seu semblante.

“Eu é que pergunto.”

Era o gambá saindo do elevador.

“O que está acontecendo aqui?”

Inspira. Expira.Eu sou um homem calmo e não quebro a cara de ninguém.

“Arthur! Essa simpática moça está aqui dizendo a minha secretária que veio participar da reunião, a pedido seu.” Disse sem dissimular o sarcasmo.

“E ela está dizendo a verdade. Inclusive sua participação é fundamental no assunto que tenho a tratar.” Disse ele com sua típica arrogância.

Olhei para ele, cocei o queixo e me controlei para que o pior não acontecesse.

“OK...O-K-E-Y. Só espero que tudo isso tenha um propósito plausível.”

“Eu lhe garanto que sim.” disse sorrindo.

“Doutor Cavalcante, o senhor e a sua...” disse a secretária.

“Eu já sei. Vamos aguardar na sala de reuniões.”

Ele se virou, colocou a mão sobre as costas da mulher e a guiou até a sala.

Pilantra, miserável duma figa, eu não sei o que você está tramando, mas sei muito bem aonde quer chegar.

 

* * *

 

“Mãe, como você está?”

“Bem, meu filho. E você?” ela falava comigo segurando no meu rosto, como de costume.

“Bem também.”

“Emerson.” Disse estendendo-lhe a mão.

“Meu brother.” Disse batendo no meu ombro.

Os nove membros do conselho incluindo eu já haviam chegado e estavam todos acomodados na sala de reuniões da Luna Vita.

“Michele venha cá.” Ela conversava com uma das funcionárias da copa. “Preciso lhe apresentar os membros do conselho.”

Ela se aproximou receosa.

“Esse é o Celso Silva, ele é gerente de contratações da empresa. Creio que você já o conhece.”

Ela apenas balançou a cabeça em sinal de afirmação.

“Aquela é a Solange Lopez. Ela cuida do departamento comercial e também faz parte do nosso conselho. Ali, na ponta está o Roberto Braga. Chefe do departamento financeiro. Ao lado dele, Rafael Tavares. Nosso Gerente de produção. Depois, Cristina Rebouças, que cuida do design na marca. Ali do outro lado da mesa. Leonora Rodrigues, minha mãe e acionista da empresa. Ao lado dela, Emerson Vilaça. acionista e Vice-presidente desta empresa. Ali, Arthur Cavalcante, também acionista.” Respirei fundo pela milésima vez. “E eu, Ricardo Rodrigues. Presidente e acionista da Luna Vita.”

“Bom...senhores, essa é a Michele...” Xiiii rapaz, não sei o sobrenome dela. Olhei para ela esperando que ela completasse minhas reticências.

“Souza.” Respondeu a moça.

“A nova secretária da presidência.” Olhei para ela e ela me esbouçou um sorriso quase animado.

“Bem podemos dar início.” me dirigi à extremidade norte da mesa e me acomodei.

“Acredito que já tenham em mãos a pauta da reunião de hoje.” Me voltei para a direção de Arthur. ”Então...Concedo a palavra ao Doutor Cavalcante.”

“Obrigado presidente.” agradeceu com um sorriso artificial.

"Creio que todos aqui saibam que apesar de acionista da Luna Vita, tenho pouco contato com a rotina e os progressos nos trabalhos realizados nesta empresa. A minha ligação com outros ramos empresariais e principalmente com a minha própria empresa, da qual sou presidente, me impedem de ter esse tipo de experiência.”

Ele fez uma pausa e observou todos os presentes como que quisesse avaliar seu desempenho no discurso.

“Ao contrario dos outros membros, que trabalham e contribuem ativamente para o crescimento da Luna Vita, eu infelizmente, não tenho como contribuir com nada que vá além das reuniões do conselho diretivo.”

Ele fez mais uma pausa como que se preparando para dar o bote.

“Por esse motivo sinto a necessidade de ter alguém que me represente ativamente nesta empresa. Alguém que possa fazer pela Luna Vita aquilo que eu, em pessoa, não posso fazer diariamente.”

“É por esse motivo que convoquei os senhores no dia de hoje. Estou me afastado do país por um tempo, por motivos profissionais, e agora, mais do que nunca preciso de alguém que honre o meu lugar nesta empresa.”

“Não sei se já tiveram a oportunidade de conhece-lá. Esta é Andressa Queiroz. Ela foi minha assistente na Adamite e é uma profissional extremamente competente da qual eu deposito minha total confiança.”

Andressa abriu um largo sorriso gracioso, tentando conquistar sua platéia.

“Inicialmente gostaria de propor ao presidente que a Andressa se integrasse a essa empresa como assistente da presidência.”

O QUÊ?! MINHA ASSITENTE! VOCÊ QUER COLOCAR A SUA ESPIÃ COMO MINHA ASSITENTE?!

Contive minha vontade de voar no pescoço do Arthur, mas não contive minha expressão de fúria.

“Caso o presidente se oponha a essa proposta. Sugiro a criação de um novo cargo. O de Assistente Multidisciplinar de Produção. Que como o próprio nome diz, tem o objetivo de assistir aos diferentes setores de produção, ajudando e aconselhando os diretores com um olhar multidisciplinar. É o que hoje em dia os especialistas chamam de miopia de mercado. Muitas vezes um especialista de produção não consegue encontrar a solução para um problema simples, unicamente por estar tão atado à sua inércia de trabalho.”

Olhei para os demais membros e percebi que todos olhavam o Arthur com ar de aprovação. Mas era só o que me faltava!

“Andressa é uma mulher muito sensível e observadora e garanto aos senhores que não há ninguém melhor para exercer essa função na empresa. Caso seja da vontade democrática do conselho, naturalmente” e ele se voltou para mim com a expressão de uma hiena.

“Com todo respeito, Arthur. Eu presido essa empresa há quase um ano. Meu pai ocupou esse mesmo lugar onde estou sentado por mais de 30. Em nenhum momento, e houveram muitos. Nenhum dos nossos funcionários e diretores foram incapazes de resolver um problema.”

“Com todo respeito presidente. A empresa nunca obteve uma margem de lucro tão baixa como vem obtendo desde o ultimo ano.”

“Mas isso vem ocorrendo com todo o setor de cosméticos. Com esses novos produtos fitoterápicos e terapias alternativas, as pessoas têm deixado cada vez mais de consumir cosméticos anti-idade, maquiagem sintética e até produtos de higiene convencionais. E isso não está acontecendo só aqui. Fora do Brasil as empresas também têm enfrentado dificuldades no mercado.”

“E é por isso que mais do que nunca a Luna Vita precisa inovar suas perspectivas de mercado. E ao contrario do que está pensando, eu não inventei esse cargo. Esse tipo de trabalho vem sendo desenvolvido em diversas empresas, dos mais diferentes ramos, e demonstrando um ótimo efeito nas estratégias de marketing e produção.”

“É verdade, doutor Rodrigues. Esse tipo de profissional tem sido requisitado por muitas empresas, inclusive pelos nossos concorrentes.” Confirmou a Diretora Comercial da Luna Vita.

Olhei para os presentes na mesa e senti um frio na espinha.

“Bem, então vamos colocar em votação. Quem é a favor da instauração do cargo, por favor, levante a mão.”

Sete membros levantaram a mão, incluindo o Arthur.

"OK. Quem é a favor de que Andressa Queiroz ocupe a vaga de...”

“Assistente Multidisciplinar de Produção.” Completou Arthur impaciente.

“Sim. Por favor, levante a mão.”

Seis membros levantaram hesitantemente a mão.

“OK. Então por decisão do conselho. A Luna Vita instaurará o cargo de Assistente Multidisciplinar de Produção, que será ocupado por Andressa Queiroz. Há mais algo para ser discutido hoje doutor Cavalcante?”

O sangue pulsava tão forte pelas minhas veias que meus braços ardiam.

“Não.” Disse ele radiantemente.

“Então declaro encerrada a reunião do conselho.”

Os diretores e chefes se levantaram e foram direto para a mesa do buffet onde havia café e alguns aperitivos. Meus nervos estavam tão exaltados que por um momento senti minhas mãos tremerem. Me levantei mas não quis me aproximar da mesa. Meu estomago estava embrulhado demais para comer qualquer coisa. Foi quando percebi a Michele ali parada, ao meu lado. Olhei para ela e vi em seus olhos o mesmo desespero que eu sentia. Acho que de todos nessa sala, ela era a única que entendia o quão ferrado nós estávamos, agora que o Arthur tinha olhos e ouvidos ligados nessa empresa, a todo tempo e ao seu dispor.

            

* * *

 

“Eeeeee....Finalmente. Agora senta aqui e me conta tudo.”

Eram quase 7:30 da noite. Mal tinha aberto a porta de casa e já dei de cara com a Isadora sentada no sofá, assistindo à novela das sete, me cobrando as fofocas do dia.

Para variar, o ônibus das seis horas veio abarrotado. Levava pelo menos uns três minutos em cada parada para as pessoas subirem e descerem e por isso levei mais de uma hora para chegar em casa. Estava exausta e a única coisa que queria era tomar um banho, cair morta na cama e ressuscitar só amanhã.

“Ai Isa.” Falei com voz de coitada. “Posso pelo menos tomar um banho.”

“Vai, minha filha, vai...”

Vinte minutos depois, quando saí do banheiro, encontrei a mesa da cozinha posta e a Isadora em pé em frente ao fogão.

“Como você chegou feito uma múmia atropelada resolvi fazer um sopão.”

“Ai Isa, você é um anjo sem asas.” E sentei a mesa como uma criança esperando a mãe servir o jantar.

Nove minutos depois a sopa estava pronta, e para quem teve um dia como o meu a sopa estava deliciosa!

“E então, desembucha. Quero saber de todos os detalhes do seu primeiro dia naquela empresa.”

Se eu fosse mesmo falar TUDO o que tinha acontecido hoje, não iria saber nem por onde começar. Se seria pelo quão furioso meu patrão ficou pela minha falta de eficiência e pela minha falta de noção de como se comportar feito uma secretária. Se teria sido a aparição da loira de farmácia penada. Se teria sido aquele Doutor Cavalcante BIZARRO e meu patrão quase tendo uma sincope na reunião do conselho. Ou se teria sido o fato de que AGORA aquela loira falsificada iria estar todos os dias na empresa dando pitaco no trabalho de todo mundo, INCLUSIVE NO MEU. Algo me diz que as coisas vão começar a feder naquela empresa. E quando digo feder, digo com todos os erres maiúsculos.

“Ah, foi normal.” Tentei dar uma de evasiva.

“Hã...normal como?” mas a Isa não caia na minha.

“Teve uma reunião do conselho de manhã. E a tarde preparei uns documentos. Foi só isso.” Será que eu escapei?

“E o pessoal de lá?”

“Ah, normal.”

“Normal como criatura?” Ela já tava começando a se irritar.

“Ah, não sei, não tive tempo de conhecer muita gente. A Letícia, a recepcionista, parece ser boazinha e a Leda, que foi quem me mostrou as coisas da empresa, parece ser legal, tipo amigona, prestativa.”

“E o seu chefe?” ela mudou de tom.

“O que que tem ele?” dei uma de desentendida.

“Como ele é? Ele gostou de você?”

“Ah, não sei Isa.” Meus Deus, como essa minha amiga faz pergunta!

“Ele é bonito?”

“Ai, Isa. Não começa.”

“Ah!!!! Você achô ele bonito! Vai, fala a verdade.” Ela AMA ver o circo pegar fogo.

“Ai chega, Isa. Já tomei minha sopa. Tô cansada. Vô durmi.”

Levantei da mesa e fui para a pia lavar meu prato. Quando terminei fui direto para o quarto. Apaguei a luz e caí dura na cama. Não pensei mais em reunião, nem em ata, nem na loira oxigenada. Dormi o sono dos justos e só acordei no dia seguinte.

                       

            * * *

 

Eram 7:55 quando desci do ônibus em frente à Luna Vita Cosméticos e Saúde. Atravessei a rua, passei pelo jardim e segui rumo à recepção.

“Bom dia, Letícia.”

“Bom dia, Michele.” Me respondeu com o mesmo sorriso meigo do dia anterior.

Registrei minha entrada na empresa e subi direto ao sexto andar. Não havia chegado ninguém e eu agradeci porque comparado a ontem, a presidência parecia uma biblioteca de tão silenciosa. Liguei o computador e aproveitei para acessar os meus e-mails, que fazia já uns cinco dias que eu não abria. A maior parte deles eram propagandas de lojas online, e e-mails com promoções relâmpagos de eletrodomésticos e anúncios imobiliários. Deletei todos. O doutor Rodrigues ainda não havia chegado então não tinha nada para fazer. Aproveitei para acessar meu facebook também. Esse era outro que fazia séculos que não logava.

Por volta das 8:15, uma moça muito branquinha de cabelos castanhos bem lisos chegou ao andar da presidência. Ela carregava uma cadeirinha de bebê e foi em direção a outra mesa que ficava junto a porta da sala da vice-presidência.

“Olá! Bom dia!” disse ela sorrindo.

“Bom dia!” respondi no mesmo tom.

“Você é a nova secretária do doutor Rodrigues?” perguntou querendo confirmar as suspeitas.

“Sim.” Respondi com um sorriso.

“Prazer. Eu sou Andrea. Secretária do doutor Vilaça.”

“Ah!...Prazer. Michele.”

Ela acomodou a cadeirinha ao lado da mesa no chão e depois se sentou à mesa.

“Eu estou retornando da minha licença hoje.” E olhou para chão onde estava a cadeirinha.

“Ah...Foi por isso que você não estava aqui ontem.” Deduzi.

“É...Ouvi dizer que as coisas pegaram fogo.”

“Ai, nem me fala...”

“Faz tempo que você está trabalhando aqui.”

“Ontem foi meu primeiro dia.”

“Nossa! Então você já chegou botando ordem na casa.”

Éeeeee.......Não foi beeeemmm isso.

“É.” respondi com uma risadinha sem graça.

“Fiquei quase vinte minutos lá embaixo. As meninas não queriam desgrudar da Flora.”

Percebi que nem tinha dado bola para a nenezinha dela. E no reino da Gafolândia, eu sou a rainha!

“Ah! Deixa eu ver ela.” Me levantei e fui até onde as duas estavam acomodadas.

“Que bebê mais lindo! Com quanto tempo ela está?” disse mexendo no pezinho dela.

“Três meses”

“Ah, que graça!”

Eu não sou muito fã de bebês. Eles são fofos e cheirosos, mas não sou daquelas que sai correndo feito doida quando vê um, querendo pegar no colo.

“Andrea. Seja bem vinda de volta.” Era o doutor Rodrigues vindo em nossa direção.

“Obrigada, doutor.”

“E essa pequena como está?”

“Bem e com saúde, graças a Deus.” Disse ela orgulhosa.

“Ah, que bom. Michele, venha até a minha sala. Preciso lhe passar todos os contados dos nossos cliente, fornecedores, nossos prestadores de serviço....”

Nossa, ele já chegou com tudo!

O segui, e como sempre ele andava muito mais rápido do que eu. Entrou na sala e se acomodou na sua ampla mesa.

Ele me passou umas quatro pastas de arquivo com todos os nomes, telefones e endereços das empresas que tinham relações comerciais com a Luna Vita. Ele me disse que queria que eu informatizasse tudo, já que a secretária anterior tinha deletado os arquivos por engano.

Ai meu Deus! Eu vou levar uns trinta anos para digitar tudo isso.

Sai segurando a pilha de arquivos, quase sem enxergar o caminho por onde andava. Sentei em minha mesa e respirei fundo. Abri a primeira pasta. Essa era a mais fina de todas deveria ter umas....nhenhentas páginas. Ai meu Deus! E agora?

E eis que o telefone tocou.  Estava quase tomando o fone quando me lembrei das palavrinhas mágicas.

“Presidência da Luna Vita, Bom dia!”

“Michele? Aqui é a Letícia.”

“Oi Letícia!” uffa...não era meu chefe.

“Queria perguntar se você vem almoçar com a gente hoje?”

“Almoçar?”

“Éééé....Eu e as outras secretárias costumamos almoçar num restaurante bem pertinho daqui.”

Fiquei em silencio pensando um pouco.

“Ah...Pode ser.” Respondi.

“Então combinado! Nos encontramos todos aqui na recepção.”

“Combinado.” E deliguei o telefone.

Onde eu estava mesmo?

Abri novamente a pasta com as empresas que começavam pela letra A. Acácio Marinho, Alfa Conti, Altromaz, Andromeda, Anvison, Arco Monti...

O telefone tocou novamente.

“Luna Vita Presidência, bom dia?”

“Michele, por favor. Desce já aqui!”

Reconheci logo que era a voz da Leda, desesperada.

“O que foi? O que aconteceu?” perguntei aflita.

“Um maremoto, Michele.”

Me levantei e resolvi não esperar pelo elevador. Fui pelas escadas mesmo. Chegando no quarto andar dei de cara com a Loira de Vermelho fazendo a maior arruaça com os funcionários.

“VOCÊ REALMENTE ESTÁ ACHANDO QUE UMA PESSOA COMO EU VAI PASSAR O DIA INTEIRO ENFURNADA NUM CUBÍCULO DESTE.”

Subentendi que ela estava falando sobre a sala que tinha sido preparada para ser seu local de trabalho.

“MAS OLHA SÓ. QUE COMPUTADOR É ESSE?! NEM OS DINOSSÁUROS USAVAM UM COMPUTADOR TÃO ULTRAPASSADO.”

Ela falava aos berros com o Celso, que não conseguia esboçar qualquer reação.

“OLHA AQUI MINHA FILHA. SE TÁ INSATIFEITA COM A IMPRESA, VÁ ARRANJAR EMPREGO EM OUTRA FREGUESIA.” Era uma moça baixinha e magrinha que tomou a frente da discussão.

“EU NÃO ADIMITO QUE VOCÊ...UMA SUBALTERNA...SE INTROMETA NOS MEUS ASSUNTOS.”

“OLHA AQUI MINHA FILHA. SUBALTERNA É A SENHORA SUA MÃE, QUE NÃO TE DEU EDUCAÇÃO PARA FALAR COM AS PESSOAS FEITO GENTE.”

O rosto da loira se transformou numa expressão transtornada.

“É ISSO MESMO SÔNIA. VOCÊ ESTÁ CERTISSIMA. NINGUÉM AQUI NESSA EMPRESA TRABALHA PRA OUVIR DESAFORO DE PATRICINHA PETULANTE.” Agora quem se manifestou foi uma moça bem alta de cabelo Chanel.

“VOCÊS REALMENTE NÃO FAZEM IDÉIA COM QUEM ESTÃO FALANDO. EU TENHO RELAÇÕES ESTREITAS COM OS ACIONISTAS DESTA EMPRESA E BASTA EU FAZER ISSO” ela estalou os dedos. “PRA BOTAR TODOS VOCÊS NO OLHO DA RUA.”

“É mesmo Andressa?”

Todos se viraram e deram de cara com o doutor Rodrigues, parado, de braços cruzados assistindo ao show de horrores que a loira oxigenada estava protagonizando.

Ai meu Deus! É agora que vai começar o maremoto!

 

* * *

 

Logo após a Michele ter saído. Meu celular tocou. Olhei o identificador de chamadas e o número que constava era de fora da região de Mongrado. E a parte disso era desconhecido. Como não costumo atender ligações de números que não conheço, cancelei a chamada e guardei o aparelho de volta no bolso do paletó.

Dois minutos depois o celular tocou novamente e a chamada era correspondente ao mesmo número da ligação anterior. Desliguei novamente, mas desta vez deixei o celular sobre a minha mesa.

Mais dois minutos e o mesmo número insistente brilhava na tela do celular. Resolvi encerrar de uma vez por todas esse mal entendido e atendi a ligação sem dizer alô.

“Ricardo, é você? É você não é? Seu canalha....”

Encerrei a ligação e desliguei o celular. É melhor prevenir do que remediar.

Voltei à tela do computador e às análises das planilhas dos orçamentos cotados pela equipe da Merck, com quem eu havia me encontrado na semana anterior. Os preços eram altíssimos, comparados com as marcas concorrentes. Porém a qualidade e pureza dos produtos era inigualável. É melhor conversar sobre isso depois com o Emerson. E então fechei a janela da planilha. Abri um outro arquivo com a proposta publicitária e o orçamento para a campanha 2013 da Luna Vita. Acho que alguns desses fornecedores aqui não estão na listagem que eu passei para a Michele.

Tirei o telefone do gancho e disquei na mesa dela.

Chamou, chamou, chamou e ela não atendeu.

Ahr! Mudo de secretária, mas não mudo de problema.

Me levantei e fui até a sua mesa.

“Onde está a Michele?” perguntei a Andrea.

“Ah, doutor Rodrigues. Ela saiu agorinha mesmo. Acho que estava com pressa porque não esperou nem o elevador.”

Resolvi que iria procurar eu mesmo por ela. Aquele projeto de Rei Momo tá pensando o que?! Que vai sair por aí passeando pela minha empresa?!

Desci pelas escadas até o quinto andar.

“Algum de vocês sabe onde está a minha secretária?”

Eles me olharam como se não soubesse de quem eu estava falando.

“Uma gordinha, de óculos?”

Ninguém ali fazia ideia do que eu estava falando.

Segui rumo às escadas. Na metade do caminho comecei a ouvir a maior gritaria.

 “É isso mesmo Sônia....ninguém aqui nessa empresa trabalha pra ouvir desaforo de patricinha petulante.”

 “Vocês realmente não fazem ideia com quem estão falando. EU TENHO RELAÇÕES ESTREITAS COM OS ACIONISTAS DESTA EMPRESA E BASTA EU FAZER ISSO PRA BOTAR TODOS VOCÊS NO OLHO DA RUA.”

“É mesmo Andressa?”

Todos os funcionários do departamento administrativo se viraram na minha direção. Ela ficou completamente pasma ao se deparar comigo.

“Até onde eu sei. Quem decide quem sai ou quem fica nesta empresa, sou eu. O PRESIDENTE DA LUNA VITA.”

Nenhum dos presentes emitia um só pio.

“E em relação aos acionistas, creio que você realmente tenha relações bem estreitas, mas não comigo, nem com o vice-presidente, e muito menos com a matriarca desta empresa.”

Me virei e percebi a Michele do meu lado, mais pálida que o Michael Jackson.

“Se tiver algum problema ou reclamação a fazer, trate direto comigo, que sou o representante maior do conselho. E, diga-se de passagem, é graças a ele que hoje você está aqui.”

O silencio era tão grande que parecia que ninguém ali, a parte de mim, estava respirando.

“Antes de mais nada. Gostaria que você pedisse desculpas a todos os funcionários aqui presentes, por ter se excedido com eles.”

Ela me lançou um olhar quase furioso. Como que estivesse surpresa com a minha audácia.

“Desculpem.” Disse ela com a voz contida e anasalada.

“Como disse? Eu não entendi?”

“ME DESCULPEM. EU ME EXCEDI.”

“Ah! Agora eu entendi!” respondi sarcasticamente.

“Bom, gostaria que os senhores retornassem ao que estavam fazendo. Andressa, por favor, me acompanhe até a presidência para que possamos resolver esse assunto de uma vez por todas. Michele, você também vem comigo.”

Resolvi aposentar o elevador e me dirigi às escadas. As duas vieram atrás de mim.

“Venha comigo até a minha sala.” Disse me dirigindo a Andressa.

A Michele já ia se acomodando na sua mesa de trabalho.

“Você também.” Disse me dirigindo a secretária.

Deixei que as duas entrassem na minha frente e em seguida fechei a porta por trás de mim.

Respirei fundo, cruzei os braços e me dirigi à moça de vermelho.

“E então. Qual foi o problema ali embaixo?”

Ela se manteve em silencio com receio de dizer mais alguma besteira.

“Bem, se você não quer dizer. A Michele estava presente, não estava? Ela pode me contar tintim por tintim o que se passou no setor administrativo.”

Ela então resolveu abrir o bico.

“É que na verdade, eu acredito que na qualidade de Assistente Multidisciplinar de Produção eu mereça um local mais adequado ao meu trabalho.”

Ela falava num tom tão manso quanto o de um canarinho.

 Respirei fundo mais uma vez.

“Que tal, então, você trabalhar aqui neste andar?”

A Michele arregalou os olhos.

“Ah, por mim...”

“E que tal você ocupar o local onde agora é ocupado pela minha secretária?”

A Michele voltou a ficar pálida feito o Michael Jackson, só que desta vez depois de morto. A Andressa esboçou um sorriso.

“E você Michele, vai ocupar aquela sala ali?” e apontei para a salinha que meu pai usava como arquivo morto.

“Vamos ter que providenciar uma limpeza, já que fazem anos que essa sala não é aberta. E também a instalação de uma linha telefônica, de uma saída de internet e de um computador.”

A secretária me olhou receosa.

“Michele, por favor, desocupe suas coisas lá de fora para que a Andressa possa se acomodar em seu novo espaço de trabalho.”

A Andressa me olhou com uma expressão triunfante. Em seguida saiu da sala.

“Enquanto esta sala não estiver pronta você vai trabalhar aqui comigo. Eu trouxe meu notebook pessoal, então você pode usar o meu Desktop.”

Ela já ia saindo para cumprir o que eu lhe havia delegado.

“Ah, Michele. Fale com a Leda sobre esses arranjos. Ela vai poder te ajudar melhor com isso.”

Ela sorriu um sorriso contido e balançou a cabeça, e então saiu. Voltou em meio minuto com as pastas que eu havia lhe dado hoje mais cedo. Fez mais uma viagem e trouxe seus objetos pessoais.

Ela colocou as coisas no chão, atrás da mesa e permaneceu em pé, estática, olhando para a minha mesa de trabalho.

“O que foi?”

“Ah, doutor...não precisa fazer isso. Eu posso muito bem ficar na salinha lá embaixo. Quando o senhor precisar eu subo...”

“Não. Eu prefiro você aqui. E, além disso, quero alguém que me ajude a ficar de olho nela...” e inclinei minha cabeça na direção da porta. “É aquela velha história...”

“Mantenha os amigos perto...” inferiu o ditado popular.

“...e os inimigos mais perto” completamos junto.

Não precisava dizer-lhe mais nada. Ela já havia entendido sua tarefa.

 

* * *

 

Às onze e meia, o doutor Rodrigues saiu para almoçar e eu permaneci na presidência. Era bastante estranho trabalhar na mesa do meu chefe, principalmente quando ele não estava lá. Mas ainda sim, aquela sala parecia o paraíso. A cadeira de couro era tão anatômica e macia. Parecia ter algum tipo de amortecimento, porque quando eu me deslocava o assento mal se movia. O teclado era tão macio que parecia ter sido feito de espuma. E o mouse então, era tão leve que dava até para esquecer que eu estava segurando alguma coisa enquanto o cursor percorria a tela do computador.

Estava começando a digitar a nona folha do primeiro arquivo quando o telefone da presidência tocou. Fiquei receosa de atendê-lo sem a permissão do meu chefe. Mas então pensei que se não atendesse, seria muito pior.

“Presidência Luna Vita?” respondi receosa.

“Oi, Michele! Finalmente te encontrei. É a Letícia!”

“Oi.” Era sempre um alívio ouvir a voz dela.

“Pelo visto te despacharam da sua mesa.” Comentou com um leve sarcasmo.

“É...O doutor Rodrigues achou melhor assim.” Respondi resignada.

“E então? Você não vai vir almoçar com a gente?”

Tinha até me esquecido que as secretárias também se alimentam.

“Sim. Já tô descendo.”

Peguei minha bolsa e fechei a porta por trás de mim. O sexto andar já estava vazio. Creio que eu era a ultima a sair para o almoço.

Peguei o elevador e fui direto para o térreo. Chegando lá estava a Leda, a moça magrinha que tinha visto mais cedo, a outra moça alta de cabelo Chanel que também tinha participado da briga, a Andréa segurando a cadeirinha de bebê, e a Letícia.

“Vamos gente. A Michele já chegou.” Disse a Letícia às outras funcionárias que aguardavam na recepção.

O restaurante ficava atrás do prédio da empresa, há umas duas quadras do Fórum Municipal. A fachada era decorada com dois vasos grandes de plantas e se assemelhava muito a uma casa rústica. Por dentro, o restaurante tinha o mesmo aspecto charmoso da fachada, com as mesas cobertas por toalhas xadrez verde e vermelha e lustres que pareciam lampiões. Nas paredes, podia se notar algumas molduras com fotos em preto e branco, alguns vasinhos com flores e no canto bem ao fundo, havia uma fiandeira, que dava uma atmosfera ainda mais rustica e aconchegante ao ambiente.

Escolhemos uma mesa que ficava bem no meio do restaurante. Ao nos ver entrar, o garçom, que já devia conhecê-las, se aproximou da mesa.

“O que vocês vão beber, meninas?” perguntou a moça baixinha.

“Eu quero um suco de uva.” Respondeu a moça alta.

“E eu um suco de tamarindo.” Respondeu a Leda.

“E você?” a moça baixinha se voltou para mim.

“Ah...um suco de laranja.”

“Letícia? Andrea?”

“Pra gente pode ser um guaraná de 600 ml.” Respondeu a Letícia.

“E eu vou querer um suco de limão. E seis pratos do dia.” Completou.

O garçom tomou nota dos pedidos e saiu. A moça alta de cabelo Chanel se voltou para mim.

“Michele, não é?”

“Sim.” Respondi com um sorriso.

“Eu sou Carla. Sou secretária do doutor Braga.”

Eu assenti apenas com um sorriso.

“A baixinha ali é a Sônia. Ela é secretária da dona Solange. Ô Sônia...” disse ela se voltando para moça que se encontrava do outro lado da mesa.

“Essa é a Michele. A nova secretária do doutor Rodrigues.”

“Ei, você não vai ficar aí sentada longe de todo mundo.” Ela puxou a cadeira vaga entre ela e a Carla e bateu no assento insinuando para que eu trocasse de lugar.

Me levantei e sentei no lugar que me havia sido indicado. Agora eu estava no centro do grupo e todas as mulheres me observavam com olhos curiosos.

“Agora conta. O que foi que o doutor Rodrigues fez com a loira barraqueira?” perguntou a Sônia colocando as palmas das mãos sobre a mesa.

De repente me senti extremamente intimidada com todos aqueles olhos em cima de mim. Fiquei em silencio tentando disfarçar o constrangimento.

“Ai, Sônia. Deixa a menina em paz. Ela mal chegou e já tem que dar o boletim de ocorrência.” Disse a Leda tentando abafar o assunto.

As outras meninas disfarçaram, mas a Carla e a Sônia continuaram olhando para mim esperando uma resposta.

“O doutor Rodrigues achou melhor ela ficar na mesa da secretaria da presidência.” Disse num tom mais baixo do que costumo falar.

“Mas e você? Ficô aonde?” perguntou a Sônia. As duas me olhavam ansiosas.

“Por enquanto estou trabalhando na sala dele. Mas ele disse que agora eu vou ficar naquela salinha que serve de arquivo morto.”

As duas arregalaram os olhos. A Sônia deixou cair o queixo e a Carla engoliu em seco.

“Mas como assim?! Você vai trabalhar junto com as aranhas?” satirizou a Sônia.

“Não. Ele me disse que aquela salinha só precisa de uma boa limpeza e de alguns ajustes.” Tentei botar panos quentes.

“Ali, ehn? É ruim de você não trabalhar no meio das aranhas. Alias, naquela salinha deve ter cobras e lagartos.” Disse a Carla que foi interrompida pelo olhar reprovador da Leda.

 “Iiii, mas aquela arara de cativeiro não dura muito tempo ali, não. Pelo barraco de hoje cedo, ela só vai sossegar depois que tomar a sala da presidência.” Apontou a Sônia.

“Ah! Mas essa já é da Michele.” Completou a Carla.

De repente tive um acesso de tosse.

“Mas vocês não tomam jeito mesmo. Não tão vendo que tão deixando a menina encabulada.” Repreendeu novamente a Leda.

As duas se voltaram para mim como se nada tivesse acontecido.

“E você Michele? Tá dando conta da fera?” perguntou a Sônia colocando a mão sob o queixo.

Eu desviei o olhar e não soube o que responder.

“Acho que você deve ser a quarta ou a quinta secretária do doutor Rodrigues, SÓ ESSE ANO.” Enfatizou a Sônia.

“A ultima que durou mais tempo pediu as contas porque levou um passa fora do chefe.” Completou com uma risadinha sarcástica.

“É. A Dalila do financeiro disse que conhece a prima dela. Ela me falou que a garota teve até de fazer terapia pra superar o pé na bunda.” Disse a Carla com a mesma risadinha.

“Você não vai cair nessa, né Michele?” disse a Sônia se virando para mim.

Por uma sorte dos deuses o garçom se aproximava trazendo as bebidas. Ele me serviu o suco de laranja e eu rapidamente dei um gole para não ter que seguir no assunto.

“Mas e o batizado da Flora. Você vai fazer quando?” perguntou a Letícia para a Andrea.

“Acho que no fim do ano, quando ela estiver maiorzinha.”

“Ah....mas a gente vai querer ser madrinha. Você ainda não escolheu quem vai ser a madrinha, né?” sugeriu a Carla.

“Vocês todas já são madrinhas da Flora. Madrinhas de consideração.” Respondeu astutamente a mamãe.

“Ahhhhhh!” Disse a Carla e a Sônia em coro. “Assim não vale.” Inteirou a Sônia.

Todas nós rimos.

“E você Letícia? Quando é que vai botar a coleira no motoboy?” Perguntou a Carla.

“Ah...Pra casar precisa de dinheiro. E pra ganhar dinheiro só acertando na Mega Sena.”

“Xiii, Letícia. Desse jeito você vai fazer bodas de ouro de namoro.” Satirizou a Sônia.

Todas gargalhamos novamente.

“E você Michele? Já desencalhou ou tá na mesma situação da nossa amiga?” perguntou a Carla.

Bom, todo mundo que me conhece sabe que eu DESTESTO falar sobre essas coisas, principalmente porque minha resposta sempre é a mesma. Não, não sou casada. Ou Não, não tenho namorado. Ou ainda Não, ainda não tenho vontade de ter filhos.

“Não, eu...não tenho namorado.” Respondi timidamente como sempre.

“Ahhhh.” Todas lamentaram com um coro.

“Mas isso não vai ser problema. O Fábio do setor de vendas terminou o namoro não faz muito tempo. Ele é um ótimo partido. Tem até carro.” Sugeriu a Sônia.

Ai meu Deus! Era tudo que eu precisava ouvir agora.

“Não, não. Eu sei de um rapaz que a Michele vai A-D-O-R-A-R. É o meu primo Jefferson. Ele acabou da sair da faculdade de Ciências Contábeis, e é estudioso igual a ela.” Propôs a Letícia.

Mais uma vez fui salva pelo gongo, quero dizer, pelo garçom que já vinha trazendo a comida.

O prato do dia era bife a rolê com legumes e purê de batata e estava uma delicia. Levamos mais uns vinte minutos até terminarmos de comer e pagar a conta.

No caminho de volta enquanto as outras meninas iam na frente conversando, a Leda diminuiu o passo e se aproximou de mim.

“Está tudo bem, Michele?” ela me perguntou com um ar de mãe preocupada.

“Tá.” Respondi forçando um sorriso.

Percebendo o meu desanimo, completou.

“Não ligue para o que elas falam. Aquelas duas são linguarudas, mas são boas pessoas.”

“Leda?” titubeei ao pensar se deveria ou não tocar no assunto.

“Sim.” Respondeu em tom de expectativa.

Fiquei olhando para ela que, com sua expressão de curiosidade, não me deu outra alternativa a não ser prosseguir o assunto.

“O doutor Rodrigues já teve muitas secretárias desde que ele assumiu a presidência.”

“Sim, algumas.” Respondeu ela inferindo aonde eu queria chegar.

“E a maioria delas não durou muito tempo no cargo.”

“Michele, não se preocupe com isso. O doutor Rodrigues gosta muito do seu trabalho.”

Fiquei olhando para ela desconfiada.

“Se ele não gostasse de você, não teria te colocado para trabalhar dentro da sala dele.”

Fiquei olhando para ela com ar confuso e pensativo.

“Leda?” mais uma vez cogitei que seria melhor não seguir adiante. “O que aconteceu com a secretária do doutor Rodrigues? Aquela de quem as meninas estavam falando?”

Ela me lançou um olhar de incredulidade. Respirou fundo e depois me respondeu.

“O doutor Rodrigues é um rapaz jovem, bem abastado, e isso costuma atrair as moças. Eu não sei sobre a vida pessoal dele. E para dizer a verdade não tenho o menor interesse em saber. Não sei o que houve entre eles para que ela decidisse sair da empresa, mas posso te garantir que seu chefe é um homem muito profissional.”

Ela me lançou um sorriso de conforto. Eu o retribui e desviei o olhar.

Será que eu vou entrar para as estatísticas junto com as outras secretárias? Será que a barra vai ser tão pesada que além de perder o emprego, vou acabar num consultório psiquiátrico? É melhor a Leda estar certa. E Deus me ajude se ela não estiver!

 

* * *

 “Mesa para dois, por favor.”

Era meio dia e dez quando eu e o Emerson chegamos ao Porto Belo, um charmoso e agradável restaurante localizado na rua João de Alcantra, próximo à Avenida Imperial. Na maior parte dos dias, costumamos almoçar ali, já que o restaurante oferece uma variedade de pratos quentes e saladas, além de ter o melhor menu de frutos do mar de Mongrado.

Nos acomodamos na mesa e logo o garçom já nos trouxe o cardápio.

“Um filé Chateaubriand, por favor.” Disse ao garçom devolvendo-lhe o cardápio.

“E eu vou querer um Salmon Vol au Vent.” Decidiu o Emerson.

"Os senhores gostariam de ver a carta de vinhos?” ofereceu o garçom.

“Por favor.” Respondi.

Como o Emerson preferiu não beber (já que, de acordo com ele, a noite tinha sido forte, e ele queria poupar um pouco o seu fígado) eu acabei por escolher um proseco Pinot Bianco.

“E então? O que você decidiu sobre a negociação com a Merck?” me perguntou ele.

“Ah...” balbuciei com um pesar. “Ainda estou num dilema. Inclusive precisamos revisar alguns pontos da proposta de compra.”

O garçom já se aproximava trazendo as bebidas.

“Eles disseram que se a Luna Vita assinar um contrato de cinco anos de exclusividade, eles nos repassam oito por cento do valor anual de compras em abatimento futuros. Só que pelas minhas contas o valor ainda vai estar quinze por cento acima do segundo orçamento mais caro.”

“Que é de qual empresa?”

“Da Sollum.” Disse dando um gole na espumante.

“Mas a qualidade da Merck nem se compara a da Sollum.”

“Não mesmo. Mas ainda sim são reagentes de boa qualidade. A questão é que já fizemos isso o ano passado. Optamos por fornecedores com custos mais baixos, repassamos a economia para o preço final dos produtos e ainda sim as vendas não aumentaram.”

“E você está cogitando a possibilidade de aumentar a qualidade dos reagente para melhorar a qualidade dos produtos e isso ser refletido nas vendas.”

“É uma possiblidade.” Sugeri coçando o queixo. “Mas há o risco dessa estratégia não dar certo. E se isso acontecer vai gerar um grande abalo nas finanças da empresa.”

O Emerson permaneceu um tempo refletindo sobre o que eu havia dito. Deu um gole na sua água mineral e voltou sua atenção para mim.

“Você já conversou com o Rogério?”

“Não sei no que o Departamento de Marketing poderia ajudar nisso.”

“Como não, meu brother! Podemos usar isso como propaganda. Anunciar que os produtos agora estão sob nova fórmula.”

“É...ainda não sei...” minhas temporas começavam a doer um pouco.

“Se você está tão indeciso sobre o fechamento do negócio, porque não consulta nossa mais nova Assistente de Assuntos Disciplinares?” disse ele com um sorriso sarcástico.

“Ah irmão! Nem me fale nessa aí.” E dei um suspiro profundo.

“Ouvi dizer que hoje de manhã ela já chegou dando carteirada em todo mundo.” Disse ele se divertindo com o assunto.

“Nossa.... Foi um circo de horrores. Parecia mais dona da empresa do que eu e você juntos.” Disse perplexo.

“Mas e então? Você não deu o bilhete azul pra ela?”

“Vontade não me faltou. Mas já viu, né? Não estou com a mínima paciência de ficar ouvindo o mimimi do Arthur mais uma vez essa semana. Vamos dar tempo ao tempo. Se as coisas piorarem eu tomo uma providencia mais drástica.” Falar nesse assunto só piorava a minha dor de cabeça.

“E a sua nova secretária?” disse ele com um sorriso sarcástico e malicioso.

“Ah...Hoje ainda é o segundo dia dela. Por enquanto não tive motivos pra manda-la embora. Ela me parece uma pessoa de confiança, apesar de ser um pouco lenta.”

“Mas também, com aquele peso todo! Deve levar uma semana pra andar da secretaria até o elevador, que por sorte ainda não despencou. Vai ver que ela sobe pelas escadas.” Disse ele rindo. Logo depois mudou de assunto “Mas e a princesa de Asturias? Que fim levou aquela história?”

“Ela agora vai ficar na mesa da secretaria. E a Michele vai ficar na salinha do arquivo morto.”

“Irmão?! Aquela sala tem uns vinte anos que não é aberta! Vai saber o que habita ali dentro. Mas também, do jeito que a sua secretária é feia, a hora que ela entrar todos os bichos vão sair correndo dali de dentro. Não vai precisar nem chamar o pessoal da limpeza.” Ele agora ria com mais de intensidade.

Desviei a atenção da conversa quando vi o garçom chegando com nossos pratos. Retirei o guardanapo da mesa e coloquei-o sobre meu colo.

“Uhm, esse salmão tá ótimo!” elogiou o Emerson.

Passei a mão sobre o bolso do meu paletó e percebi que meu celular tinha ficado desligado durante toda a manhã. Liguei-o novamente e não deu cinco minutos o número maldito voltou a me telefonar.

“Toma, Emerson. Atende pra mim.” Disse estendendo o telefone para ele.

Ele tomou o celular da minha mão, meio confuso e atendeu a ligação.

“Alô?...Da parte de quem?...Acho que você discou o número errado...Não, ele não está aqui...É urgente?” ele olhou para mim e começou a rir. “Não, não meu anjo. Acho melhor você ligar neste número aqui.” E passou um numero de telefone que eu não fazia ideia de quem era. “OK. Tchau!” e encerrou a ligação.

“Roberta Morgado.” Disse ele rindo e me devolvendo o celular.

“Ah.” Disse enfadado. “Todas as mulheres deveriam usar um crachá identificando o nível de maluquice: pouco maluca, maluca histérica, maluca chorona, maluca fugida do manicômio.”

“Hehe....Essa aí deve ser essa ultima que você falou.” Disse ele gargalhando. “Mas também! Você tem uma mão pra escolher mulher. Aonde você conheceu essa aí?”

“No desfile da Aqua Marina do ano passado.”

“E você tá esse tempo todo cozinhando ela?”

“Não. Faz uns seis meses, ou mais, que a gente não sai.” Disse limpando a boca com o guardanapo.

“Ah, eu não irmão! Prefiro as humildes. A gente dá um gelo e elas logo saem do nosso pé.”

“Ah, meu caro! Essa sua teoria aí, só funciona com você. Comigo tanto faz ser modelo, médica, advogada ou vendedora de cachorro quente.”

Terminamos a refeição em menos de uma hora. Acenei para o garçom e entreguei a ele o cartão de crédito da empresa.

Enquanto aguardávamos o valete trazer os nossos carros, meu celular tocou novamente, mas desta vez ao invés de um número desconhecido, apareceu na tela a foto de uma mulher de meia idade, de cabelos castanhos curtos e sorriso largo.

“Oi mãe!”

“Meu filho! Já estava preocupada! Liguei a manhã inteira no seu celular e só caia na caixa postal. Depois liguei na empresa e ninguém sabia onde você estava.”

“Ah, não se preocupe. Tive alguns contratempos, mas agora já está tudo bem. E você? Está tudo bem?”

“Está! Só estou ligando mesmo para saber se você está bem.”

“Está tudo bem, mãe.”

“Tudo bem mesmo?”

“Sim. Tudo bem.”

Ela permaneceu alguns segundos em silencio.

“Tem alguma coisa te preocupando, meu filho?”

“Não, mãe. Só as preocupações de sempre. Assuntos da empresa. Nada de mais.”

“É só isso mesmo?”

“Sim, mãe.”

Ela ficou em silencio por mais alguns segundos.

“Então está bem, meu filho. Deus te abençoe.”

“Obrigado, mãe. Tchau.”

Desliguei o telefone e o coloquei de volta no bolso do paletó. Meu carro chegou primeiro. Dei a gorjeta para o valete que me entregou a chave, e segui em direção à saída do restaurante. Mãe tem um nariz pra farejar problema. É impressionante!

 

* * *

“Olá, meu amor!”

Andressa se inclinou para beijar Arthur que se esquivou da moça.

“Me conte tudo o que aconteceu hoje naquela empresa.”

Arthur saiu do trabalho por volta das seis da tarde e foi direto para o apartamento de dois quartos da rua Antônio Cabral onde havia instalado sua namorada há alguns meses.

“Calma, meu amor! Relaxa. Vamos tomar um banho, daí então a gente conversa.” Disse ela tirando o paletó do namorado.

“Não. Primeiro conversamos.” Disse ele secamente.

Ela olhou para ele com cara de garota mimada que foi contrariada.

Ele segurou o queixo dela, trouxe para perto do seu e lhe deu um longo beijo.

“Quero que me conte tudo, OK?” disse o homem quase sussurrando.

Ela assentiu com a cabeça. Ele a puxou pelo braço e ambos se sentaram no sofá.

“Cheguei na empresa e logo o Celso me levou ao departamento pessoal para assinar meu contrato. Daí então ele me levou para fazer um tour pela empresa. Me mostrou os departamentos, me apresentou aos chefes de cada um deles, me explicou sobre a empresa, suas relações comerciais, seus produtos, me levou até aos laboratórios, e então finalmente ele me mostrou a sala onde eu iria trabalhar.”

Ela fez uma pausa e transformou sua expressão em algo que denotava que se sentia triste e injustiçada.

“Meu amor! Que horror! Eles queriam me colocar numa sala horrorosa. Sem janelas, sem ventilação, com cheiro de mofo, toda caindo aos pedaços. Ai! Me senti tão humilhada.” E levou as mãos ao rosto.

“Pedi para que me trocassem de sala, mas nem o Celso e nem ninguém naquele departamento sequer cogitou essa possibilidade.” Ela cada vez mais se vitimizava.

“Foi então, meu amor, que eu tive a maior sorte do mundo. O Ricardo veio até o departamento administrativo, que é onde eles queriam me colocar, e disse para que eu fosse até a sala dele, e você não vai acreditar.” Sua expressão agora era de orgulho e alegria. Arthur manteve seu semblante frio durante todo o relato da moça.

“Ele me colocou no lugar onde era a secretaria da presidência.” Ela sorria empolgada aguardando alguma reação do namorado.

“Mas e a secretária? Ficou aonde?”

“Ah, não sei! Na dispensa, no almoxarifado, na masmorra...O que importa, meu amor, é que agora eu vou estar mais perto dele do que eu poderia estar. Eu vou poder saber de tudo o que acontece na presidência.” Disse ela se inclinando para beijá-lo, que novamente se esquivou.

“Isso foi um bom avanço. Mas ainda não é o bastante. Quero que você se aproxime mais dele. Seja gentil, agradável. Ofereça algo para ele de vez em quando. Chegue na sala dele como quem não quer nada trazendo uma água, um café. Leia mais sobre as notícias de economia e o mercado de cosméticos. Converse sobre esses assuntos com ele. E aos poucos, vá conseguindo as informações que eu preciso. Transações comerciais, estratégias de marketing, informações sobre os clientes e principalmente os números. Quero saber sobre cada centavo que entra e que sai daquela empresa.”

Ela se aproximou novamente dele, mas ele a segurou e ela o olhou nos olhos.

“Entendeu?” disse em tom sedutor.

“Sim, meu amor.” Disse com um sorriso nos lábios.

Ele foi lentamente se aproximando dela, que não objetou sua investida. Os dois se beijaram ardentemente. Ela desatou o nó de sua gravata e ele desabotoou a camisa dela. Os dois foram juntos até o banheiro semidespidos. Quando o barulho do chuveiro surgiu, os dois já não se recordavam mais do assunto tratado há poucos minutos atrás. Da sala só se podia ouvir o barulho da água que caia torrencialmente sobre piso de mármore que recobria o chão do banheiro.

 

* * *

 

Eram 6:55 quando o 105 parou em frente ao ponto da Avenida dos Palmares. O fluxo de carros era praticamente inexistente. Cheguei até o portão de entrada que ainda estava fechado. Do lado de dentro da sede da Luna Vita Cosméticos e Saúde havia apenas o segurança que estava sentado na guarita. Ao ver que eu me aproximava da entrada, ele saiu de seu posto de trabalho e se dirigiu ao portão de entrada segurando um Rottweiler pela coleira.

“Bom dia?” disse ela amigavelmente.

“Bom dia. Eu sou Michele Souza, secretária do doutor Rodrigues.” E mostrei meu crachá a ele.

“Ah, sim. Um momento. Já vou abrir o portão.”

Ele retornou à guarita e pegou o controle remoto. O cachorro permaneceu no mesmo lugar onde ele havia soltado a coleira. O portão se abriu mas, preferi aguardar ele segurar novamente o Rottweiler para que eu entrasse.

Passei pela recepção que tinha todas as suas luzes apagadas e entrei no elevador, que se encontrava no térreo já que não havia chegado ainda uma única alma viva na empresa.

Na tarde de ontem duas moças da limpeza vieram até a presidência para limparem a famigerada sala do arquivo morto que seria meu local de trabalho de agora em diante. As duas moças, eu e a Leda tivemos que aguardar até às três horas da tarde até que finalmente o doutor Rodrigues encontrasse a chave da sala e nos entregasse. E como a Sônia e Carla haviam previsto, havia cobras e lagartos naquela sala (e eu diria quase que literalmente). Além de um acumulo inacreditável de poeira, encontramos uma porção de insetos mortos e BARATAS, MUITAS BARATAS em todos os cantos possíveis da sala. Dentro de caixas de papelão, arquivos de documentos, até dentro das gavetas. A coisa ali dentro estava insustentável, de modo que o doutor Rodrigues teve de ir embora lá pelas quatro horas para que pudesse continuar a trabalhar. Tivemos que dedetizar a sala toda, o que nos mostrou que ali não só habitava uma colônia de insetos como também uma família de ratos que tinha acabado de ter sua ninhada.

Enfim, todo esse transtorno nos tomou a tarde e o começo da noite inteira. Eu, a Leda e as moças da limpeza terminamos de organizar a sala já passavam das nove da noite. Mas o resultado foi fantástico. De um cubículo de uns quatro metros quadrados abarrotado de caixas de papéis, mobília velha, cartazes publicitários, ferramentas, máquinas de escrever, lâmpadas fluorescentes e até um carrinho de supermercado, a pequena sala se transformou em um ambiente completamente vazio e relativamente aconchegante (já que nem todos os litros de desinfetante e nem todos os quilos de naftalina foram suficientes para dispersar todo aquele cheiro de barata que tomava o local). De modo que só hoje é que a equipe técnica poderia vir e instalar as entradas de telefone e internet e trazer a mobília nova. Eu e a Leda achamos por bem que seria melhor resolvermos todos esses assuntos pendentes antes que o doutor Rodrigues chegasse à empresa, o que costumava acontecer por volta das oito e meia da manhã. E é por isso que hoje eu havia chegado uma hora antes do meu horário normal de trabalho para poder aguardar o pessoal do almoxarifado e o pessoal da manutenção e esperar que eles fizessem todos esses ajustes em no máximo uma hora e meia. 

O rapaz da manutenção chegou por volta das 7:10 e levou quase quarenta minutos até instalar tudo: três tomadas, uma para o computador e outras duas para luminárias ou outro tipo de aparelho elétrico que me fosse necessário; um ponto de internet; e um ponto de linha telefônica. Ele também trocou as duas lâmpadas fluorescentes da sala que apesar de estarem funcionando, eram antigas e já não iluminavam tanto quanto as novas. Três rapazes do almoxarifado trouxeram uma escrivaninha de mogno, que me parecia antiga mas bem robusta, com cinco gavetas laterais e uma gaveta que ficava abaixo da superfície do móvel; uma cadeira de computador (essa mais moderna que a escrivaninha) de estofado azul que parecia até ser confortável. Trouxeram também um armário de arquivo, desses convencionais, e uma prateleira de ferro desmontável que em segundos ocupava os fundos da sala. Somente depois das oito horas é que o rapaz do Sistemas trouxe um aparelho telefônico preto com fio, um monitor de 14 polegadas flat screen, uma torre de computador preta, teclados e mouse da mesma cor e uma impressora multifuncional cinza. De modo que às 8:26 todos os equipamentos necessários já estavam devidamente instalados.

“Até que ficou simpática.” Disse o doutor Rodrigues que via o resultado da transformação enquanto tampava o nariz.

Eu, que já tinha passado horas ali dentro, não precisava segurar a respiração enquanto permanecia na sala. Meus nervos olfativos já haviam entrado em coma há muito tempo.

“O rapaz que instalou a linha de telefone disse que precisou trocar o ramal da secretaria. E disse para que eu mandasse um memorando a todos os departamentos avisando da mudança. O ramal da antiga secretaria também mudou, então estou só esperando saber o novo numero para enviar o memorando.”

“OK.” Disse ele saindo da sala e soltando a mão do nariz. “Há!” disse retornando a sala. “Ligue para a Aqua Marina e confirme a minha presença no desfile de lançamento da coleção.” Ele ia saindo novamente quando se lembrou de mais uma coisa. “E fale com o Escobar. Diga a ele que quero dar uma olhada nas peças no final do desfile.” E se dirigiu definitivamente a sua mesa de trabalho.

Sentei-me novamente diante do computador. Ele não me disse nada onde podia encontrar o numero de contato da Aqua Marina, mas por sorte o encontrei na página oficial da marca.

Depois de terminar a tarefa dada pelo meu chefe, abri o word e comecei a digitar o memorando, que previamente, já havia conseguido o modelo, depois de uma busca no padroeiro dos ignorantes, o São Google.

Após terminar de preparar o documento entrei no endereço do e-mail corporativo da empresa. Digitei o login [email protected] e a senha (CarbonosQuirais). Ao abrir a caixa de entrada vi que havia um e-mail novo do Departamento de Sistemas. Nele constavam as informações que eu aguardava para finalizar o memorando.

Anexei o arquivo mem_abril_17 no e-mail e enviei para o grupo @departamentos. Um minuto depois o novo telefone da secretaria da presidência tocou. Nossa! Que rápido!

“Presidência Luna Vita, bom dia?” respondi já não tendo que me esforçar para falar a frase.

“Michele. É a Letícia.” Ela tinha um tom de voz assustado.

“Oi.” Respondi também receosa.

“Michele. Por favor, desce aqui urgente.” Ela falava sussurrando. “Têm uma mulher aqui querendo de qualquer maneira falar com o doutor Rodrigues.”

“Me diz quem é, e eu pergunto se ele pode atender.”

“Não, Michele. Você não tá entendendo. A mulher tá loca. Ela chegou aqui aos berros, querendo saber onde o doutor Rodrigues estava, querendo pegar o elevador. Sorte que o Borges ouviu a gritaria e veio até aqui. Ele e o Samuel tão segurando a mulher agora pra ela não subir aí.”

“Tá bom. Eu já tô descendo.”

A porta da salinha ficava na mesma direção da mesa do Dr. Rodrigues. De onde eu estava sentada, dava para ver ele de costas trabalhando no computador. Saí da minha salinha sorrateiramente, rezando para que ele não me visse sair. Quando eu estava quase perto da porta ele se voltou para mim.

“Aonde você vai?” perguntou desconfiado.

Ai meu Deus! Pensa rápido Michele, pensa rápido.

“Eu vou até a recepção buscar umas correspondências.” Respondi tentando soar despretensiosa.

Ele se virou novamente para a direção do monitor sem dizer mais nada.

Ufa!!!

Fechei a porta por trás de mim e fui correndo até o elevador. Apertei o botão, mas desisti de espera-lo e fui pelas escadas mesmo.

Chegando lá, eu me deparei com uma moça ruiva, bem magra, curvada, chorando, sentada entre os dois homens de quem a Letícia havia me falado.

Fui me aproximando devagar. Ela continuava balbuciando alguma coisa que para mim não fazia o menor sentido.

“É...pois não.” Disse tentando chamar a atenção.

A mulher levantou a cabeça e me olhou confusa, como que não estivesse entendendo o meu motivo de estar ali.

“A senhora precisa de algo?” perguntei tentando parecer amistosa.

“Ricardo. Eu preciso falar com o Ricardo.” Disse a mulher entre soluços.

“O doutor Rodrigues está numa reunião. Qual o seu nome?”

“EU QUERO FALAR COM O RICARDO, JÁ!” a mulher tentou se levantar novamente, mas foi impedida pelos dois homens que seguravam os seus braços.

 Ai meu Deus! O que que eu faço?

“Se a senhora me der o seu nome, assim que ele estiver disponível, eu digo a ele que a senhora está aqui.”

“NÃO. NÃO. NÃAOOOOOAAA.” A mulher chorava convulsivamente.

Eu me virei para a Letícia e mexi os lábios: Trás um copo d’água.

A Letícia mais que prontamente saiu da recepção e seguiu pelas escadas.

Eu me aproximei e me agachei em frente à mulher que tampava o rosto enquanto chorava.

Meio minuto depois a Leticia trouxe um copo de vidro alto, com água até a borda.

Segurei a mão da moça e a entreguei o copo d’água. Ela aceitou a oferta sem protestar.

“A senhora precisa se acalmar. Se não vai ficar muito difícil da gente te ajudar.”

A mulher olhou para mim com um semblante mais sereno, como que estivesse entendendo o motivo pelo qual precisava se controlar.

“Me diz o seu nome e eu prometo que dou um jeito de trazer o doutor Rodrigues aqui pra conversar com você.”

A mulher me olhava com olhos melancólicos e parecia agora começar a confiar mais em mim.

“Roberta. Roberta Morgado.” Disse ela soluçando.

“OK. Eu vou subir e daqui a pouquinho eu já volto.”

Chamei o elevador que chegou surpreendentemente rápido. Quando a porta se abriu, dei de cara com o doutor Rodrigues, que ao me ver, saiu enfurecido de dentro dele.

“O que você ainda está fazendo aí?”

Eu não tive reação e apenas olhei na direção da mulher.

“SEU MALDITO! SEU CANALHA! SE VOCÊ PENSA QUE VAI FUGIR DE MIM, VOCÊ ESTÁ MUITO ENGANADO.” Os dois funcionários da empresa mal conseguiam segurar a mulher que parecia estar possuída.

Por um momento pensei que meu chefe fosse ter um enfarto, mas ao contrário do que eu imaginava, ele se manteve imóvel, com a mesma expressão imparcial do dia em que eu o conheci.

“Roberta, por favor. Aqui não é local para isso. Vamos para outro lugar e então conversamos.” Disse ele com um tom assustadoramente calmo.

“OUTRO LUGAR COISA NENHUMA. EU NÃO VOU PRA LUGAR NENHUM ANTES DE VOCÊ ME ESCUTAR.”

A mulher se debatia e os dois funcionários por pouco não deixaram ela escapar.

“EU TERMINEI MEU NAMORO. EU PERDI O ÚNICO HOMEM QUE SE IMPORTAVA COMIGO PORQUE VOCÊ ME DISSE QUE QUERIA UM COMPROMISSO SÉRIO. EU ABRI MÃO DE TUDO PORQUE VOCÊ ME JUROU QUE COMIGO IA SER DIFERENTE. E AGORA EU NÃO TENHO MAIS NADA. POR SUA CAUSA.” ela engoliu a saliva e recobrou o folego. “EU PERDI TUDO POR SUA CULPA. MAS SE VOCÊ PENSA QUE VAI FICAR ASSIM. NÃO VAI NÃO. EU VOU ACABAR COM A SUA VIDA! E SE VOCÊ TENTAR FUGIR DE NOVO. EU TE ACHO. EU VOU ATÉ O INFERNO. MAS EU TE ACHO...” 

Ela berrava e chorava com tanto sofrimento que suas pernas foram perdendo a força e ela foi se esvaindo pelo chão.

Ninguém na recepção conseguia sequer se mover. Nem mesmo o doutor Rodrigues.

Eu me aproximei dela e segurei seus braços para tentar erguê-la. Sem a ajuda dos rapazes eu consegui coloca-la de pé. Olhei-a bem nos olhos e tentei reconquistar a confiança que ela havia me depositado minutos atrás. Foi quando de repente ela atirou o copo de água vazio que ainda estava em suas mãos. Em uma reação reflexa tentei segurar a mão da moça, mas não obtive sucesso. Ela esmagou o copo em cheio no rosto do doutor Rodrigues que tinha se aproximado dela e estava a meu lado quando ela desferiu o golpe. Eu, assustada e surpresa, me virei na direção do meu chefe. O lado esquerdo do rosto do doutor Rodrigues parecia uma cascata de sangue. Na confusão os dois rapazes puxaram a moça para trás. O doutor Rodrigues, num ato instintivo, levou a mão ao rosto no lado do ferimento e ao tocá-lo, tingiu sua mão com seu próprio sangue.

“Doutor, o senhor está bem?”

Ele ignorou minha pergunta já que a resposta era mais do que obvia.

Ele se dirigiu direto ao elevador que ainda estava no térreo. Ao ver ele saindo, eu o segui e entrei no elevador logo depois dele. Ele apertou o numero seis e o elevador começou a se deslocar. Eu olhava para o seu rosto vermelho e não conseguia dizer nada. Ele tocava o ferimento e olhava para a mão coberta de sangue repetidas vezes. Ao chegar ao sexto andar ele foi direto para a sua sala. A Andrea e a Andressa ao verem o estado dele assumiram uma expressão de pavor.

“Michele. O que foi que aconteceu?” disse a Andrea com seu tom de pele alvo que agora estava transparente.

Olhei para a Andressa que também tinha a expressão assustada. Ao perceber a moça ali, achei por bem não dar maiores detalhes.

“Ai! Depois eu te explico. Onde eu posso conseguir algum curativo?”

Pensei na minha bolsa e lembrei que só havia um pacotinho de Band-Aid, que eu costumava levar comigo no caso do sapato machucar.

A Andrea abriu a bolsa de neném e tirou um esparadrapo microprore e um pacote de lenços umedecidos.

“Toma isso por enquanto. Vou ligar para as meninas e ver se elas têm mais alguma coisa.”

Segui direto para a sala da presidência e quando entrei não vi ninguém. Chamei pelo Dr. Rodrigues que me respondeu de seu banheiro privativo.

Ele havia tirado seu paletó, que tinha a parte do ombro e do bolso da frente manchados de sangue. A camisa azul clara tinha alguns respingos de água resultantes, provavelmente, de sua tentativa de lavar o rosto. Ele segurava contra o olho esquerdo um tufo de papel higiênico. Ao me ver trazendo os produtos ignorou minha presença, se virou para o espelho, tirou o papel do olho e tentou avaliar o estrago em seu rosto.

Com o ferimento um pouco menos sujo, deu para ver que a origem de todo aquele sangue tinha sido de um pequeno corte na pálpebra logo abaixo da sobrancelha. 

“Michele. Trouxe mais isso aqui.”

A Andrea junto da Leda entrou no banheiro trazendo um frasco de agua oxigenada, e três caixas de Band-Aid.

Olhei as opções e percebi que elas não ajudavam muito.

“Andrea. Você tem tesourinha de bebê?”

“Tenho.” E saiu para busca-la.

“Doutor. Posso dar uma olhadinha no seu rosto?”

Ele titubeou por alguns instantes, provavelmente porque, cogitar a possibilidade de confiar em alguém que mal conseguia cumprir com sua função de secretária era algo mais do que arriscado. Mas creio que não havia muita escolha nesse exato momento. Ele, que era muito mais alto do que eu, se curvou um pouco e eu tentei ficar na ponta dos pés e me aproximar de seu rosto para confirmar as minhas suspeitas.

O corte ainda sangrava um pouco e parecia ser bem profundo.

“O que o senhor fez antes de eu chegar?”

Ele ficou me olhando sem entender o que eu queria dizer.

“O senhor lavou o rosto?”

“Ah, sim! Molhei o rosto e depois segurei o papel contra o olho para estancar o sangue.”

“Então tá! É...acho melhor o senhor lavar o rosto novamente. Só que dessa vez com água e sabão.”

“Não precisa. Têm água oxigenada aqui.” Disse a Leda.

“Não, é melhor não. A água oxigenada dificulta a cicatrização. E além disso, o sabão higieniza melhor o ferimento.”

A Leda e o doutor Rodrigues me olharam com um ar de Então tá! Se você está dizendo.

Ele apertou o pump do suporte de sabonete líquido duas vezes, abriu a torneira e ensaboou o rosto conforme eu o recomendei.

“Pode dar uma esfregadinha de leve no corte. Mesmo que sangre um pouco. É bom higienizar bem pra não ter perigo de infeccionar.”

Ele me obedeceu como um paciente seguindo as recomendações de seu médico.

Depois de enxaguar bem o rosto, enxugou-o com toalha de papel. Me aproximei mais uma vez do rosto dele e avaliei novamente o estado do corte.

“O corte não está mais sangrando, mas ainda está um pouco aberto.” Constatei.

“Michele. A tesourinha.” A Andrea que já estava ali há um tempo me entregou o que eu havia pedido.

Ele se sentou sobre a tampa da privada para facilitar o meu trabalho, e também para evitar que tivesse uma escoliose. Lavei minhas mãos, enxuguei-as bem e comecei a preparar o curativo. Peguei o micropore e fui cortando varias tirinhas fininhas e colando no dorso da minha mão. Depois pressionei as laterais do corte, como que tentando fechá-lo, e fui colando cada tirinha, tomando cuidado para deixar um espaço entre elas para que o ferimento pudesse respirar.

“Você também cortou sua mão.” Disse ele depois de três tirinhas.

Olhei assustada para as minhas mãos e percebi que meu chefe estava certo. Eu tinha um corte superficial, que provavelmente não havia nem sangrado, e que percorria toda a lateral da minha mão direita.

“Nossa! Nem tinha percebido.” E continuei a fazer o curativo.

Quando terminei notei que havia uma plateia me assistindo. A Sônia, a Carla, a Leda, uma outra moça que eu não conhecia e até a Andressa estavam ali paradas na porta do banheiro.

“Bom, agora que está tudo resolvido. Acho que já podem voltar às tarefas que estavam fazendo.”

Todas as funcionárias saíram numa carreira só. Provavelmente com medo de que a bronca fosse piorar. Recolhi os materiais que havia usado e fui em direção a porta a fim de devolvê-los aos seus respectivos donos.

“Michele. Obrigado pelo curativo. Você tem mãos de anjo.”

“De nada, Doutor.” Respondi sorrindo. Nossa! Faz tanto tempo que ninguém elogia alguma coisa que eu faço.

Quando retornei, o doutor Rodrigues já havia retomado o seu trabalho. Segui direto para minha salinha. Ao me ver passar ele chamou o meu nome.

“Michele. Queria me desculpar pelo que ouve na recepção.”

“Não, doutor! O senhor não tem que se desculpar. O que aconteceu ali não foi culpa sua.”

Ele me olhou com uma expressão reflexiva, como se quisesse entender o que eu estava pensando, mas depois de alguns segundos desviou o olhar. Eu, que para variar, me sentia mega inadequada, resolvi voltar para minha salinha.

“Licença, doutor.”

Sentei na minha mesa de trabalho e fiquei revisitando as memórias daquele incidente tenebroso. E analisando tudo o que aquela moça havia dito, conclui que ele realmente tinha culpa, pelo menos indiretamente, sobre o que tinha acontecido mais cedo na recepção da Luna Vita.

 

* * *

 

O portão de entrada da Chambre de Luxe, local onde nesta noite iria acontecer o desfile de lançamento da coleção 2013 da Aqua Marina, estava repleto de pessoas, entre elas membros da equipe de apoio do evento, curiosos e fotógrafos, muitos fotógrafos. O espaço de eventos localizado na Avenida Imperial tem mais de dois mil metros quadrados e é um dos locais mais requisitados para os principais eventos sociais de Mongrado.

Eram 7:09 da noite e eu ainda estava há uns dezoito carros da entrada do evento. No convite, o desfile estava marcado para às 7:30 e o coquetel para as nove. E conhecendo bem o Santiago, eu sabia perfeitamente bem que o desfile não iria atrasar nem um minuto.

Desliguei o radio, que transmitia a Voz do Brasil, e abri o porta luvas atrás do meu iPod. Acessei a opção bluetooth e a primeira musica da playlist começou a reverberar pelos auto-falantes do carro.

 

Sometimes I feel like I don't have a partner

Sometimes I feel like my only friend

Is the city I live in, the city of angels

Lonely as I am, together we cry

 

Um dos fotógrafos que andava entre a fila de carros parou e bateu no vidro do carro que estava na frente do meu. A mulher que estava ao volante parecia conhece-lo e os dois começaram a conversar em meio ao transito parado.

 

I drive on her streets 'cause she's my companion

I walk through her hills 'cause she knows who I am

 

I don't ever wanna feel like I did that day. Take me to the place I love, take me all the way.

O rapaz agora percebeu que a fila andava e encerrou a conversa com o carro da frente.

           

It's hard to believe that I'm all alone

At least I have her love, the city she loves me

Lonely as I am, together we cry

 

Olhei no relógio do painel do carro. Eram 7:13. Desse jeito eu só conseguiria entrar quando todo mundo estivesse saindo.

Uns cinco minutos depois a fila começou a andar mais rápido, de modo que cheguei ao portão de entrada às 7:19. Um rapaz que segurava uma prancheta se aproximou do vidro do meu carro.

“Seu nome, por favor.”

“Ricardo Rodrigues.”

“O senhor é representante da Luna Vita Cosméticos.” Afirmou esperando que eu confirmasse a informação.

“Sim.”

Ele foi até a frente do carro e anotou o número da placa, marca e modelo.

“Pode seguir, senhor.”

O estacionamento estava lotado. Encontrei uma vaga a leste da entrada principal a uns dois metros dali.

Duas moças (na verdade modelos) recebiam os convidados. A da direita era morena e usava os cabelos presos em um rabo de cavalo. A da esquerda era loira, um pouco mais alta que a da direita e usava os cabelos soltos na altura dos ombros. Ambas usavam um vestido preto longo. Ao passar por elas, percebi que o vestido tinha um decote generoso nas costas, e infelizmente era tudo o que se podia ver.

Logo que entrei já dei de cara com a Yvanna, dona da Turmalina Boutique, uma das clientes da Luna Vita. O assunto foi curto. Me perguntou sobre minha mãe, o porque de eu ter vindo ao desfile sozinho, quando a Luna Vita iria lançar novos produtos, entre outras perguntas de praxe. Me despedi dela e fui em direção às cadeiras que marginavam a passarela. Sentei na fileira da frente, porque afinal de contas, quem vai pra chuva, volta ensopado pra casa.

E como eu havia previsto, o desfile não tardou em começar. Primeiro a Morgana, que é a diretora comercial da marca, fez o discurso de abertura do evento. Em seguida a musica começou a tocar e a chuva a cair. Todas as modelos usavam roupas neutras (afinal o desfile era de joias) muito semelhantes às usadas pelas duas moças que recepcionavam os convidados na entrada, o que de certa forma funcionou a meu favor já que minha atenção acabava por ser direcionada aos protagonistas do desfile (anéis, colares e brincos). A maioria das peças eram de ônix ou de olho de tigre. Mas uma delas, um anel de quartzo azul, me chamou bastante a atenção, não só pela modelo, que tinha os olhos combinando com o anel, mas também porque me pareceu a peça perfeita para o que eu estava buscando.

Ao final do desfile, o Santiago (o Designer da marca) não podia perder a oportunidade de rasgar todos os metros de seda possíveis com todas as modelos e principalmente com sua equipe criativa. Fez também um pronunciamento de que parte da arrecadação das vendas da noite seriam revertidas em doações para três instituições de caridade, o que motivou um ovacionamento por parte da plateia. Eu não podia negar que o Santiago era a alma da Aqua Marina e que grande parte do prestigio da marca vinha de seu carisma, mas que a jaguatirica do serrado não perdia a oportunidade, sempre que falava comigo, de tentar me converter para o lado de lá. Há... isso era dose!

Em cinco minutos a equipe de apoio desmontou a passarela para o início do coquetel. Não tardou muito eu avistar a morena de rabo de cavalo, mas sempre que eu tentava me aproximar dela aparecia algum cliente da Luna Vita para puxar conversinha. Foi então que eu desisti de investir na morena e fui logo falar com o Escobar sobre a reserva do anel de quartzo azul.

Ele me mostrou a peça, que de perto era muito mais bonita do que no desfile (em grande parte por causa da modelo). Ele descreveu o anel como sendo de ouro dezoito quilates, pedra com corte princesa e lapidação esmeralda. De fato era a peça perfeita para o eu que precisava.

“É para alguma ocasião especial?”

“Na verdade sim.”

Ele continuou me olhando aguardando que eu completasse a resposta.

“Éhhh...sim. É um presente de aniversário.”

“Ah! E quem seria a donzela a ser contemplada com tal preciosidade?”

“Minha mãe.”

Ele pareceu ficar um pouco desconcertado.

“Ah! Mas que ótimo presente. Ela com certeza vai adorar.”

E qual mulher não adoraria.

“Posso deixar reservado.”

“Claro. Só que a peça deve ser retirada até o fim da semana.”

“OK. Sem problemas.”

“Ah! Que bom!” disse ele retorcendo seu bigode de estimação.

“O senhor, por favor, assine aqui e aqui.” E me apontou as linhas pontilhadas da nota de reserva e do certificado de garantia.

“Pronto. É só isso. Obrigado.” E apertamos as mãos consagrando o negócio.

O coquetel a essa altura estava bombando, mas infelizmente meus ofícios me chamavam e eu não poderia me tardar mais.

“Ricardo!”

Não é possível que esse aprendiz de alma penada me persegue até aqui.

“Arthur? Que surpresa! Não te vi durante o desfile.”

“É que cheguei só depois. O que foi isso no seu olho? Se meteu em alguma briga?”

Por toda a noite eu havia me esquecido completamente de que ainda tinha o supercílio cortado com o mesmo curativo feito pela manhã.

“Não, não. Isso foi um pequeno acidente.”

Ele me olhou com seu típico ar de deboche.

“Infelizmente não pude chegar a tempo de ver o desfile. Como foi?”

“Um sucesso como sempre. As peças da coleção estão de muito bom gosto. O Santiago disse que levou três anos para conseguir tirar suas ideias do papel.”

 “Que bom. Fico contente por ele. Só acho uma pena que a Luna Vita não tenha sido a marca de cosméticos oficial do evento deste ano.”

De fato, nos últimos cinco anos consecutivos, os produtos da Luna Vita foram exclusivamente usados por maquiadores e cabelereiros durante o desfile. Neste ano, a Aqua Marina não havia entrado em contato com a empresa para a formação da parceria.

“O mercado está muito competitivo. E o Santiago é a favor de dar oportunidade para novas marcas.”

“Não foi bem isso que eu ouvi dizer por aqui. Pelo que me parece, a Luna Vita não foi a marca oficial do desfile deste ano porque a qualidade dos seus produtos tem deixado muito a desejar.”

Ele me olhou com uma cara de repreensão e eu tive vontade de arrancar os olhos dele.

“Isso não é verdade. A Luna Vita tem um dos padrões de qualidade mais altos do país.”

“Não foi bem isso que os organizadores me disseram.” Ele se divertia como uma tia fofoqueira. “Se eu fosse você. Começaria desde já a reformular o catálogo da Luna Vita. Começando pela qualidade da matéria prima.”

Nesse momento eu não sabia mais se eu estava suando por causa do calor, ou por causa da raiva, ou se na verdade eu estava suando frio por não poder enfiar a mão na cara do Arthur na frente de todo mundo.

“Você me dá licença? Um dos clientes da Adamite está acenando para mim.”

Na altura do campeonato eu não me dei nem ao trabalho de responder.

Mas não é possível que aquele filhote de Deus me livre aparece na metade do evento só para me provocar. Parece que o prazer dele é torcer para ver a empresa afundar. Mas ele é quem está enganado. Amanhã bem cedo entro em contato com o pessoal da Merck. Ele que aguarde o que lhe espera. Ele que pague pra ver.       

           

* * *

 

Cheguei em casa já passavam das oito da noite. A televisão estava desligada e aparentemente não havia ninguém. Minha impressão foi desmentida quando entrei no quarto e me deparei com uma moça de cabelos castanhos bem longos que no momento estavam presos num coque improvisado. Belíssima, ela se olhava no espelho que ficava fixado na porta do nosso guarda-roupas e ao qual era possível se ver de corpo inteiro. Vestida num vestido branco longo frente única, com busto em recorte coração cravejado de pedras Swarovsky, recorte em diagonal e cauda média também cravejada ela se virou para mim com um sorriso de orelha a orelha.

“Isa! Você tá linda!” Eu estava quase tão emocionada quanto ela. “Ficô pronto hoje?” eu a admirava enquanto colocava minhas coisas sobre a cama.

“Ficô. Fui buscar ainda agorinha” ela se virava de um lado para o outro admirando o vestido em seus trezentos e sessenta graus.

“Ai, Isa. O Pedro vai ficar tão feliz quando te ver assim.” Apesar de não ser alta, ela tem um corpo levemente longilíneo, o que a faz parecer ainda mais elegante e alta quando usa roupas justas com corte reto.

 A Isadora parou de admirar seu vestido de noiva por um instante e se voltou para mim.

“E você mocinha? Eu ainda não vi o vestido da minha madrinha de casamento.” Disse em tom de repreensão.

“A costureira me disse que quando estivesse pronto me ligava.”

O fato é que a Isa é muito ansiosa, e por esse motivo preferi que ela não visse meu vestido antes que estivesse pronto. Caso contrário ela iria achar um monte de defeitos. Michele, esse vestido tá muito largo! Michele, vê se não tampa tanto esse decote! Michele, essa cor tá parecendo cor de vestido de velório de avó. Michele...E blá blá blá.

“Você nem me ouse deixar pra pegar esse vestido na ultima hora! Alias, já era para estar pronto antes do meu.” A Isadora sempre franze a sobrancelha quando está brava.

“Calma, Isa. Amanhã eu prometo que ligo pra ela.”

“Acho bom!” e se virou novamente para o espelho. “Mi? E essa bando de sacolas aí na sua cama?” ela reparou pelo reflexo do espelho.

“Há, não é nada. Passei no shopping e comprei umas coisinhas pra colocar na minha sala.”

“Uhm! Você é uma secretária que tem sala.” Admirou ela.

“Não é bem isso que você está pensando.” Olhei para ela com ar de descrença. “Na verdade eu fico numa salinha que fica dentro da sala da presidência. E diga-se de passagem, mal cabe nós duas juntas ali dentro.”

Nesse momento a campainha tocou. Como nesse horário ninguém costuma aparecer em casa, supus que pudesse novamente ser o menino do 301 perguntando se tinha acontecido uma chuva de meteoros no nosso apartamento ou se nós também havíamos recebidos a visita de alienígenas na noite passada.

Fui até a porta e olhei pelo olho mágico, que surpreendentemente me revelou um rapaz de cabelos castanhos encaracolados, vestindo calça jeans e uma camisa da seleção brasileira. Saí correndo de volta para o quarto.

“Isa, é o Pedro.”

“Ai, minha nossa. Fecha logo a porta desse quarto.” Obedeci e voltei a entrada do apartamento.

“Oi Pedro!” disse abrindo a porta e dando passagem para ele.

“A Isa ainda não chegou?” disse ele procurando pelo apartamento.

“Não...é...já. Ela já chegou sim.” Quando me deparei que ele quase estava abrindo a porta do quarto.

“NÃÃÃÃO.” E segurei a maçaneta antes dele. “Ela tá se trocando.” Disse olhando para ele aflita.

“Então tá!” e tentou novamente abrir a porta do quarto.

“NÃÃÃO....é...Ela não tá se trocando....tipo....normal.”

“Tipo normal?!” disse ele rindo com incredulidade nas minhas palavras.

“É, ela tá...é...” vestindo uma roupa de astronauta, é por isso que você não pode ver.

“É o vestido de noiva? Ela tá experimentando o vestido de noiva?”

"Nãããão. Não é isso, é que ela tá...” plantando bananeira vestida de astronauta, é isso.

“É, sim. É o vestido de noiva.” E tentou abrir mais uma vez a porta.

“NÃÃÃO.” E dei um berro segurando a maçaneta. “O vestido ainda não tá pronto. Ela tá no quarto vestindo outra coisa.”

“Mas qual o problema. Eu quero ver.” Ele me olhava incrédulo e eu segurava a maçaneta fazendo cara de pitbull raivoso.

“Se você encostar mais uma vez nessa maçaneta eu te atiro na pia da cozinha.” E eu falava sério.

“Mas que superstição mais boba!” E aproximou seu rosto da porta. “Isa, deixa eu entrar?”

“Nem morta!” gritou ela.

“Isa. Deixa de bobeira. Cê acha que eu vou deixar de casar com você por causa disso?”

“Pedro Oliveira Martins. Se você não se afastar dessa porta, você vai casar com os dois olhos roxos.”

Ele decidiu que seria melhor obedecer o que sua futura esposa dizia.

“Mi, eu preciso que você me ajude com uma coisinha.” O Pedro estava sentado no sofá da sala.

“Vira pra parede.” Disse a ele como um policial falando com o bandido.

Ele deu uma risadinha nervosa como se estivesse apavorado por estar no apartamento de duas malucas.

Quando ele se virou eu fui até a cozinha e peguei uma cadeira. Aguardei um pouco antes de abrir a porta para ver se ele não iria tentar trapacear.

“Só vira de volta quando eu tiver fechado a porta.” E virei a maçaneta prestando atenção caso ele tentasse bancar o engraçadinho.

Fechei a porta por trás de mim e apoiei a cadeira entre a maçaneta e o rodapé, para não ter perigo dele tentar entrar.

“O zíper emperrou.” Disse ela falando baixinho, com o braço direito levantado apontando para a lateral do vestido.

O zíper deslizou suave ao longo do vestido. Acho que ela deve ter ficado nervosa e por isso não conseguiu abri-lo.

Ela tirou o vestido e eu ajudei a dobra-lo e a guarda-lo dentro da caixa. Depois de colocar o pijama ela saiu pela porta com cara de brava.

“O que que você quer?” disse furiosa.

“Calma. Mas que fera é essa minha noiva!” disse ele abraçando e beijando a Isa, que se esquivava.

“Que mulher mais braba! Essa minha mulher é muito braba!” ela continuava tentando se desvencilhar e ele não a soltava.

“Não tem graça, Pedro.” Ela tentou se virar de costas para ele, mas ele não deixou.

Quando ela cansou de tentar se desvencilhar dele, ele segurou o rosto dela e disse olhando em seus olhos.

“Sua boba! Eu caso com você até vestida de saco de lixo.” E beijou seus lábios.

“Ai, credo, Pedro!” e se soltou dele. “Não fala uma coisa dessas nem brincando!”

Ela foi, ainda com raiva, em direção à cozinha. Abriu o armário e tirou três pratos, depois foi até a geladeira e tirou a travessa de macarrão que nós duas havíamos preparado no jantar de ontem.

Fiquei olhando a reação do Pedro enquanto ela arrumava a mesa. Mesmo ela tendo o contrariado, ele ainda a olhava com olhos doces. Eles de fato sempre foram muito apaixonados, e são até hoje. Apesar da Isa ter se ofendido com o Pedro por ter insinuado que não se importava com as formalidades matrimoniais, eu achei aquilo muito fofo. Se um homem falasse uma coisa dessas para mim, teria sido a maior declaração de amor que eu teria recebido na minha vida.

 

            * * *

 

O Pedro foi embora logo depois do jantar. Disse que ainda tinha algumas coisas para arrumar no apartamento onde ele e sua em breve esposa iriam morar depois de casados. Eu e a Isadora ainda assistimos a metade final da novela das nove, que acabou mais cedo por causa do jogo. Zapiando pelos canais, descobrimos que às dez iria passar Meia-Noite em Paris e como nós duas amamos esse filme, resolvemos que valeria a penar dormir um pouquinho mais tarde para assisti-lo novamente.

Enquanto o filme não começava, fomos para a cozinha fazer pipoca (não por mim, que não faço a menor questão da tal iguaria, mas pela Isa, que diz que filme sem pipoca é igual a namoro sem beijo). Enquanto o óleo não esquentava e os grãozinhos não pulavam me sentei à mesa e peguei uma banana da fruteira.

“Eu não tô vendo mais aquela alegria nos seus olhos.” Disse a Isadora depois de alguns minutos.

Eu que estava completamente distraída só respondi: O quê?

“Desde o dia que você recebeu a noticia de que tinha sido contratada. Eu não vi mais aqueles olhinhos contentes em você.”

Não sabia o que responder então continuei quieta.

“Tá acontecendo alguma coisa no seu trabalho?” perguntou ela com seu típico tom de preocupação.

Acontecendo alguma coisa?! No meu trabalho?! Não! Nada demais. Só tem um acionista megalomaníaco querendo puxar o tapete do meu chefe. Uma loira de farmácia trabalhando como espiã pra ele. Umas colegas de trabalho que não me param de fazer perguntas constrangedoras. E de vez em quando uma ex-namorada maluca do meu chefe atirando copos na cara das pessoas. Fora isso... nada!

“Ah. É que as coisas não são tão fáceis quanto parece.” Respondi desanimada.

“O que foi? Eles não tão te tratando bem?” ela parecia uma mãe compreensiva conversando sobre o porquê de a filha ter tirado uma nota baixa na escola.

“Não. Não é isso.” Titubeei por alguns momentos. “É que eu nunca tenho certeza se eu tô ou não tô agradando o meu chefe. Eu nunca sei se o que eu fiz tá bom, tá correto. E eu tenho medo de perguntar.” Levantei as sobrancelhas e inclinei o canto da boca para baixo.

“Mas você não concorda que se você tivesse fazendo algo de errado ele iria falar?”

“Sim.” E não só falaria como já falou! “É que ele tá sempre sério. Eu nunca sei o que ele tá pensando. Se ele tá satisfeito com o meu trabalho ou se ele só tá me tolerando enquanto não arranja alguém pra botar no meu lugar.”

“Mi, se você tá tão insegura assim com o seu emprego, você deveria fazer alguma coisa que chamasse a atenção dele.”

O que raios no mundo eu poderia fazer pra chamar a atenção do meu chefe?!

Tibuquê?” disse enquanto mastigava.

“Ah! Não sei. Tipo fazer alguma coisa que impressionasse ele. Alguma coisa que mostrasse pra ele o quão competente você é.”

Continuei mastigando e olhando para a Isa com cara de alface.

“Mi, você é química, pós-graduada. Não é possível que os seus conhecimentos não sirvam pra nada numa empresa de cosméticos!”

Os grãozinhos de milhos começaram a estalar na panela. Como sempre a Isa estava certa. Por mais que como secretária eu fosse um zero a esquerda, eu não podia negar que no aspecto conhecimentos teóricos sobre cosméticos eu tinha certa vantagem sobre as secretárias anteriores.

 A Isa se virou na minha direção já com a tigela de pipoca nas mãos.

“Vâmo, Mi, que o filme já vai começar!”

Eu e a Isa nos dirigimos ao sofá e aumentamos o volume da TV. Mais alguns minutos e os créditos iniciais entraram na tela. Aquelas imagens de Paris, aquela trilha sonora dos anos 20.

Ahhhhnnn...” suspiramos ao mesmo tempo sem desgrudar os olhos da TV.

 

* * *

 

“Michele? Michele, você está aí?”

A porta da sala da presidência mal tinha se aberto e eu já ouvia a voz do meu chefe chamando por mim. Me levantei de minha mesa mais que prontamente e fui ligeira até a entrada da sala.

“Sim, senhor.” Respondi quase ofegante.

“Entre em contato com todos os gerentes de setores e diretores e marque uma reunião para semana que vêm. Pode ser na terça ou quarta. É necessário que todos estejam presentes. Caso haja algum impedimento por parte de algum deles me avise e vemos como podemos remanejar a data.” O Dr. Rodrigues depositava suas coisas sobre o sofá enquanto me instruía sobre a tarefa.

“Quero também que entre em contato com o gerente do Banco Imperial e marque um horário com ele. Diga que preciso conversar com ele com urgência. Mas antes, ligue para o Peter e repasse a ligação na minha mesa.”

Enquanto ele se acomodava em sua mesa de trabalho eu retornava para a minha. Não fazia menor ideia de quem era esse Peter e muito menos como entrar em contato com ele. Poderia perguntar, mas fiquei com medo de levar mais uma bronca.

“Michele?”

Levantei depressa e por pouco não derrubo a luminária cor de rosa que havia comprado ontem e que ficava presa bem na beirada da mesa.

“Pois não, doutor.”

“Você tem o número do Peter?” disse ele desconfiado da resposta.

“Não.” Respondei soando indecisa.

“Então porque não me pediu?” disse soando levemente enfurecido.

Não soube o que responder então permaneci em silencio. Ele abriu uma das gavetas do armário que ficava atrás dele e retirou uma pequena pasta onde havia diversos cartões de visita.

“Tome. Salve esse numero junto com os outros contados comerciais e depois me devolva o cartão.”

“Sim, senhor.” Respondi quase com um sussurro.

No cartão se via o logo da Merck no canto superior esquerdo, as insígnias EMD no canto direito e no centro as inscrições Peter Douglas, International Sales Representative. South America. Certamente esse tal Peter deveria ser americano, ou canadense. Disquei o numero conforme indicado no cartão e para confirmação das minhas suspeitas uma voz masculina dizendo Yes? soou do outro lado da linha.

Good Morning. I’m Ricardo Rodrigues’ secretary, from Luna Vita. He would like to speak with you.”

Ricardo? Sure.”

Apertei o primeiro botão da coluna da direita que discava o ramal da sala da presidência.

“Doutor? O Peter já está na linha.”

“Certo. Obrigado.”

Transferi a ligação e comecei a entrar em contato com os representantes dos departamentos da empresa. Alguns minutos depois percebi meu chefe em pé me olhando com um sorrisinho no rosto, parado na porta da minha salinha. Para variar olhei para ele assustada.

“O Peter me perguntou se eu havia contratado uma secretária americana.”

Não sabia se aquilo era bom ou ruim então me mantive impassível.

“Mas fique sabendo que ele fala um pouco de português então não precisa ficar exibindo suas habilidades de poliglota.” Disse com um meio sorriso.

Sorri de volta, meio aflita. Por melhor que seja a tentativa do meu chefe em descontrair eu não consigo me livrar do pânico que surge toda vez que ouço ele dizendo o meu nome.

“Calma. Não precisa ficar chateada. Você pode falar com os nossos clientes na língua que você quiser. Desde que eles te entendam, é claro!”

Desta vez sorri mais tranquilamente. Afinal de contas ele não iria terminar me dando uma bronca.

“Já ligou para o banco?” ele mudou de um tom descontraído para um tom sério em menos de um segundo.

 “Liguei, mas o gerente disse que só poderia conversar com o senhor agora de manhã...”

“Então ligue para ele novamente e diga que já estou a caminho.” Ele já ía saindo quando deu meia volta. “Já marcou a reunião com os diretores?”

“Ainda não consegui falar com todos eles, mas até agora não surgiu nenhum imprevisto da parte de ninguém.”

“Ótimo. Estou saindo e provavelmente volto só depois do almoço. Caso precise falar comigo ligue para o meu celular. Ah! E mais uma coisa. Peça para que os diretores te enviem um resumo do estado atual dos departamentos. Custos, produtividade, painel de funcionários, entre outros detalhes pertinentes a cada setor. Assim que recebê-los imprima uma cópia e deixe sobre a minha mesa.”

“Sim, senhor.”

O doutor Rodrigues saiu da presidência feito um furacão. Retornei ao começo da lista de ramais dos departamentos a fim de comunicar sobre a decisão recém-tomada pelo presidente. Foi então que tive uma ideia que poderia definitivamente garantir meu cargo de secretária da presidência, e dependendo da repercussão que ela causasse, poderia ser pelo resto da minha vida.

 

* * *

 

Retornei do horário de almoço carregando no braço todas as revistas de saúde e beleza que haviam na banca de jornal, que ficava em frente à Luna Vita. Também comprei um exemplar da revista Forbes, que como todo mundo sabe, é a revista mais conceituada de economia no mundo.

O meu plano para garantir de uma vez por todas a minha vaga de secretária da presidência consistia em formular um relatório contendo não só o estado da arte das principais empresas do ramo de cosméticos e saúde, como também a correlação do design, qualidade e formulação de seus principais produtos com os registros de arrecadações anuais de cada uma dessas empresas.

Eu sei que essa tarefa não será nada fácil e que fazer um relatório dessa magnitude vai me dar um trabalho homérico. Mas se com esse relatório eu conseguir impressionar meu chefe, sei que nunca mais vou estremecer toda vez que ele gritar o meu nome.

Se tudo correr bem posso trabalhar nele hoje e amanhã durante todo o dia sem maiores problemas. No sábado não vai dar por causa do casamento da Isadora, mas no domingo, posso pegar pesado e termina-lo até a noite, de modo que na segunda eu faço os ajustes restantes e apresento-o na reunião de terça.

Entrei na minha sala, depositei as revistas sobre a escrivaninha, me acomodei na cadeira e comecei a devorá-las com a fúria e os olhos de uma águia. Nada no mundo iria tirar o meu foco desse relatório.

 

* * *

“E aí meu brother?”

Eram quinze para uma da tarde quando tirei meu celular do bolso e verifiquei que havia três chamadas perdidas do vice-presidente da Luna Vita. Levei quase três horas tentando convencer o Antônio Pascoal, gerente do Banco Imperial, do quão sólida são as perspectivas de crescimento da empresa e o quanto estamos empenhados em ampliar nossas fronteiras comerciais. Contudo, todo esse esforço valeu a pena.

“Fala irmão!” disse enquanto caminhava pelo estacionamento do banco.

“E aí? Conseguiu fazer o gerente tirar o escorpião do bolso?”

“Cinco milhões.”

Houve alguns segundos de silencio do outro lado da linha enquanto ouvia o vice-presidente engolindo em seco.

“Emerson? Você ainda tá aí?”

“Meu caro presidente, devo reconhecer que seu talento na arte da sedução não se estende só às mulheres.”

“É, mas não vá cantando vitória antes do tempo. A Luna Vita só conseguiu quarenta por cento do valor integral da dívida que ela vai adquirir com a Merck. Vamos ter que rezar para que eles nos dêem um prazo maior pro abatimento.” Entrei no carro e coloquei o cinto de segurança.

“Ah, presidente. Não se preocupe quanto a isso. O Peter tá doido pra ampliar o comércio da Merck na América Latina. É só a gente apresentar a ele uns três representantes de laboratórios farmacêuticos aqui no país, que rapidinho ele nos dá um novo plano de abatimento.”

“Mas e você?” perguntei enquanto passava pela cancela do estacionamento.

“Já enviei o resumo do balanço financeiro conforme solicitado pela sua Rinocetária.”

“Ótimo. Você já almoçou?”

“Já.”

“OK. Então acho que vou direto para a empresa. Nos vemos por lá.”

Encerrei a ligação e disquei o número da empresa.

“Michele? Providencie alguma coisa para eu comer. Estou saindo do banco e indo direto pra aí. Pode ser um sanduíche ou algo que seja rápido... Certo, nos falamos quando eu chegar.”

O trânsito da uma hora da tarde estava infernal. Além de quase ter atropelado uma velhinha que esqueceu que hoje em dia existem coisas chamadas faixa de pedestres e semáforos e que, obrigatoriamente devem ser utilizados; quase tive o retrovisor direito arrancando por dois motoboys. Cheguei a Luna Vita já eram quase duas da tarde. Ao entrar na minha sala, me deparei com uma moça loira de vermelho, sentada na cadeira de visitas, aparentemente aguardando o meu retorno.

“Onde está a Michele?”

“Ricardo! Ela deu uma saidinha, mas já volta. Olha só”. Ela se levantou e apontou para minha mesa. “Soube que você não iria ter tempo pra almoçar então preparei uma coisinha leve pra você comer.”

Sobre a mesa havia uma embalagem descartável contendo algum tipo de salada, uma garrafa de mate gelado, um copo e talheres.

Qualé?! Tá querendo me envenenar?!

“Obrigado, mas não precisava se incomodar. Eu já havia pedido a Michele que providenciasse meu almoço antes de chegar aqui...”

“Nãaaaooo, isso não foi trabalho nenhum”. Ela sorriu inocentemente e estendeu a mão na direção da minha cadeira, como que dando a deixa para que eu sentasse e fizesse proveito da refeição.

Olhei-a desconfiadamente e me sentei. Nem por um decreto do papa eu iria encostar naquela comida. Na certa aquela salada estava cheia de pó de pirlimpimpim.

“Ricardo...é...nós ainda não tivemos tempo de nos conhecer direito. Desde aquele dia...é...eu não queria que você tivesse uma impressão equivocada sobre mim...”

“Pode ficar tranqüila. Eu não tenho nenhuma impressão equivocada sobre você.”

Ela soltou um riso constrangido e continuou.

“Eu queria conversar com você...”

“Se for sobre assuntos referentes à empresa, vai ter primeiro que marcar um horário.”

Ela mais uma vez sorriu de forma constrangida.

“Nãaaaoo...é...Ricardo...Eu estou aqui na qualidade de uma amiga. Eu quero apenas conversar sobre coisas triviais, apenas para que possamos nos conhecer melhor.”

Para a minha sorte e alívio, eis que adentra a sala da presidência, ofegante, carregando duas sacolas, a minha famigerada secretária.

“Doutor....uhhh....desculpe....uhhh...eu....eles erraram o endereço....uhhh...eu tive que ir buscar....uhhhh...”

“Tudo bem, Michele. Não precisa se explicar. Pode colocar as sacolas aqui sobre a minha mesa.”

Ela se aproximou e depositou duas sacolas que pelo cheiro pareciam conter algum tipo de massa. Uhm! Parece delicioso!

“Doutor...uhhh...eu vou lá embaixo...pegar um copo d’água....”

“Nananão. Pode beber aqui mesmo. Ali no frigobar tem água gelada e em cima tem uma garrafa de vidro com água natural. “

Ela seguiu minhas instruções e se serviu de água pelo menos umas três vezes.

“Uhm...lasanha a bolonhesa! Está com uma cara ótima! Andressa agradeço a gentileza de tentar suprir as responsabilidades da minha secretária. Vou comer e depois tenho muito trabalho.”

Para minha surpresa ela se mancou que não era bem vinda ali e saiu de fininho com o rabo entre as pernas.

“O que foi aquilo? Um tentativa de sabotagem?”

A Michele parou por uns segundos com ar confuso.

“Foi ela! No mínimo ela me viu conversando com a Leda sobre o restaurante que o senhor costuma comer e ligou lá mudando o endereço do pedido”. Disse num tom de epifania.

“Pegue isso aqui e dê um fim.” Disse apontando para a refeição trazida pela loira de vermelho.

Ela assentiu com a cabeça e retirou a comida. Quando voltou, pedi para que ela entrasse em contato com o Peter. Afinal de contas não tínhamos tempo a perder. Principalmente agora que o Arthur estava cada vez mais colocando suas manguinhas de fora.

 

* * *

 

Aproveitei o período da tarde da quinta-feira para trabalhar no meu projeto. Até então, nos meus 28 anos de vida, eu poderia contar nos dedos as vezes que entrei numa perfumaria para comprar algum item de beleza. A quantidade e a variedade de produtos anunciados nas revistas era assustadora. Até dois dias atrás eu mal fazia idéia do que era um Touche eclat e se alguém me pedisse para comprar água termal, eu automaticamente reservaria uma passagem para Pousada do Rio Quente.

A parte dos números, a principio, me pareceu assustadora, mas tomando como base os relatórios enviados pelos departamentos, não foi tão difícil criar um gráfico comparando as cifras arrecadadas pela Luna Vita e seus concorrentes, de modo que na sexta de manhã praticamente metade do relatório já estava pronto. Faltava ainda acrescentar algumas informações sobre a opinião dos consumidores a respeito dos produtos tanto da Luna Vita quanto das principais marcas concorrentes.

“Michele!”

Ai, eu tava até estranhando esse silencio a manhã toda!

“Pois, não doutor.”

“Gostaria que me fizesse um favor.” Ele se levantou de sua mesa e foi em direção ao sofá onde estava sua valise. “Um favor pessoal, eu quero dizer.” Ele retirou dela um talão de cheques e começou a preenchê-lo. “Quero que vá ate a loja da Aqua Marina e retire uma peça reservada em meu nome.” Ele me entregou um cheque e um papel dobrado ao meio. “O endereço está no cabeçalho da nota de reserva.”

No papel dobrado constava que a loja em questão estava localizada na Rua Monsenhor Pilatos, local do qual e não fazia a menor idéia como chegar. Naturalmente que eu não iria perguntar ao meu chefe qual ônibus passava mais perto dali, então decidi descer até o quarto andar e mais uma vez abusar da boa vontade da Leda.

Saí da presidência e percebi que a loira falsificada não estava em seu local de trabalho. Meu radar piscando alerta vermelho acionou na hora.

“Andréa. Você sabe onde a Andressa foi?”

“Não, Michele. Acho que ela ainda não chegou.”

Ufa!

 Entrei no elevador e segui rumo a terceira sala à esquerda do quarto andar.

“Leda, pelo amor de Deus...”

“O que foi agora menina?” perguntou com um meio sorriso preocupado.

“Como eu chego aqui?” e apontei para o endereço da loja.

“Rua Monsenhor Pilates...acho que é uma que cruza com a Comendador Tamandaré...”

Nesse momento a Sônia entrou.

“Comendador Tamandaré? Fica lá no centro, do lado daquela galeria de arte famosa...”

“Não, Sônia. A Michele precisa ir até a Monsenhor Pilates.”

“Numa loja chamada Aqua Marina.” Completei.

“Ah! É uma joalheria chiquetona. Fica lá perto mesmo, dessa galeria de arte. Mas porque você precisa ir lá?”

Não preciso nem dizer que, na hora, a Leda lançou um olhar de reprovação na direção da Sônia.

“O doutor Rodrigues me pediu pra buscar uma encomenda...”

“Xiii. Têm chero de mulher nessa história.” Disse ela com uma risada sinistra.

Mais uma vez a Leda só faltou puxar a orelha da Sônia e colocá-la de castigo.  

A Sônia me explicou tintim por tintim como chegar até essa joalheria.

“Quando você ver a placa da Velasco e Prado Imóveis, toca o sinal pra descer.” Disse ela fazendo a mímica do que estava dizendo.

“Ok, gente. Brigada.” E saí na direção do elevador.

Levei em torno de uma hora entre esperar o 56 passar e chegar até o ponto de referencia dado pela minha colega de empresa. Já passava do meio dia e eu estava torcendo para que a loja não fechasse no horário de almoço. E para minha sorte não estava.

“Boa tarde. Vim buscar uma peça reservada no nome do doutor Rodrigues...éee...Ricardo Rodrigues.”

“Ah, sim! Um momento.”

Entreguei ao rapaz alto e sisudo a nota de reserva que, em seguida, subiu por uma escada em espiral. Essa, provavelmente, dava acesso ao estoque, ou ao cofre, ou a algum lugar onde eles guardam as joias. Enquanto o aguardava, pude notar o quão sofisticada era a loja. As vitrines eram totens de vidro compostas por módulos que giravam em direções opostas aos módulos subjacentes. Por entre eles passava uma luz azul que dava a impressão de que os módulos estavam cheios de água em movimento. Nas paredes havia inscrições em baixo relevo que se assemelhavam a corais marinhos e as demais mobílias como poltronas e cadeiras também tinham o estofado com estampas que remetiam ao movimento da água. Tudo era fascinantemente lindo!

Nesse momento o atendente desceu as escadas trazendo um objeto pequeno nas mãos. De perto, pude notar que na verdade aquela era a caixa contendo o item em questão. Seu design não parecia em nada com as caixas de jóias que costumamos ver na televisão. Tinha um formato meio prismático e era revestida com um tecido branco que, conforme a luz, emitia algumas cores, quase que furta cor, mas diferente.

Ele me mostrou a peça: um anel de ouro com uma pedra azul muito bonita. Aguardou que eu demonstrasse algum sinal de Sim, está tudo em ordem e colocou a caixa dentro da sacola da loja. Essa pelo menos era um pouco mais comum, branca e tinha o logotipo da marca inscrito em dourado.

Eu lhe entreguei o cheque. Três mil duzentos e quarenta e cinco reais. Nossa! Agradeci o atendimento e saí da loja. Isso já era quase uma da tarde.

Foi quando meu celular tocou. Tirei da bolsa e vi que a ligação era de um número desconhecido. Achei estranho, pois ninguém nunca me liga (com exceção da Isa).

“Alô?”

“Michele. Você já chegou na loja?” era o doutor Rodrigues.

“Já sim, doutor. Já peguei a sua encomenda.”

“Ótimo. Estou ligando porque havia me esquecido de pedir pra você comprar uma caixa de presente.”

“Uma caixa?”

 “Sim...éeee...como você deve ter notado...essa encomenda que você pegou é um anel, que eu vou dar de presente de aniversário pra minha mãe.”

“Ah, sim!”

“Você poderia fazer mais esse favor pra mim?”

“Claro, doutor.” Ai meu Deus! Onde é que eu vou encontrar um lugar pra comprar uma caixa de presentes justamente aqui, no reduto dos magnatas.

“OK. Obrigado, Michele.”

“De nada.” Ai minha nossa senhora da bicicletinha, não passa ninguém por aqui pra eu pedir uma informação?

Resolvi então ligar no número da empresa e perguntar novamente à Leda.

E para minha decepção nem ela nem ninguém do departamento sabia como resolver o meu problema.

Foi quando de repente eu olhei para o outro lado da rua e vi uma loja com uma placa escrita: Panacini – Artigos de Escritório. Talvez eu encontre alguma coisa que dê pelo menos pra improvisar uma caixa de presente.

Atravessei a rua e fui em direção à loja. Porém no meio do caminho, me deparo, do outro lado da rua, com um Renault Symbol vermelho estacionado enfrente a loja que eu estava me dirigindo. De dentro dele saiu uma mulher loira chacolhando os cabelos e indo em direção à loja ao lado.

  E de repente, do nada, eu ouço o barulho de uma buzina estridente bem no meu ouvido. Quando me virei na direção do ruído, vi, vindo em minha direção, uma moto a toda velocidade. Tentei correr, mas não fui nem para a frente e nem para trás e no susto, a sacola com o logotipo da Aqua marina voou da minha mão no sentido da rua. Saí correndo, desesperada, mas era tarde demais. O motociclista já havia passado por cima da sacola.

NÃAAAAAOOOOO!!!!!!

Depois de ter resgatado a sacola com seu conteúdo completamente esmagado vi de longe a loira, me olhando, com olhos sarcásticos e um sorriso maquiavélico nos lábios.

 

* * *

 

“Bom, a caixa não tem problema. Posso lhe dar outra como cortesia da casa, mas o anel...”. O homem alto e sisudo fazia uma cara de caso sem jeito.

“Mas moço, têm que ter um jeito de consertar. O anel é de metal flexível, e nem tá tão amassado assim.”

A peça mais se assemelhava a um broche do que a um anel.

“Sim, consertar é possível, mas vai levar um tempo.”

“Quanto tempo?” minhas mãos já estavam unidas, prontas para a hora que eu fosse precisar rezar uma Ave Maria.

“Por volta de sete dias.”

“Não, moço! Pelo Amooooooorrr de Deus. Se meu chefe se der conta eu tô NO OLHO DA RUA. O senhor tem que dar um jeito de consertar hoje.”

Ele mais uma vez fez aquela cara que tanto me afligia.

“Já sei! O senhor faz o seguinte. O senhor me faz um outro pacote, só que com outro anel. Daí até o meu chefe perceber que o anel está errado já deu tempo de consertar...eu acho...”

“Não, infelizmente eu não posso fazer isso. Nenhuma peça sai daqui sem o devido requerimento prévio.”

Ai meu Deus eu vô choraaaaa...

“Moço, o senhor não tá entendendo. EU VOU PRO OLHO DA RUA, tipo, eu vou ficar sem emprego, sem casa, sem ter o que comer, ou seja, NO OLHO DA RUA.”

“Infelizmente eu não posso fazer nada.” Ele me olhava com uma cara blasé.

Tive outra idéia.

“Então o senhor faz o seguinte. O senhor disse que me daria uma caixa nova como cortesia, não é?” ele assentiu com a cabeça mantendo o mesmo semblante. “Daí o senhor me dá a caixa. Eu arranjo um outro anel e coloco dentro, e entrego para o meu chefe como se nada tivesse acontecido. Então ele entrega o presente pra a mãe dele e quando ele se der conta que o anel não está correto, eu digo pra ele não se preocupar que eu resolvo isso. Digo a ele que vocês ainda estão tentando descobrir o paradeiro do anel verdadeiro, até que o conserto fique pronto, e assim ele não vai desconfiar de nada.”

Olhei para o atendente com cara de coitada e olhos suplicantes, mas creio que minha tentativa de recriar uma versão do Gato de Botas não tenha dado muito certo.

   “Não vejo nenhum problema no seu plano. Desde que a senhorita arque com as despesas do conserto.” E me soltou um sorriso malicioso.

“E o senhor tem ideia do quanto seria?”

“Creio que por volta de mil reais.”

BUUUUUAAAAAAAAAA!!!!!!

“Quanto?” eu estava quase desfalecendo.

Ele não quis repetir o valor.

“OK.” Disse sem acreditar muito nas minhas palavras.

Ele mais uma vez subiu a escada em espiral e retornou minutos depois com um formulário.

“O senhor manda para o conserto. E quando estiver pronto me avisa nesse numero aqui.” E apontei para o numero do meu celular anotado no formulário para o pedido de restauração da joia.

“Perfeitamente, senhorita.” e me entregou a caixa dentro da sacola branca e dourada.

Sai da loja sem sentir o chão sob os meus pés. Não é possível que uma coisa minimamente corriqueira pudesse ter se transformado em um mar em tormenta. Segui por aquela mesma rua sem destino definido. Andei talvez cinco ou seis quarteirões quando me deparei com um promo shopping. Acho que já saí da zona magnata.

Entrei e logo em um dos primeiros stands estava uma lojinha de bijuterias. Comprei um anel dourado de pedra azul completamente diferente daquele escolhido pelo doutor, que me custou quinze reais. Coloquei a caixa da Aqua marina dentro de uma outra caixa (que na verdade era um porta-joias mas que para as atuais circunstancia se passava muito bem por uma caixa de presente) e coloquei-a dentro de uma outra sacolinha com motivos florais.

A primeira parte do problema estava resolvida. Só faltava agora enrolar o meu chefe até o conserto ficar pronto e arranjar MIL REAIS para pagá-lo.

Só isso! Pensei com vontade de chorar e seguindo rumo ao ponto de ônibus em frente ao promo shopping.

 

* * *

 

“Ah! Até que enfim!”

Eram quase três da tarde quando cheguei de volta a Luna Vita. Tentei parecer cansada, na tentativa de esconder que na verdade eu estava desesperada.

“E então? Correu tudo bem?”

“Sim, doutor. Só deu um pouco de trabalho pra achar a caixa de presente.”

Ele abriu a sacolinha e retirou o porta-joias.

“Que caixa diferente, onde você comprou?”

“Numa loja mais ou menos próxima da joalheria.” Disse com pouco entusiasmo.

“Me diga quanto eu lhe devo pela caixa e pelo táxi.”

Como eu sou burra. Não é possível que eu nem pensei nisso. Imagina se me assaltam no ônibus? Bom, na pior das hipóteses iriam roubar um anel de bijuteria.

Pensei em dizer que eu tinha ido e voltado de ônibus, mas esse mesmo senso de perigo poderia se despertar no meu chefe, e agora não era uma boa hora para dar qualquer explicação.

“Não precisa, doutor.”

“Que isso?! É lógico que precisa. Além disso você me fez um favor que não tem nada a ver com o seu trabalho.”

Ele colocou a mão no bolso interno do paletó e pegou a carteira, tirou uma nota de cem reais e me estendeu.

“Ai, doutor. Não precisa, eu fico sem graça.”

“Eu é que fico sem graça de abusar da sua bondade.” E estendeu mais enfaticamente a nota na minha direção.

Desisti de protestar e peguei a nota.

“Obrigada.” Disse envergonhada.

“Eu é que agradeço, Michele.”

“Doutor?”

“Sim?”

“Quando é o aniversário da sua mãe?”

“Sábado que vem. Por quê?”

“Por nada. Diga a ela que eu mandei um feliz aniversário.”

“Digo sim.” Ele sorriu.

“Com licença, doutor.” E fui para minha salinha.

Não sentia a menor vontade de trabalhar no meu projeto. De repente, todo aquele esforço parecia em vão. Meu chefe nem tinha descoberto a cilada em que eu havia me metido, e eu já me sentia despedida.

Cheguei em casa eram 7:35. A Isa não estava, e por um lado achei até bom, porque se ela me visse nesse estado, iria soltar uma rajada de perguntas pelas quais eu não iria querer dar qualquer explicação. Sentei na beirada da minha cama, arranquei os sapatos e me deitei olhando para o ventilador de teto.

Como é que eu vou arranjar mil reais até semana que vem. Pra Isa nem pensar. O dinheiro dela tá todo investido no casamento e na lua de mel, e fora que eu iria ter que contar timtim pot timtim do que aconteceu. Pra alguma das meninas da empresa? Acho que elas não teriam essa quantia pra me emprestar. Pros meus pais? Não. Isso também está fora de cogitação. 

“Pensando na vida, bebê?”

“Oi, Isa.” Disse me levantando com esforço.

“Prontinho! Depilada, massageada, cabelos hidratados, pronta pra ser noiva.”

O vestido! Eu me esqueci completamente de ir buscar o vestido na costureira!

“E você, mocinha? Não tô vendo a senhora se mexer pra ficar bonita.”

Há! Isso ia ser meio difícil!

“O salão tá marcado pra amanhã de manhã.”

“E o resto? Peeling, drenagem linfática...”

“A noiva aqui é você. E mesmo que eu fizesse tudo isso eu iria continuar igual a um Dragão de Comodo.”

“Eeee, para com isso.” Disse ela brava.

Me levantei e fui até a cozinha pensar no que fazer para a janta.

“Têm carne moída no freezer e creme de cebola. A gente podia fazer um bolo de carne fodex.” Disse com cara de quem esperava um sim.

“Esse vai ser o nosso ultimo jantar morando na mesma casa.” Disse ela em tom saudosista.

“Esse vai ser o seu ultimo jantar como senhorita Fontes. A partir de amanhã você janta como senhora Martins.”

Ela sorriu um sorriso orgulhoso, porém triste.

“Então tá. Para o ultimo jantar de senhoritas teremos bolo de carne fodex. Especialidade da senhorita Souza.” Tentei quebrar o clima.

 Ela se sentou à mesa e esperou pacientemente eu preparar o prato da noite. Permanecemos por um longo período conversando sobre coisas bobas da vida. Foi só aí que eu me recordei dos problemas que ela me trazia. Ai ai, é melhor nem pensar. O que não tem remédio, remediado está!

 

* * *

 

 

“Oooiii meu amor!”

Andressa chegou ao restaurante Monte dos Palmares as sete e cinquenta e cinco da noite empolgadíssima, principalmente após verificar que seu namorado já a aguardava em uma das mesas ao fundo do restaurante.

“Nossa, como foi difícil encontrar esse restaurante! Porque você decidiu vir para cá? O Maison Blanche sempre foi nosso lugar favorito.”

Arthur, que apreciava mais sua namorada quando esta estava de boca fechada, não perdeu tempo quanto ao assunto a ser tratado.

“Andressa, sente-se. Temos muito o que conversar.”

Ele acenou para o garçom que veio em sua direção instantaneamente.

“Por favor uma taça de Bergström, safra de 2010.” Disse sem consultar o cardápio. “Amanhã bem cedo embarco para Los Angeles.” Disse ele secamente.

“Ahhh, mas já?! Você não ia viajar só no mês que vem?”

“Mudança de planos de ultima hora. Agora me diga você. Como andam as coisas na Luna Vita.”

“Ah, meu amor. Nada de mais, pelo que parece vai ocorrer uma reunião com os diretores na terça.”

O garçom trazendo uma taça de vinho se aproximou da mesa e a moça pausou a conversa.

“Obrigada.” Disse sem olhar para o garçom. “E até lá não sei o que...”

“NÃO É POSSÍVEL, ANDRESSA!” disse em um tom de voz mais alterado para sucessivamente retornar ao seu estado normal. “Você está há quatro dias naquela empresa e não sabe absolutamente nada a não ser o que todos os outros funcionários já sabem.”

Ela se encolheu levemente e mudou sua feição para uma expressão de choro.

“Mas eu tentei, meu amor. Ontem eu consegui ficar a sós com o Ricardo. Mas parece que quanto mais eu tento ser gentil, mais as pessoas me maltratam.” Disse com seu típico tom de vítima.

“Pois trate de dar um jeito de descobrir alguma coisa. Se transforme em um mosquito e descubra o que esta acontecendo naquela presidência de qualquer maneira.”

“Meu amor. Na terça. Eu juro que até lá eu descubro alguma coisa sobre o andamento da empresa.”

“Acho bom mesmo, ou caso contrário esqueça da sua mesada.” Arthur tinha a testa enrijecida pelo nervosismo.

“Não meu amor!” disse a moça em tom de súplica. “Eu juro que vou descobrir alguma coisa.”

“Espero que sim.”

Arthur sorriu maliciosamente e esticou sua mão em busca da mão que pousava opostamente a dele. A mulher estampou em seu rosto um sorriso derretido.

Ele acenou novamente ao garçom e pediu a conta.

Ao assinar o comprovante de débito do cartão de crédito se voltou para a mulher loira que se sentava em sua frente.

“Vamos embora. Agora temos outro tipo de assuntos para tratar.”

Os dois se levantaram e se dirigiram ao portão de saída do estabelecimento. Nenhum dos dois trocaram qualquer palavra até a chegada ao Hotel Oppus da rua Quincas Borba, próximo ao Largo Imperial onde está localizado o Palácio do Governo Municipal.

 

* * *

 

Eram quase nove horas quando meus olhos se abriram no sábado do grande dia. Olhei para a cama ao lado, e ao notá-la devidamente arrumada, percebi que a estrela do dia já havia partido. Tomei um café da manhã rápido e às 9:50, já estava embarcada no 25, que me levaria até a rua João Pelegrino, local onde havia sido confeccionado o meu vestido de madrinha.

  Fiz a ultima prova e constatei que, milagrosamente, desde a visita anterior ao ateliê da dona Rosa, por volta de um mês atrás, o vestido não havia ficado mais justo. Saí do apartamento 12 do prédio 557 e segui a pé diretamente à rua Olavo Bilac, próximo ao Largo Imperial. Elffe’s coiffeur era aonde eu me transformaria em madrinha de casamento da Isadora a partir das onze da manhã.

Eram 15:45 e a Isa já havia me ligado várias vezes para saber se estava tudo bem. Ao invés de me arrumar junto com a noiva, sua família e as outras madrinhas no Maison Belle da Avenida Imperial, preferi ir a um salão de beleza menos badalado cuja dona era filha da dona Lúcia, minha vizinha. 

Tomei um táxi até a Igreja do Sagrado Coração de Maria, que é uma igreja minúscula, quase do tamanho de uma capela, que fica mais para a zona sul de Mongrado, próximo à estação de trem. Pontualmente às 16:22 eu já me dirigia à sacristia da Igreja, apenas esperando a hora que todos os padrinhos entrariam pelo tapete vermelho. Como todas as madrinhas, exceto eu, já tinham seus pares na vida real, a Isa me colocou para entrar com um amigo de trabalho do Pedro, que iria ser padrinho dele e que eu não fazia idéia quem era.

“Michele, esse é o Danilo.” Disse a Dona Alda, mãe do Pedro.

O rapaz era bem branquinho, e bem alto, devia ter quase dois metros de altura, e tinha uma cara de coquer spaniel, tipo daqueles cachorros que pulam em você, mas não mordem.

Ele sorriu a apertou minha mão. Nossa! Quanta formalidade!

As outras madrinhas, que eram quase todas, primas dos noivos, estavam alvoroçadas sobre algum assunto que eu não consegui deduzir. Às 16:40 fomos todos para a lateral da igreja, onde a cerimonialista iria organizar a ordem dos pares a entrarem na igreja.

Não demorou muito, uma moça baixinha e peituda veio na direção do coquer, digo, do Danilo.

“Dan, eu arranjei um lugar lá na frente junto com uma tia do Pedro.” Ela voltou seu olhar para mim e me observou clinicamente. “Tá muito calor nesse terno?” Disse arrumando a gravata do padrinho.

“Não mor. Dá pra agüentar.” Disse ele se inclinando meio sem graça.

Ela mais uma vez olhou para mim rapidamente com um cenho de desdenho

“Tô lá dentro, tá?” Disse fazendo biquinho e aguardando um beijo do namorado. Ela se voltou para a direção da igreja e instantaneamente deu meia volta. “Já tô com saudade!” e novamente beijou o rapaz.

“Eu também.” Respondeu baixinho.

Os dois fizeram mais uma dúzia de chameguinhos até que finalmente ela retornou para o interior da igreja.

É impressão minha ou essa menina veio aqui demarcar território.

Ao cogitar a possibilidade da moça estar fazendo ceninha apenas para verificar quem seria a amiga da noiva que estava preste a entrar na igreja de braços dados com seu namorado, senti vontade de revirar os olhos. Principalmente pelo fato desta pessoa medir 1,70m e pesar pelo menos umas sessenta arrobas. Meu Deus, santa idiotice!

Às 16:50 a banda marcial começou a tocar e todos os convidados que estariam no altar começaram a caminhar pelo tapete vermelho. Devo confessar que senti um misto de vergonha e emoção quando chegou minha vez. É muito bizarro ter duzentos olhos voltados para você. O pai do noivo e a mãe da noiva, e a mãe do noivo respectivamente encabeçaram duas fileiras em meia lua ao redor do altar. Quando o Pedro entrou na igreja tive vontade de rir um pouco. Além de estar pálido feito uma folha A4, tinha os cabelos, que eram tipicamente encaracolados e bagunçados, todo penteado para trás com gel, o que o tornava uma pessoa totalmente diferente do que estávamos acostumados. Apesar disso estava impecavelmente alinhado, carregava uma flor branca pendurada na lapela de seu terno cinza chumbo e usava uma gravata prata digna de um lorde inglês.

Às 17 horas em ponto, a banda começou a tocar a marcha nupcial e a estrela principal da cerimônia apareceu após as portas da igreja se abrirem. Aquele vestido belíssimo que eu havia visto em nosso quarto anteontem, agora mostrava-se como um elemento de uma peça arquitetônica. A Isadora estava estonteantemente linda. E não é porque ela é minha amiga, não! Ela parecia uma mistura de Natalie Portman com Rachel Weiss, só que muito mais bonita que as duas juntas. Sério, acho que se a princesa Kate visse a Isa assim, iria marcar uma renovação de votos com o príncipe William imediatamente e caprichar mais na produção.

Além de linda, a Isa tinha uma leveza ao caminhar pela igreja que dava a ela uma aparência surreal. Ao ver minha melhor amiga assim, senti um nó na garganta que estava difícil de controlar. Mas o que mais me emocionava não era sua beleza, mas a felicidade inquestionável que se estampava em sua expressão. E pela primeira vez em minha vida senti inveja dela. Mas não uma inveja maligna, não, isso nunca! Senti inveja de querer o que ela queria, de sonhar com o que ela sempre sonhou. Senti inveja, pois naquele momento, como nunca antes na minha vida, quis estar em seu lugar e sentir a felicidade que todas as mulheres do mundo sentem quando entram numa igreja. Quis com todas as minhas forças ter a oportunidade de ser feliz da forma mais convencional do mundo. Naquele momento, e talvez somente naquele momento, eu quis como nunca quis antes na minha vida, me casar.

 

* * *

 

“Que foi?”

“Nada.”

Era domingo e eu não fazia a menor idéia de que horas eram e há quantas horas estávamos acordados. A única coisa que podia dizer com certeza é que era dia, pois a luz entrava pelo quarto através das cortinas que se mantinham fechadas, e porque era possível ouvir lá de baixo, o barulho das pessoas transitando pelo condomínio.

Decidi ouvir os conselhos de meu amigo Emerson e começar a diversificar um pouco mais o meu catálogo de entrega delivery. Conheci a Adriana há uns dois meses atrás. Fomos apresentados pelo Marco Tobias, sócio do meu caro amigo Alexandre Ruffini, e co-proprietário da Rivera di Capri, um clube de campo que fica em Primaris, há uns duzentos quilômetros de Mongrado. Ela é filha de um magnata, dono de dois poços de petróleo no Quait, e estava passando férias na casa de uns amigos na cidade. Não levou nem dois minutos para que a conversa fluísse a ponto de chegarmos a uma discussão acalorada sobre qual dos dois herdeiros de Eike Batista torrariam a fortuna do pai primeiro. Mais tarde, ela me contou que havia se formado em psicologia, mas que nunca havia exercido a profissão porque seu pai não a queria metida em um consultório, nem muito menos num hospital psiquiátrico. Ela me passou a impressão de ser uma mulher muito centrada, e por isso, optei por não colocar minhas investidas a diante.

Foi quando nessa semana, o tal do Tobias me liga e diz que a moça estava chegando em Mongrado e que precisava de alguém para lhe apresentar a cidade. Naquele mesmo dia almoçamos no Bistrô e demos uma volta pelo Jardim das Torres. Ela me disse que estava solteira e que no momento não sentia vontade de se envolver com ninguém. Eu por minha vez, disse que também não estava a procura de relacionamentos sérios, mas que via nela algo que não sabia dizer ao certo, mas que era diferente de todas as outras mulheres que havia conhecido. E era verdade, eu juro! Ela a principio não acreditou em mim, mas na sexta à tarde, me ligou dizendo que queria que fizéssemos algo diferente, a sós. E É CLARO QUE EU NÃO IRIA RECUSAR UMA OPORTUNIDADE DESSAS! Perguntei se ela gostaria de jantar no meu apartamento e ela aprovou a ideia na hora. Jantamos na sala, depois fomos para a cozinha, depois para o quarto, depois para o banheiro e depois para o quarto novamente e o resto eu não preciso dizer, você já entendeu.

“Sério, que foi?” disse ela rindo.

“Nada.” respondi meio confuso.

“Você tá me olhando com cara de peixe morto.” 

“Por quê? Não posso olhar pra você?”

“Pode.” Disse sorrindo um sorriso quase enigmático quase malicioso. Deu um longo suspiro e se acomodou melhor na cama. Apoiou a cabeça sobre o meio ombro e o braço esquerdo sobre meu tronco.

“Posso te fazer uma pergunta?” disse ela erguendo a cabeça na direção da minha.

“Pode.” Respondi despretensiosamente.

“Quantas mulheres já passaram por essa cama?”

Permaneci durante segundos em silencio, perplexo pela inusitada pergunta. Mesmo que quisesse responde-la, jamais seria capaz de contabilizar a resposta.

“Porque você quer saber?” perguntei me ajeitando melhor na cama.

“Por nada. Simples curiosidade.” Ela permanecia me olhando aguardando uma resposta.

“Não importa quantas já estiveram aqui, e sim a pessoa que está aqui nesse exato momento.”

Ela gargalhou deliciosamente.

“Sério, Ricardo. Vindo de você eu esperava algo mais criativo.”

Mas eu não falei nenhuma mentira, falei?

“Então OK. Que resposta te soaria melhor?”

Ela pensou por um tempo enquanto brincava com os pelos do meu peito.

“Uhm...Eu diria que sim, muitas mulheres já passaram por essa cama, mas nenhuma delas se tornou dona dela.”

Me afastei dela para que pudesse levantar da cama.

“Preciso urgentemente tomar um banho.” Fui até o closet e vesti uma cueca. “Mas antes acho melhor comermos alguma coisa. Estou morrendo de fome. Você não está com fome também?”.

Segui para a cozinha e abri a geladeira procurando pelos itens do café da manhã.

 

* * *

 

Olhei para o lado, mas o cansaço era tão grande que o horário que aparecia no rádio relógio estava turvo diante dos meus olhos. Era segunda feira e ao contrario do que eu imaginei no começo, confeccionar esse relatório estava sendo, disparado, o trabalho mais difícil e árduo que eu havia feito em toda a minha vida. Quando estava na metade da parte onde constavam as comparações financeiras das empresas brasileiras, percebi que todos os dados que havia coletado eram datados de dois anos atrás. Isso já era domingo à noite. Foi então que decidi começar a pesquisa do zero. E agora, 6:05 da manhã eu ainda estava plotando todos os números e cifras de cada uma das 19 empresas atualmente concorrentes da Luna Vita.

Larguei o notebook de lado e corri para o chuveiro, com medo de adormecer com a cara grudada na tela do Excel. O banho frio ajudou, mas não acabou com o estado letárgico que dominava o meu corpo. Me vesti e depois fui para a cozinha. Comi duas bananas e um copo de leite com achocolatado. Como café nunca me tirou o sono, nem me dei o trabalho de fazer, já que quem costuma tomar, religiosamente, todas as manhãs, é a Isa.

Quando o 105 parou em frente à Luna Vita já eram quase oito horas.

“Bom dia, Lê.”

“Bom dia.” Respondeu a recepcionista como sempre sorridente. “Como foi de fim de semana?”

“Bem. Cansativo, mas bem.”

Ela me olhou com uma cara meio suspeita.

“É que sábado foi o casamento da minha melhor amiga.” É melhor explicar do que ignorar.

“Ah!” disse compreendendo minha resposta.

“Tem alguma correspondência pro doutor Rodrigues?”

“Peraí, dexô vê.” Disse ela se inclinado na direção do balcão. “Ah! Tem sim.”

Ela me estendeu um calhamaço com uns oito envelopes gordos e um fininho, azul clarinho por cima de todos.

“Brigado, Lê. Até mais.”

Apertei o botão do elevador e aguardei o mesmo chegar até o térreo.

“Bom dia, Michele.” Disse o Samuel, o motoboy da empresa.

“Bom dia.”

“Pelo visto, ehn? Vai chovê hoje.”

“É.”

“Dia 20. O banco vai tá cheio. E com chuva...”

De repente percebi que ele estava olhando para mim com uma cara estranha. Esbocei um sorriso enquanto o elevador parava no quarto andar.

“Até.” Disse ele acenado com a mão.

O elevador voltou a se mover e desta vez só parou quando chegou ao sexto andar. A Andrea nem a Loira Oxigenada haviam chegado ainda. Entrei na presidência e segui direto para a minha salinha. Ainda levaria em torno de uma hora até o doutor Rodrigues chegar, e mesmo vesga de ver tantos números dentro de quadradinhos, eu precisava utilizar esse tempo para terminar o relatório.

“Michele.”

“Michele.”

“Michele.”

“MICHELE!”

Eis que nesse momento percebo minha testa sobre meu braço direito, que por sua vez estava apoiado sobre a escrivaninha. Ergui minha cabeça, que com o solavanco, se tornou pesada e vertiginosa. Em frente à mesa estava o doutor Rodrigues, olhando para mim, simplesmente furioso.

“Mal chego e já te encontro aí tirando uma soneca! Não são nem nove da manhã. O que há com você?! Veio trabalhar de ressaca?!”

Eu não sabia se ficava sentada ou se levantava. Minha cabeça girava, minhas bochechas ardiam. Se tentasse levantar era capaz de eu não conseguir ficar em pé. Decidi então por permanecer sentada. Era melhor dar uma explicação no mínimo plausível, mas como alguém poderia justificar o fato de estar dormindo em pleno expediente de trabalho?

“Perdão, doutor. Mil desculpas, mesmo! Eu não sei o que aconteceu comigo...”

“Tá! Vá lavar o rosto. Depois volte aqui que eu preciso conversar com você.”

Ai meu Deus! Eu tô demitida!

Saí ligeira, tentando não tropeçar na mobília. Desci as escadas apoiando nos dois corrimões e segui até o banheiro dos funcionários que ficava no quinto andar.

Ai meu Deus! É agora! Dessa vez não tem escapatória. Ele vai me botar no olho da rua.

Jogava uma torrente de água no rosto que causava frescor e alívio a minha náusea. Depois de uns dois minutos fazendo esse movimento repetidas vezes, fechei o registro e peguei um chumaço de papel toalha para enxugar o rosto.

Não sei até que ponto as gotas sobre meu rosto eram água ou lágrimas. Respirei fundo tentando controlar meu nervosismo.

“Que foi Michele? Cê tá bem?” era a Carla, olhando para mim com cara de quem havia visto uma assombração.

“Tô. Tô bem sim.” E forcei um sorriso.

Ela deu de ombros e saiu. Quando retornei a presidência o doutor Rodrigues já estava acomodado em sua mesa, abrindo a correspondência que eu havia deixado sobre sua mesa hoje cedo.

“Sente-se.” Disse sem olhar para mim.

Puxei a cadeira de couro negro e segui suas instruções.

“Como você sabe, a Luna Vita esta fechando negócio com a Merck. Nossa parceria será uma das maiores já feitas na história dessa empresa. Para isso, estamos requisitando alguns pedidos de empréstimo.”

Ele parou de mexer nas correspondências e olhou para mim.

“Nesse mês, a Luna Vita conseguiu dois empréstimos: um do Banco Imperial e outro do Fundo Nacional de Investimentos. Contudo a quantia arrecadada ainda não foi suficiente para atingirmos o valor necessário para o fechamento da compra. E é por esse motivo que vamos ter que partir para um plano B.”

Ele olhou para mim com uma expressão enigmática, e eu, sem ter a menor ideia do que ele queria expressar, mimetizei suas feições.

“Eu e o Emerson vamos passar um tempo fora do Brasil, provavelmente uma semana, dez dias no máximo, conversando com bancos estrangeiros, a fim de conseguir o montante que falta para completarmos a quantia para a compra. E é nesse momento que eu preciso de você.”

Ele tornou sua expressão ainda mais enigmática. Precisar? De mim?

“Antes de mais nada preciso, hoje mesmo, que você reserve as passagens, minha e do Emerson. Vamos tomar rumos diferentes. Eu vou para Miami e ele vai para Suíça. Essas serão nossas primeiras paradas. Conforme forem as negociações, seguiremos para outros países. Caso isso aconteça, entraremos em contato para a reserva das novas passagens. E o detalhe mais importante: tudo isso estará off the record. Vou lhe passar os números dos cartões de crédito pessoal meu, e do Emerson. As reservas dos hotéis também devem ser feitas com nossos cartões. E mais uma coisa. Não comente, em hipótese alguma, que estaremos fora arrecadando empréstimos. COM NINGUÉM. Entendeu?”

Eu apenas consegui balançar a cabeça.

“Ótimo. Pode voltar para a sua sala. Assim que tiver as informações para as compras das passagens eu lhe chamo.”

Me levantei em silencio e segui para a minha salinha. De alguma forma aquele susto todo havia sido benéfico. Meu sono havia passado quase que completamente. Certamente com uma descarga de adrenalina dessas, nem defunto permaneceria morto no meu lugar.

Passei o mouse pela tela e percebi que minha planilha do Excel ainda estava aberta. Fechei a janela e decidi dar uma chance aos outros detalhes pendentes do relatório. Digitei no google “blog maquiagem” e comecei a coletar todos os posts de resenhas dos produtos da Luna Vita e das marcas concorrentes, juntamente com os melhores comentários das leitoras. A quantidade de informações era infinita, fotos, vídeos, tutoriais. Existia um universo relativo à beleza que eu não fazia ideia do quão imenso era.

“Presidência, Luna Vita.”

Foi então que percebi que era o meu celular que tocava e não o telefone da secretaria.

“Alô?”

“Por gentileza, Michele Souza.” Era uma voz masculina.

“É ela.”

“Aqui é Escobar Oliveira, da Aqua Marina. Estou ligando para falar a respeito do pedido de restauração feito pela senhora...”

Percebi logo que se tratava do mesmo atendente antipático do dia fatídico. Levantei devagarinho e vi que o doutor Rodrigues estava de costas para minha sala, falando ao telefone. Encostei levemente a porta e retornei a minha mesa.

“Sim. Pode falar.”

“A peça foi avaliada e a restauração ficará pronta em quatro dias.”

Ai, graças a Deus! Antes do aniversário da mãe do doutor Rodrigues.

“E o valor ficará em mil e quatrocentos reais.”

Misericórdia!

“Alô? A senhora ainda esta na linha?”

Esstotou?”

“O pagamento poderá ser feito adiantadamente mediante depósito ou no momento da retirada aqui mesmo em nossa loja.”

Ai, minha nossa senhora da bicicletinha. Mil e quatrocentos reais. MIL E QUATROCENTOS REAIS!!!!!!

“A senhora está me ouvindo?”

“Sim?”

“Nós entraremos em contato caso a restauração fique pronta antes do prazo.”

“OK. Obrigada.”

“A Aqua Marina é que agradece. Tenha um bom dia.” Disse em seu típico tom seco e encerrou a ligação.

Sexta-feira. Eu tenho até SEXTA FEIRA pra conseguir MIL E QUATROCENTOS REAIS. Mas como é que eu vou conseguir esse dinheiro? Peço um empréstimo no banco? Mas com que renda eu vou me apresentar. Eu ainda nem recebi meu primeiro salário. Já sei! Peço um adiantamento pro doutor Rodrigues!...Se tá maluca Michele?! Pedir um adiantamento pro seu chefe pra pagar a cagada que você fez com o presente dele?!

Quase tive um enfarte cavalar quando ouvi o telefone tocar. Dessa vez era o telefone da secretaria mesmo.

“Presidência da Luna Vita, bom dia.”

“Michele?” era a Letícia.

“Oi, Lê.”

“Tá tudo bem?”

“Tá?” Soei indecisa. Eu sei!

Ela permaneceu em silencio por alguns segundos.

“O Samuel me disse que encontrou com você hoje de manhã e disse que você tava meio estranha. Daí a Carla veio me falar que te viu no banheiro chorando. Tá tudo bem mesmo?”

“Tá. É que eu tô um pouco cansada hoje. Só isso.”

Ela ficou mais alguns segundos em silencio.

“Sério, Mi. Se tiver acontecendo alguma coisa pode dizer.”

“Fica tranquila. Não tá acontecendo nada.” Nada!? Que eufemismo da minha parte.

“Foi alguma coisa com alguma das meninas. Pode dizer, eu não conto pra ninguém.”

“Não, Lê. Imagina! O que vocês poderiam ter feito?”

“Foi alguma coisa naquele casamento da sua amiga?”

“Não. Lá foi tudo ótimo. Leticia, não precisa ficar preocupada comigo não. Eu tô bem. MESMO. Só tô meio cansada.”

“Então pelo menos você vem almoçar com a gente hoje?”

“Hoje não vai dar. Tô com muita coisa pra fazer.”

“Quer que a gente te traga um marmitex?”

“Não, Lê. Brigada. Eu me viro por aqui mesmo.”

“Então, tá! Se precisar de alguma coisa, liga aqui na recepção.”

“Tá. Brigada. Beijo.” E desliguei o telefone.

Voltei meu olhar para o computador tentando retomar o que eu estava fazendo. Contudo, o excesso de emoções dessa manhã me dificultava em recordar o ponto onde havia parado. Foi quando vejo a porta da secretaria se movendo.

“Fechou a porta por quê?”

Era o doutor Rodrigues, falando naquele tom que eu nunca sei se é bom ou ruim.

“Não, doutor. Não fechei a porta, não. Acho que deve ter sido o vento.”

Vento, Michele?! Nem janela tem nessa sala!

Ele manteve o semblante impassível e me estendeu um post-it.

“Aqui estão os dados para a compra das passagens. Depois que fizer a compra, pesquise alguns hotéis e envie para mim e para o doutor Vilaça. Não escolha os muito badalados, basta que eles sejam minimamente confortáveis, e de preferencia que não estejam no centro da cidade.”

Minimamente confortáveis? Baseada em que eu decido isso?

“Sim, senhor.”

“Vou sair mais cedo para almoçar e provavelmente não volto mais hoje. Avise para quem me procurar que eu estou numa exposição de beleza. Ah, e mais uma coisa. Todos os diretores já confirmaram presença na reunião de amanhã?”

“Sim, senhor. Mas se o senhor quiser eu checo mais uma vez com eles...”

“Não há necessidade. Os relatórios já estão prontos?”

Os dos outros com certeza, mas o meu não está nem perto.

“Sim, só preciso imprimi-los. Se o senhor quiser faço isso agora mesmo...”

“Não...melhor você me enviá-los por e-mail para que já possa ir os estudando. Qualquer problema me ligue. Até amanhã.”

“Até amanhã, doutor.”

Quando ele saiu, abri novamente o arquivo do Excel e voltei as análises comparativas de lucros. Essa era minha chance de ouro, e eu não podia desperdiçar nem mais um minuto.

 

* * *

 

Por uma sorte dos deuses, o período da tarde foi mais tranquilo do que eu esperava. A ausência do doutor Rodrigues unida ao fato de nenhuma das meninas ter me ligado mais de uma vez para saber se estava tudo bem, me rendeu ótimos avanços na confecção do relatório de modo que antes das 18:30, eu finalmente havia finalizado meu trabalho.

O produto final tinha 72 páginas e havia sido dividido em seis seções: Panorama Geral da Indústria de Cosméticos no Brasil, onde eu dou os principais aspectos das empresas de saúde e beleza brasileira, comparando-as com algumas empresas internacionais; Saúde, Beleza e seus Produtos, onde eu falo basicamente do catálogo de produtos oferecidos tanto pela Luna Vita, quanto por seus concorrentes; Dados e Cifras, onde eu falo comparativamente sobre as arrecadações anuais de cada uma das empresas, além dos lucros comparativos de seus produtos mais vendidos; Consumo e Repercussão, onde eu cito as repercussões das marcas e de seus produtos nos diversos meios midiáticos, além da opinião dos consumidores, destacando os pontos fortes e fracos ressaltados por eles; Design x Formulação, onde eu comparo os principais pontos destacados na seção anterior, tentando recriar um “produto ideal”; e por fim, Perspectivas Comerciais, onde eu faço um apanhado geral dos dados coletados e aponto algumas áreas pouco exploradas pelas indústrias de beleza brasileiras. Ufa!

Apesar de ter armazenado todo o conteúdo do relatório no meu pendrive, achei por bem deixar uma cópia do arquivo salvo no computador. Se por ventura, algum infortúnio acontecesse com ele, eu não perderia todo o meu trabalho em vão. Como o cansaço, àquela altura, já era indescritível, achei por bem ir para casa, descansar bem, para amanhã chegar revigorada para a reunião. Até às nove horas, que era o horário de início da reunião, eu teria tempo de sobra para organizar todos os detalhes.

            Desliguei o computador, apaguei todas as luzes e segui direto para o ponto de ônibus em frente a Luna Vita.

            Eram 8:15 da noite quando cheguei em casa. E pela primeira vez senti minha casa vazia. Há essa hora, a Isa estaria sentada no sofá, assistindo o final da novela das sete, e me bombardeando de perguntas sobre o porquê de eu chegar àquela hora. Tomei um banho, preparei um miojo de galinha caipira e caí feito um saco de batatas na cama.

 

* * *

 

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Abri os olhos, que ainda estavam pesados. A luz do dia já irradiava o meu quarto. Estiquei o braço para desligar o radio relógio quando percebei que o horário marcava 7:50.

AI MINHA NOSSA SENHORA!

Levantei feito o The Flash em dia de São Silvestre. Enfiei a mesma roupa de ontem (que é a que estava mais acessível naquele momento), joguei uma água no rosto e prendi o cabelo em formato de coque.

Não é possível que eu fui perder o horário justo hoje!

Àquela hora, eu deveria estar na Luna Vita, imprimindo tranquilamente os relatórios, organizando-os em pastas, verificando se o pessoal da copa já havia aprontado a água e o café. Mas ao invés disso, eu estava andando de um lado para o outro no ponto de ônibus, esperando que com um passe de mágica, o 105 aparecesse e me teletransportasse para a Avenida dos Palmares.

Quando cheguei à empresa faltavam cinco minutos para as nove.

“Bom dia, Michele.” Ouvi a Leticia dizendo.

Não consegui nem ao menos manter a cordialidade. Eu sabia que aguardar o elevador levaria uma eternidade, então subi pelas escadas mesmo. Os seis lances de escada quase me arrancaram todo o folego dos pulmões de modo que quando atingi o ultimo andar do prédio quase caí estatelada no chão, e mais uma vez fui obrigada ser rude e não retribuir os cumprimentos da Andrea.

Quando cheguei à presidência me deparei com uma sala vazia. Na certa o doutor Rodrigues já deveria estar na sala de reuniões. Era melhor que eu fosse até lá, justificasse o meu atraso para depois correr atrás do prejuízo. Larguei minha bolsa no chão mesmo e corri para lá.

Mas a visão que tive ao chegar ao local não foi do meu chefe soltando fogo pelas ventas e nem tão pouco dos demais presente me olhando com reprovação pelo meu atraso. Mas sim, de uma reunião já em andamento, com a sala toda organizada, a mesa de Buffet preparada, os diretores todos acomodados portando pastas azuis e a Loira de vermelho em pé, falando sobre alguma coisa.

“Na página 10, vocês verão um esquema que conta toda a trajetória da Luna Vita, desde a sua fundação, passando por suas principais conquistas e avanços no mercado de cosméticos...Michele, bom dia. Por gentileza, pegue uma daquelas pastas que estão em cima da mesa do projetor para que você possa acompanhar a apresentação. E se não for muito incomodo, você poderia pegar um copo de água pra mim?”

Ela usava um anel de pedra negra no dedo anelar direito. Ao dizer a ultima sentença, mexeu levemente em seu anel e me lançou um olhar dissimulado.

O recado era claro: faça o que eu mando e fique de boca fechada ou eu te entrego para o seu chefe. Sem ter como escapar do meu crime, fui até os fundos da sala e enchi um copo de água até a borda.

 

* * *

 

Era como se meus pés não pudessem encontrar o chão. Todo um trabalho de dias, horas e noites mal dormidas havia me sido arrancado de forma brutal, cruel e impiedosa. Mas como é que ela havia conseguido isso? Era a pergunta que não queria calar. Durante todo o período que trabalhei nele aqui na empresa, jamais deixei de fechar os arquivos e levar o pendrive comigo caso precisasse sair. Além disso, ninguém sabia que eu estava trabalhando nele. Nem as meninas, nem meu chefe. Como é que ela pode saber?

OK. Vocês podem pensar: Foi culpa sua! Você deixou o backup no computador da empresa! Ela veio bisbilhotar os seus arquivos e PUMBA. Deu de cara com seu relatório. Mas não caros amigos. Eu não sou tão burra quanto estão pensando. É lógico que todos os meus arquivos são protegidos por senhas, além da própria senha do administrador do Windows.

Entreguei-lhe o copo d’água e me sentei junto aos demais diretores. Conforme a apresentação transcorria, sentia que meu corpo desfaleceria a qualquer momento. A desinfeliz sabia o meu relatório de cor e salteado. Falava sobre cada seção com desenvoltura, sem titubear sobre nenhuma informação.

“Na página 59 estão a planilha de lucros do triênio e o gráfico comparativo de lucros. Como vocês podem perceber, as curvas mostram um declínio progressivo nos últimos cinco anos. Com algumas variações entre as empresas, naturalmente. ”

De fato, todas aquelas informações constavam no texto. Mas o que eu não conseguia compreender era como ela havia estudado todo o conteúdo do relatório e em menos de doze horas estar falando sobre ele com tanta segurança. A minha vontade naquele momento era de cavar um buraco e sumir da face da Terra. Se já não bastasse o meu problema com o conserto da joia, agora havia perdido a minha única chance de impressionar meu chefe e garantir meu emprego. Como o mundo pode ser tão cruel comigo?!

“O mercado nacional se encontra muito defasado no que diz respeito a produtos de baixo custo e qualidade equitativa a de produtos estrangeiros.”

É equivalente, sua anta!

“Creio que era essa a explicação que eu tinha para dar.” Disse em tom orgulhoso.

Todos na sala permaneceram em silencio por alguns instantes.

“Olha, Andressa. Meus parabéns! Você realmente me surpreendeu. Este relatório esta muito bem escrito e muito bem organizado. Deve ter lhe tomado um bom tempo para faze-lo.” Disse o doutor Rodrigues folheando a pasta.

“Ah, sim. Me tomou muito tempo mesmo.”

Foi o MEU TEMPO, doutor! Esse relatório tomou o MEU TEMPO!

“Mas...em relação a parte final. Onde você diz sobre as deficiências de mercado. Você não especifica os produtos que se encaixam nessa categoria de baixo custo e qualidade equivalente às marcas internacionais. A quais produtos você se refere?”

Ela titubeou um pouco. Se eu fosse um cachorro, minhas orelhinhas estariam levantadas na esperança de detectar alguma asneira proferia por aquela jumenta de magenta. 

 “Ah...bem. Eu me referi de forma geral...”

“E que tal se você desenvolvesse um projeto de produto que se enquadrasse dentro dessa temática?”

Ela mais uma vez titubeou por alguns segundos.

“Claro, Ricardo.” E sorriu dissimuladamente enquanto me lançava um breve olhar.

“É possível esse projeto estar pronto até sexta-feira?”

“Naturalmente que sim!” ela soava radiante.

“Ótimo. Então já podemos deixar acertado? Reunião, sexta-feira, para a apresentação do projeto de produto proposto pela Andressa?”

Todos na sala assentiram com a cabeça.

“OK. Acho que por hoje é isso. Voltamos a nos falar na sexta.”

Todos na sala se dirigiram ao setor onde se encontravam as bebidas. Me levantei e fui em direção ao doutor Rodrigues.

“Doutor, me desculpe pelo atraso é que...”

“Ah, Andressa. Eu já vou me retirar porque quero estudar o seu relatório mais detalhadamente. Mais uma vez, parabéns.”

Eu só consegui ver o vulto do doutor Rodrigues saindo da sala de reuniões. Mas na verdade, eu é que parecia estar invisível ali.

“Já sabe. Projeto de produto para sexta-feira. E se o Ricardo desconfiar que não fui eu quem fez.” E gesticulou o corte de uma navalha no pescoço. “Te transformo em patê de baleia.” Disse a Loira das Trevas se afastando de mim e indo em direção a porta da sala de reuniões.

 

* * *

 

Verdade seja dita: eu estava ferrada e mal paga. Não me restava outra saída a não ser fazer esse maldito projeto. Saí da sala de reuniões completamente arrasada. Além de ter levado uma punhalada nas costas do destino, meu chefe ainda por cima fez questão de me esnobar na frente de todo mundo. E não foi só durante a reunião que isso aconteceu, não! Ele se manteve em silencio durante todo o período da tarde, e só voltou a dirigir a palavra a mim quando fui falar a ele sobre a reserva das passagens e do hotel. Ele, simplesmente balançou a cabeça em sinal positivo. Não me mandou voltar ao trabalho. Não reclamou de nada. Se manteve o tempo todo com os olhos grudados no relatório surrupiado.

Por um lado isso era bom, porque se ele ficou impressionado desse jeito, significa que eu acertei no meu trabalho pelo menos uma vez! Mas no final, nada disso foi válido, já que todo o mérito foi para a Periguete-Larapia de vermelho. E o pior: independente do resultado desse projeto, eu vou me dar mal de qualquer maneira! Se o projeto for um sucesso ela leva a coroa de louros. Se o resultado for um fracasso, ela me dedura para doutor Rodrigues.

O jeito era mais uma vez me esforçar ao máximo, esperar que meu projeto agradasse o doutor Rodrigues, e rezar para que mesmo assim, ela não entregasse minha cabeça numa bandeja de prata para ele. Essa era a minha única saída para eu não perder o meu emprego.

E se já não bastasse tudo isso, eu só tinha mais dois dias para conseguir o dinheiro para o pagamento do conserto da joia. Relutei muito. Muito mesmo! Mas não vi outra saída. A única forma de eu conseguir mil e quatrocentos reais até sexta feira era pedindo dinheiro para os meus pais.

Como àquela altura, meu estado de nervos estava em código vermelho, decidi que ligaria para eles quando chegasse em casa. Depois de um bom banho e a barriga cheia eu estaria mais preparada para enfrentar a fera.

Naturalmente que eu não poderia dizer que aquele dinheiro seria para pagar a restauração de uma joia que valia mais de três mil reais. Nem tão pouco dizer que eu estava trabalhando, e de secretária ainda por cima. O melhor seria dizer que aquele dinheiro seria para pagar dois alugueis atrasados do meu apartamento. Mas você ainda não encontrou nenhuma amiga?! Que possa te ajudar com as despesas?! Diria o meu pai. Não, pai. Aqui é meio difícil. A maioria das minhas amigas já se casaram, ou já se mudaram. E eu não tenho ninguém para rachar o apartamento. Diria eu melindrosa, com a voz mansinha e melancólica.

Ensaiei, duas. Três vezes o que iria dizer no telefone. Se por sorte minha mãe atendesse, ela logo abandonaria a causa. Isso é com seu pai, minha filha. Diria ela passando o telefone para ele.

“Alô?” uma voz carrancuda e sobrea ecoou do outro lado da linha.

“Pai?” minha voz estava quase tremula.

Ele permaneceu em silencio por uns instantes. Apenas conseguia ouvir o som da respiração dele.

“Pai, é a Michele. Tá tudo bem por aí?”

“Tá minha filha. E com você?”

“Tá pai. Qué dizê...”

“O que foi?” ele soou levemente preocupado.

“Tá tudo bem...é que....o senhor sabe, né? Que a Isadora casou?”

“Aquela sua amiga? Sei. Sua mãe me contou.”

“Então pai. É que agora, só tô eu aqui no apartamento. E já tem um tempo que eu tô desempregada...”

Ele continuou em silencio. Eu só ouvia o barulho da sua respiração.

“Pai. Eu não queria te incomodar. Não queria mesmo. É que eu tô precisando de um dinheiro, pra pagar o alu....”

“MAS É UM ABSURDO. VOCÊ FICA....VOCÊ FICA MESES SEM FALAR COM A GENTE. E QUANDO LIGA É PRA ISSO. PRA PEDIR DINHEIRO. O QUE QUE VOCÊ PENSA QUE A GENTE É? UM BANDO DE VELHOS LARGADOS. QUE SÓ TE SERVEM QUANDO VOCÊ PRECISA?”

“Não pai...”

“VOCÊ ACHA QUE É ASSIM QUE SE TRATA OS PAIS? É ASSIM?”

Eu chorava e ele também chorava do outro lado da linha.

“É UM ABSURDO. É UM ABSURDO.”

“Desculpa, pai. É que não deu mesmo...pra ligar.”

De repente o som da linha ecoou pelo fone. Já não me adiantaria mais os esforços para o convencimento. Depositei o fone de volta no gancho e me sentei à mesa da cozinha, onde por longos minutos, chorei copiosamente as mágoas de anos de histórias mal resolvidas.

 

* * *

 

A história entre eu e a minha família não é feliz. E começa não tão cedo. Lá por volta do final da minha adolescência. Mas antes acho que devo contar um pouco da minha infância.

Nasci em São João de Passaquato, onde meus pais vivem até hoje. Minha mãe sempre foi dona de casa e meu pai era agrônomo, hoje aposentado. Cresci num ambiente tipicamente bucólico, num sítio que é de propriedade dos meus pais até hoje. Certamente você deve pensar que passei minha infância subindo em arvores, comendo fruta madura do pé, brincando com os bichos. Não caros amigos, o que me fascinava não eram os bichinhos, nem as plantinhas e sim a neblina que formava bem cedo sobre o lago perto de casa. A mistura da terra, com resto de comida e serralho que se transformava em adubo. A madeira seca no forno a lenha queimando, pretejando, e se transformando em cinzas. O leite que fora da geladeira, duma hora para outra, azedava.

Na minha cabeça, era como se tudo aquilo acontecesse por magia. A primeira vez que eu e minha mãe fizemos sabão com óleo de cozinha, eu me senti a própria feiticeira. Mas é claro que com o passar dos anos, eu fui descobrindo que nada daquilo ocorria por um passe de mágica. Aquelas coisas aconteciam por causa das moléculas. Que se ligavam e se desassociavam conforme lhes fosse conveniente. Trocavam elétrons, compartilhavam, perdiam, ganhavam. E era nessa dança eterna que praticamente tudo na nossa vida acontecia. O bolo crescia no forno. A gordura se dissolvia do prato quando passávamos a esponja com sabão. O leite, que virava, coalhada, que virava queijo. Enfim. Eu percebi desde cedo que sem química não havia vida. Na escola, minha matéria favorita sempre foi ciências, e no ensino médio eu era a melhor aluna de química, e aos dezesseis anos, fui pela primeira prestar vestibular para a única carreira ao qual minha vida faria sentido.

Até aí essa história é muito bonita. O que eu ainda não disse foi que meu pai jamais concordou com a ideia de eu me tornar química. Ele, por muitos anos, carregou o sonho de estudar medicina. Como na época não havia nenhum curso público no estado, e pagar uma faculdade estava fora das posses dos meus avós, ele terminou por se dedicar ao melhoramento e aprimoramento dos cultivos agrícolas. E como a maioria dos pais, que projetam todos os seus sonhos nos filhos, meu pai acreditou piamente que quando eu me tornasse adulta, teria uma filha doutora. Quando eu disse que não queria estudar medicina e que já tinha me inscrito para o vestibular de química da Estadual de Santa Efigênia ele quase teve um surto. Disse que não bancaria meus estudos, que se eu quisesse morar fora teria que trabalhar para pagar minhas despesas e que ele jamais compareceria à minha formatura. Eu definitivamente era uma decepção para ele.

Minha mãe em contrapartida gostava da ideia de eu estudar algo que me desse prazer. Contudo, ela jamais ia de encontro às opiniões do meu pai, de modo que quando meu nome apareceu na lista da primeira chamada da matrícula para o curso de química na UESE, eu tive que tomar um ônibus sozinha, viajar quinhentos e quarenta quilômetros com apenas o dinheiro que eu tinha guardado das minhas economias das vezes que trabalhei na Festa do Milho da cidade. E detalhe, eu nunca havia saído da minha cidade antes!

No começo foi bem difícil. Aprender a me virar sozinha, arcar com as responsabilidades de adultos. Pagar aluguel, imposto, conta de luz, de água. Resolver os problemas de manutenção do apartamento com o síndico. Cuidar dos afazeres domésticos, fazer supermercado. E atrelado a tudo isso estava estudar para as provas, fazer estágio, resolver nhenhentas listas de exercícios de cada uma das disciplinas do semestre, participar de atividades extracurriculares, além de ter que dar aula à noite para complementar o auxílio financeiro que eu recebia da faculdade.

Eu tive que deixar de ser uma menina da roça e me tornar uma mulher da cidade num estalar de dedos.

Obviamente que eu tive muita sorte também. Conheci a Isa no segundo ano de faculdade. Ela, que já era completamente acostumada ao ritmo urbano, me ensinou muito na minha jornada.

A cada ano da graduação que passava, eu voltava menos e menos para a casa dos meus pais. No começo, meu pai ainda me perguntava sobre o andamento da faculdade, na esperança que por algum motivo eu fosse desistir de me formar, mas conforme eu me aproximava da conclusão do curso, ele já não fazia nem mais questão de conversar comigo.

E claro que um dos dias mais tristes da minha vida foi o dia da minha formatura. Todas as famílias completas, segurando cartazes, vibrando pela conquista de seus filhos. E eu sozinha. Só não digo que estava completamente só, porque a família da Isa me acolheu e fez por mim aquilo que meus pais escolheram não fazer.

Depois de quase um ano formada, quando me mudei para Mongrado, minha mãe veio me visitar. Disse que meu pai sentia muito a minha falta, que nada daquilo devia ter acontecido e tentou me convencer, agora que já havia me formado naquilo que gostava, a realizar o sonho dele. Aquilo para mim foi a gota d’água. Me virei para ela e disse TUDO. TUDO QUE ESTAVA ENTALADO NA MINHA GARGANTA. Que eles nunca haviam se importado comigo, que eles nunca me apoiaram em nada do que eu quis fazer, que a única coisa que eles se importavam era com a satisfação própria deles, e que jamais eles quiseram a minha felicidade. 

Minha mãe foi embora naquela mesma noite. E desde então eu só vejo meus pais em datas comemorativas, e raramente eles ligam para mim (assim como raramente eu ligo para eles).

É queridos amigos, essa é a história da minha família. Mas se mesmo assim, depois de ler tudo isso, você ainda me julga por eu ser uma pessoa distante dos meus pais é porque você nunca experimentou o sabor de ser traído pelas pessoas que mais deveriam te proteger e zelar pela sua felicidade.

 

* * *

 

“O que significa isso?”

Arthur havia acabado de desembarcar de um voo de Los Angeles a Detroit quando viu em sua caixa de entrada um e-mail enviado por Andressa Queiroz intitulado “Tudo o que você precisava saber sobre a LV”.

“Ai, Meu amor!” e deu um grito contido. “Você não vai acreditar no que eu consegui.”

Andressa já estava em casa. Falava ao telefone sentada no sofá, vestida em seu roupão branco felpudo, enquanto assistia a um filme em preto e branco que ela própria desconhecia o nome.

“Lembra da Nicole Fraga? Aquela minha amiga do Clube de Golfe?”

Arthur continuou em silencio como se não tivesse ouvido a pergunta.

“Então. Encontrei com ela não faz uma semana, naquele salão de beleza novo que comecei a frequentar. Ela me disse que o irmão mais novo dela...” que sempre teve uma quedinha por mim, pensou. “Tinha acabado de ser admitido numa empresa muito famosa de cosméticos...” ela aguardava ansiosa por uma reação do namorado. “E adivinha qual empresa era essa?”

“OK, Andressa. Mas onde essa história vai levar ao e-mail que você me enviou?” perguntou enfadado.

“Calma, amor. Então, como eu estava dizendo. O irmão dela tinha acabado de começar a trabalhar na Luna Vita. Daí eu disse que também estava trabalhando lá. E então ela me pediu que conversasse com ele, já que ele é muito novo, e esse é o primeiro trabalho dele, pra dar uma injeção de confiança, entende?”

Arthur, que nesse ponto já estava bastante impaciente com os rodeios de Andressa, apenas emitiu um som gutural.

“Ela me passou o telefone dele e quando ele me disse que trabalhava no setor de sistemas eu automaticamente tive uma ideia sensacional.” Disse rindo.

“Eu disse assim: Ai, Rodolfo. Você não vai acreditar no que me aconteceu! Você acredita que eu esqueci a senha do meu computador, e agora não sei como recuperá-la! Ele prontamente se mostrou super solícito, e disse que me ajudaria a hora que eu precisasse.”

Ai, Rodolfo. Sabe como é, né? O doutor Rodrigues, o meu chefe, não pode saber que eu perdi a senha do computador da secretaria da presidência. Se ele souber, ele me mata! Você poderia vir até aqui à noite. Lá para umas oito. Pra me ajudar a resolver esse problema?” ela novamente deu um gritinho. “Ai, Arthur! Quando ele desbloqueou o computador da tonta da secretária do Ricardo. Você não vai acreditar! Descobri que ela tinha feito um relatório com todas as informações financeiras da empresa. É esse o arquivo que eu te mandei agora pouco.” Disse ansiosa, aguardando pelas congratulações.

Arthur, que já estava dentro do taxi a caminho do hotel abriu o arquivo em questão e avaliou rapidamente seu conteúdo.

“Não há nada aqui que me sirva. O conteúdo desse documento nada mais é do que meras comparações de cifras e valores que já são de domínio público. O QUE EU QUERO SÃO AS INFORMAÇÕES REAIS, ANDRESSA! AS INFORMAÇÕES FINANCEIRA ORIGINAIS. SERÁ QUE É TÃO DIFÍCIL CONSEGUIR ALGO ASSIM!”

Intimidada, Andressa não conseguia sequer choramingar e se vitimizar diante do namorado. Permaneceram em silencio, quando ela própria resolveu dar o primeiro passo para o desfecho da conversa.

“É...tem mais uma coisa. Uma coisa que achei estranha, mas não sei bem porque. No meio daqueles arquivos, achei dois comprovantes de compra de passagens aéreas: uma no nome do Ricardo e outra no nome do Emerson. Mas o que achei estranho é que as duas passagens estavam marcadas pro mesmo dia, mas não para o mesmo lugar. Se o presidente e o vice-presidente de uma empresa vão viajar a negócios, deveriam ir juntos não é?”

“E qual era o destino dessas passagens?”

“Deixa eu checar...Ah! já achei. A passagem no nome de Emerson Macedo Vilaça está com voo marcado para trinta do quatro, às cinco e quinze da manhã com destino a Genebra, Suíça. A no nome de Ricardo Luís Rodrigues Filho, está com voo marcado para  o mesmo dia, às 15:30 com destino a Miami, Florida.”

Arthur teve um sobressalto.

“Miami? Uhm! Talvez eu possa estender minha estada por aqui e dar um pulo até lá para ver com meus próprio olhos o que aquele imprestável está tramando. Andressa, descubra tudo sobre essa viajem. Quanto tempo eles permanecerão fora, hotel onde vão ficar hospedados, aluguel de veículos, tudo o que puder descobrir.”

Arthur encerrou a ligação sem se despedir da namorada. Permaneceu pensativo por algum tempo tentando encontrar possíveis respostas para o enigma em questão. Você não me escapa. Desta vez você não me escapa, Ricardo! Pensou assim que o motorista do taxi parou em frente ao Ritz Hotel.

 

* * *

 

Passei a madrugada de terça para quarta quase que inteira buscando uma ideia para o projeto de produto da Loira das Trevas. De certa forma, isso estava me sendo até bom. Explorar meu lado criativo me ajudava a esquecer dos meus outros problemas, que ao contrário deste, não possuíam qualquer solução. Por volta das três da manhã, depois de pesquisar todos os tipos imagináveis de cosméticos já feitos na história da humanidade, cheguei à conclusão que a melhor opção de produto seria algo que desempenhasse um papel multifuncional. Como já estava bastante cansada, desliguei o computador, apaguei as luzes e fui me deitar.

Dormi até dez para as seis, quando meus olhos se abriram subitamente. Olhei para o teto e me lembrei do que estava sonhando durante toda a noite. Folhas de palmeiras que se balançavam com o vento. Provavelmente eu deveria estar numa praia ou algo assim. De repente eu estava num lugar de mata fechada e alguém me estendia uma tigela, que mais parecia a uma casca de coco. Dentro da tigela havia um liquido que se assemelhava a uma polpa, de cor vermelha alaranjada. Peguei a tigela e com as mãos em formato de concha, tomei um pouco do conteúdo viscoso e joguei por todo o meu rosto.

Foi quando num sobressalto tive uma ideia. A ideia perfeita para o meu produto. Peguei meu notebook e digitei como se não houvesse amanhã. Quando terminei de esboçar todo o plano do projeto, me levantei da cama e fui direto para o chuveiro. Já eram quase seis e meia.

Tomei um banho que me revigorou até o dedão do pé. Saí de casa quase feliz, não fosse pelo fato daquele produto fantástico não ser propriamente meu no final das contas, e pelo fato de que me restavam menos de quarenta e oito horas para conseguir um dinheiro que, com o salario de secretária, me seria quase impossível de conseguir algum dia.

 

* * *

 

“Presidência Luna Vita, bom dia?”

“E o meu projeto? Como anda?”

Eram 10:32 da manhã e a Alma Penada já estava na minha cola.

“O conceito do produto já está pronto. Agora estou escrevendo o texto de apresentação.”

“Ainda?! O que você está pensando? Que o mundo vai parar enquanto esse projeto não estiver pronto?! O prazo é para daqui dois dias!”

“Ai, tá bom! Não precisa me lembrar do que eu já sei!”

“Ei! Olha como fala comigo, chupeta de baleia! E além disso, esse projeto tem que estar pronto no máximo até amanhã, já que você ainda tem que me passar todas as informações necessárias pra apresentação.”

Respirei fundo e tentei canalizar toda a minha ira para a minha força de trabalho.

“Pode ficar tranquila. No mais tardar amanhã cedo eu te mando o projeto e a apresentação em slides por e-mail.”

“Nananão. Eu vou até aí e salvo o arquivo no meu pendrive. Eu não vou te dar a chance de ter provas de que foi você quem escreveu esse projeto.”

De repente a ligação caiu. No mínimo ela deve ter desligado na minha cara. Enfim! Melhor assim. Voltei a trabalhar no projeto. Não passaram nem dois minutos o telefone tocou novamente.

“Presidência Luna Vita, bom dia!”

“Quero um café com creme.”

“Então vá buscar.”

Ela novamente desligou o telefone na minha cara.

Ouvi o barulho de alguém batendo na porta da presidência, mas como estava concentrada no que estava escrevendo ignorei-o completamente.

“Ricardo? Eu poderia dar uma palavrinha com você?”

Era a Loira Maldita. Levantei mais que prontamente e corri para a presidência.

“Ah, Andressa! Que bom que você está aqui! Eu preciso de uns dados pessoais seus para passar para o pessoal do RH. Será que você poderia ver isso pra mim? Se não for inconveniente?”

Ela lançou seu típico olhar cínico na direção minha e do meu chefe. O doutor Rodrigues fez uma cara de quem não estava entendendo patavinas, mas mesmo assim não nos perguntou nada.

“OK. Ricardo. Depois nós nos falamos, tudo bem?”

Ele ficou em silencio, perplexo. Em seguida fomos para fora da presidência. Ela sentou em sua mesa de trabalho e começou a mexer em sua bolsa como se estivesse procurando algo.

“Ai, acho que deixei meus documentos no carro. Você se importa de ir até o estacionamento?”

“Claro, sem problemas.” Dissimulei simpatia.

Fomos andando na direção das escadas. Quando chegamos no meio do caminho, ela se virou na minha direção.

“Você perdeu a noção do perigo?” ela tinha as unhas cravadas no meu braço. “Qual parte do “se você não fizer o que eu mando eu acabo com você” você não entendeu? A parte em que você destrói o presente de aniversário da mãe do seu chefe ou a parte que mil e quatrocentos reais é muito dinheiro pra uma secretária-probretona?”

Não é possível que ela sabe disso também!

“EU NÃO TÔ BRINCANDO! Se você continuar bancando a engraçadinha, eu entrego essa sua cabeça gorda pro Ricardo com uma maça enfiada na boca!”

“Tá bom. Me desculpa.”

Verdade seja dita. Eu precisava controlar melhor os meus nervos. Não havia a menor dúvida de que ela realmente iria me entregar para o meu chefe na primeira oportunidade. Acho que com toda essa confusão, todo o estresse acumulado estava mexendo com meus hormônios. Eu estava tendo uma tensão pré-tensão-pré-menstrual.

“Acho bom. Agora vê se faz o que eu mando. Vai até a copa e me trás aquele café.”

Eu, como um cachorrinho com o rabo enfiado entre as pernas, desci até o quarto andar e fui até a copa. Quando passei pelas salas dos setores administrativos, vi saindo de uma delas a Sônia, que de cara já me perguntou o que eu estava fazendo ali.

“É que eu tô um pouco cansada. Aí vim buscar um café.”

“Ah!” disse ela semi-convencida.

“Michele? Tá tudo bem lá na presidência? É que desde o começo da semana que a gente não te vê.”

“Tá. Tá tudo bem sim. É que eu ando com muito trabalho pra fazer.” Disse com uma risadinha sem graça.

“Ah!” ela parou por um instante, pensativa. “Você vem almoçar com a gente hoje?”

“Acho que não.” Disse em tom de lamento.

“Então tá bom. Eu aviso as meninas.”

Acenei para ela e segui direto para a copa. Peguei o café e subi tentando não chamar a atenção. Quando cheguei ao sexto andar vi a Andrea de um lado do saguão e a Andressa do outro. A Andrea falava ao telefone e por sorte não me viu trazendo o café. Me aproximei discretamente e deixei a xícara em cima da mesa da coatora. Ao me dirigir para a sala da presidência apenas ouvi sua voz de patricinha arrogante falando na minha direção.

“Muito bem. Agora volta pro seu trabalho, balofa!”

Meu desgaste emocional já era tamanho que a única coisa que pude fazer foi pedir, mentalmente, pelo amor de Deus para que tudo isso acabasse algum dia.

 

* * *

 

“Bom dia, Solange. Bom dia, Rafael.”

Eram 8:45 da manhã de sexta e a Loira das Trevas já estava tinindo para sua apresentação. Creio que essa era a primeira vez que eu a via vestida com uma cor que não fosse vermelho. Usava um taier preto de botões dourados que lhe dava um ar bastante formal e sofisticado. Quem a estivesse vendo pela primeira vez, acreditaria piamente de que ela era uma profissional ultra competente, e que jamais seria capaz de chantagear algum colega de trabalho em troca de ascensão profissional.

Ela aparentava estar extremamente calma e confiante. E eu, ao contrario dela, estava uma verdadeira pilha, carregada em 220 volts. Sentia uma vontade absurda de chacoalhar minhas pernas, mas sabia perfeitamente que isso daria muito na vista. E a ultima coisa que precisava agora era chamar a atenção de alguma maneira. Passei o final da tarde e o começo da noite de ontem passando-lhe todas as informações importantes para que a apresentação fosse tecnicamente impecável. E durante todo esse período a minha maior motivação eram as ameaças e as agressões verbais proferidas pela Loira-diaba, que não me fez esquecer em nenhum só momento de que se algo desse errado nessa apresentação era a minha cabeça que iria rolar.

“Bom, creio que já estamos todos presentes. Então, Andressa. Pode começar.”

O doutor Rodrigues, diferente de outros dias, em que sempre conversava com todos antes do inicio das reuniões, hoje estava calado e introspectivo. Eu diria até que um certo ar sombrio lhe pairava o semblante. E isso, naturalmente, me deixava ainda mais aflita.

“Bom dia a todos.” Ela pigarreou a garganta e começou seu discurso. “Como eu havia dito na apresentação anterior, a maquiagem é o segmento mais lucrativo no setor de cosméticos atualmente. A quantidade e a variedade de produtos no mercado nacional cresce a cada ano, sendo muito deles inspirados em produtos produzidos e voltados para o mercado exterior.”

 “Uma das tendências observadas no mercado de cosméticos nos últimos três anos é a utilização de produtos a base de compostos naturais de frutas como coco, pitanga, carambola, fruta-do-conde, melão entre outras.”

A Loira de Preto fez uma pausa e se voltou à projeção do slide, onde eu havia colocado um esquema com os exemplos recém citados. Até agora ela estava se saindo muito bem.

“Porém, a grande maioria desses produtos não utilizam, de fato, os compostos extraídos diretamente das frutas e sim, substancias sintéticas que estão apenas presentes nelas.”

Ela passou mais um slide onde constava a figura de uma pitanga ao lado de um rótulo de creme hidratante com o nome de um de seus componentes ativos destacado, e entre eles, um sinal de diferente.

“Além disso, o mercado brasileiro se encontra muito deficiente no que diz respeito a produtos de maquiagem que desempenham um papel multifuncional.”

 “A mulher de hoje, que passa muitas horas no trabalho, já não tem mais tanto tempo para se maquiar. E nem tão pouco se sente confortável em ficar carregando todos os produtos que utiliza quando sai de casa. Tendo em vista essas premissas. Apresento a vocês o DualMake. Um produto que vem para facilitar a vida dessas mulheres.”

 Nesse momento, aparece no anteparo de projeção, a imagem do meu protótipo, feito no Paint e que parecia bem mais bonito enquanto eu o estava fazendo. Apesar disso, senti como se meu primogênito estivesse ali. Era quase um orgulho, não fosse pelo fato desse produto não ser meu.

“Ele consiste basicamente de uma paleta onde de um lado há um hidratante cremoso, cor de pele, e do outro um hidratante rosado. O hidratante da esquerda funciona como um Beauty Balm: hidrata e corrige a pele. Podendo ser usado como maquiagem e tratamento, ao mesmo tempo. Do lado direito temos um hidratante colorido, que funciona perfeitamente para as áreas dos lábios e das bochechas, tendo as mesmas propriedades do hidratante da esquerda, dando ao produto a sua característica de maquiagem.”

Dei uma leve olhada para o lado e vi todos os presentes na sala de olhos arregalados, e apenas meu chefe com o cenho neutro.

“Por ter uma textura leve, ele pode ser usado perfeitamente como maquiagem para o dia-a-dia, dando um ar saudável a pele, lábios, e maças do rosto. Por ser feito a base de extrato de acerola, é rico em vitamina C, que é um antioxidante. Os antioxidantes tem ação anti-idade. De modo que esse produto serve para todos os tipos de pele, inclusive as peles maduras.”

Desta vez meu chefe deu um leve sorrisinho de canto de boca.

“Ele é prático. Pode ser aplicado tanto com as mãos quanto com um pincel. É um produto ideal para se carregar na bolsa.”

“O extrato natural de acerola, além de conter um alto nível de vitamina C, possui pigmentos naturais, o que torna esse produto possível de ser usado por pessoas alérgicas a pigmentos artificiais. Além disso, a vitamina C extraída de fontes naturais dá ao produto uma alta eficiência no papel anti-idade.”

“Em relação à viabilidade de produção desse produto. Um calculo médio, levando-se em consideração os ingredientes propostos na sua fórmula.”

Quase tive um infarto. Reagentes, criatura! REAGENTES!

“Mostra que o custo benefício do produto é positivo, já que não há produtos no mercado com essa mesma versatilidade. E tecnicamente, levando-se em consideração os possíveis concorrentes de mercado, o DualMake teria um custo de produção 1,786 vezes menor que os produtos equivalentes.”

Ufa! Ela finalmente acertou essa palavra!

“Bem, essa é a minha proposta de produto. O que você acharam?”

Ela tinha um sorriso de boas expectativas. Olhei novamente ao meu redor e percebi que ninguém ali manifestava qualquer sinal de que estaria interessado em expressar algum feedback. Talvez porque muitos ainda tinham seus queixos caídos, ou talvez porque outros não conseguiam sequer piscar os olhos. Yes!

 Alguns segundos depois foi o doutor Rodrigues quem quebrou o silêncio.

 “Andressa...realmente...sua proposta de produto é muito interessante...” ele parecia querer buscar as palavras, e demonstrava estar contente. Isso é um bom sinal. Um ótimo sinal! “Mais uma vez sou obrigado a lhe dar meus parabéns.”

UFA! ELE GOSTOU! ELE GOSTOU!

“Contudo. Eu gostaria que você me tirasse algumas dúvidas.”

Uh-oh!

 Ele fez uma pausa, pigarreou e se ajeitou melhor em sua cadeira. “A primeira delas é com relação ao próprio conceito do produto. Como surgiu essa ideia?”

Ai minha nossa senhora da bicicletinha. O que que ela vai falar?

“Bem, Ricardo. Eu sou mulher. Passo por esse tipo de dificuldade todos os dias. Tive essa ideia porque assim como eu, todas as pessoas que conheço que precisam apresentar uma boa aparência, gostariam de poder usar um produto assim: versátil, que realçasse nossa beleza natural, e que ainda nos trouxesse algum benefício estético.”

Ela foi bem. Foi bem na resposta.

O doutor Rodrigues também pareceu estar satisfeito.

“Minha segunda questão.” Ele agora consultava as paginas do projeto. “Diz respeito ao trecho, onde você diz que os produtos nacionais são inspirados em produtos produzidos e voltados para o mercado no exterior. Você sugere aqui que existe uma inadequação dos produtos nacionais em relação ao mercado brasileiro, seria isso?”

Ave Maria, cheia de Graça. O senhor é convosco...

“Sim.”

“Mas se maquiagem é um tipo de cosmético utilizado por mulheres no mundo todo. O que torna os produtos estrangeiros inadequados ao publico brasileiro.”

Santa Maria, mãe de Deus...

“Ah...bem...É que... produtos europeus, por exemplo, não levam em consideração as diferenças de clima, as diferenças de tipos de pele, de tons de pele. Lá, grande parte das pessoas tem pele branca. As cores de sombras e blushes, na sua grande maioria, são adequadas para tons de peles mais claros. As negras aqui sofrem muito para conseguirem se maquiar bem.”

Verdade seja dita, pelo menos de maquiagem essa mulher entende.

“Concordo. Em relação à pele negra, o mercado brasileiro é bem escasso.” Ele se voltou novamente à pasta contendo o projeto, folheou um par de paginas até chegar à parte onde falava sobre a composição química do produto. “Aqui, na parte da formulação, você optou pela utilização da vitamina C obtida de estratos naturais. Por quê?”

Putz! Agora ferrou de vez!

“Ah, Ricardo. Como eu disse a vitamina C vinda da acerola é mais eficiente no papel de anti-idade.”

“Sim. Isso você já havia dito na sua apresentação. O que quero saber é o porquê da utilização da vitamina C proveniente de uma fonte natural, e não o composto sintético, que já é amplamente utilizado nos cosméticos em geral.”

Ela permaneceu pensativa por alguns instantes e em seguida respondeu.

“Os custos. Os custos do produto ficariam menores...”

Não, criatura! Não!

“Mas a vitamina C sintética já tem um custo relativamente baixo. Inclusive grande parte dos produtos populares usam esse principio ativo.”

“Sim, claro...”

“Andressa, vou tentar me expressar melhor. O que eu quero saber é: o que faz a vitamina C de origem natural ser o diferencial do seu produto?”

“Bom, Ricardo. Todos nós sabemos que o que é natural é melhor...”

“Michele.” Ele se voltou para mim com uma expressão calma, porém estranha. “Por gentileza, você poderia responder a pergunta que sua colega se recusa a me esclarecer?”

“Eu, doutor?”

“E por acaso existe outra Michele nesta sala?”

“Não, doutor.”

“Então, por gentileza.” Sua expressão estranha passou a ser uma expressão desafiadora.

“Mas porque eu doutor. O projeto não é meu...”

“Porque eu estou perguntando pra você.”

“Mas eu não sei responder ess....”

“MICHELE! RESPONDA A MINHA PERGUNTA!”

“OisomeroDébiologicamenteinativo.”

“Como disse?” ele agora tinha retomado o tom de voz calmo.

“O Isomero D, obtido sinteticamente, é biologicamente inativo. O isômero L que é obtido de fontes naturais tem alta atividade bioquímica e age como cofator na síntese do colágeno. O que dá maior eficiência à função anti-idade nos-cos-mé-ti-cos.” Percebi que todos me olhavam perplexos.

“Obrigado, Michele. Agora, se os senhores me derem licença. As duas. Pra minha sala. AGORA!

 

* * *

 

Ai minha Nossa Senhora da Bicicletinha! Ai meu São Crespim de La Sierra! Acalme o doutor Rodrigues e faça com que ele não me despeça.

Ouvi o barulho da porta da sala da presidência e voltei a abrir os olhos. Eu e a Andressa estávamos de pé, uma ao lado da outra, aguardando que o doutor Rodrigues chegasse à sala. Sem dizer nada, ele se dirigiu a sua mesa, mas ao invés de se sentar junto a ela, parou em frente a nós, cruzou os braços e permaneceu nos observando por alguns segundos.

“Michele.”

Eu, que tinha os olhos voltados para o chão, voltei-os ao meu chefe em meio a um sobressalto por ouvi-lo chamar o meu nome.

“Você poderia me explicar o que foi que houve na sala de reuniões agora pouco?”

Sentia minha cabeça girar. Sentia o chão se mexer. Só não garanto que via luzes alienígenas porque não acredito nessas coisas. 

“Doutor. Eu só respondi a sua pergunta. Não sei o que o senhor achou de tão estranho nisso...”

“Andressa.” Ele se voltou para ela, descruzou os braços e voltou a cruzá-los novamente, mas em posição aposta. “O que você fez para convencer a Michele a fazer esse projeto para você?”

AI, NÃO! ELE DESCOBRIU TUDO!

 “Ai, Ricardo! Que absurdo! É lógico...” disse a loira debochadamente.

“NÃO ME TRATE FEITO IDIOTA, ANDRESSA.”

Ela imediatamente se calou e baixou a cabeça. Eu que já estava cabisbaixa há muito tempo, levantei levemente meus olhos e percebi que as têmporas do doutor Rodrigues estavam contraídas e rubras.

“Eu vou perguntar pela última vez. E não aceito respostas evasivas. O QUE VOCÊ ESTÁ TRAMANDO?”

“Ai, Ricardo!” Disse em tom indignado. “Você vive desconfiando de mim, mas nem percebe que pessoas da sua confiança te enganam de baixo do seu nariz.”

Ele levantou as sobrancelhas em sinal de perplexidade. “O que você está insinuando?”

Ai minha Santa Madalena! É agora que eu saio mortinha daqui.

 “Que certas pessoas, em quem você confia cegamente, se fazem de boazinhas, prestativas... E você mal pode imaginar o que elas são capazes fazer.” E lançou um olhar sinistro, claro e direto para mim.

“Saia da sala.”

“Quê?”

“SAIA DA SALA, ANDRESSA!”

Ela obedeceu ao comando e se retirou da presidência. Assim que ela fechou a porta por trás de si, o doutor Rodrigues segurou os meus ombros e me guiou até um dos sofás da presidência. Em seguida, se dirigiu até o frigobar.

“Doutor, porque o senhor tá me estendendo esse copo d’água?”

“Por que entre você e a parede, não sei dizer qual está mais branca.”

Tomei o copo das mãos dele e quase o bebi em um só gole.

Ele se sentou no sofá, de frente para mim e inclinou seu corpo levemente na minha direção.

“Você está se sentindo melhor?”

“Sim, um pouco.”

“Então me diga de uma vez por todas o que está acontecendo.” Ele falava em um tom sério.

“Ai, doutor! É que...” Eu não conseguia. Era duro demais confessar o meu crime.

“É que...” as palavras não me brotavam na consciência.

Vai Michele. Você não tem mais escolha.

“Eu destruí o presente da sua mãe.”

“O quê?”

“Aquele dia. Quando eu fui buscar o anel que o senhor comprou pro aniversário da sua mãe. Eu deixei o pacote cair no meio da avenida e uma moto passou por cima dele.”

O doutor Rodrigues me olhava com olhos frios.

“Na hora fiquei desesperada. Voltei até a loja e tentei conversar com o vendedor, para que ele pudesse me emprestar outro anel até que o conserto desse ficasse pronto. Mas não teve jeito. Tive que improvisar. Naquele pacote que eu trouxe tem um anel de bijuteria. O anel verdadeiro fica pronto hoje. Agora se o senhor me der licença, eu vou lá dentro pegar as minhas coisas.” E me levantei meio cambaleante do sofá.

“Pegar as suas coisas?! Onde a senhora pensa que vai?!”

“Como assim doutor?! O senhor não vai me mandar embora?!”

“Te mandar embora?! E porque eu faria isso?!”

Nesse momento meu queixo caiu no chão.

O doutor Rodrigues respirou fundo e gesticulou para que eu voltasse a me sentar.

“Michele, por que é que você não me disse nada? Como você pode permitir que aquela víbora explorasse você? Te obrigar a fazer um relatório comercial e um projeto de produto em menos de uma semana? Você faz ideia o tempo que isso leva para que um profissional da área faça esse tipo de trabalho?”

Naquele momento me senti muito envergonhada, era como se realmente eu estivesse traindo a confiança dele.

“Ai, doutor! É que eu tive muito medo. Medo que ela me entregasse para o senhor. Medo que o senhor descobrisse e me demitisse.”

“Você pensa que eu sou o quê?! Um monstro?! Que vai te engolir viva quando alguma coisa sair errado?!” disse ele perplexo.

“Ai, doutor! Me desculpa.” Olhei para as minhas mãos, que pousavam sobre o meu colo, e percebi que lágrimas caiam sobre ela. Tentei disfarçar e cocei levemente o canto dos olhos.

“Não precisa se desculpar. Agora vá lavar o rosto.” Ele se levantou e foi em direção a sua mesa.

“E depois avise ao pessoal que a reunião está encerrada.”

“Sim, senhor.”

Me levantei, limpei minhas mãos na calça jeans e fui em direção a ele.

“Doutor?”

Ele, que já estava sentado em sua mesa procurando por algum documento, voltou seu rosto para mim.

“Há essa hora, a joia da sua mãe já deve estar pronta. Eu não consegui arranjar o dinheiro para pagar o conserto, então se o senhor puder pagar e depois descontar o valor do meu salário...”

“Não, Michele. Não se preocupe com isso. Mais tarde eu vou até a Aqua Marina e resolvo esse assunto.” E voltou a procurar pelo documento.

“Obrigada, doutor.”

Ele continuou em silencio concentrado em sua tarefa. Segui sentido à porta quanto por um estalo, me dei conta de algo.

“Doutor?”

“Sim?”

“Como o senhor sabia que tinha sido eu quem tinha feito o relatório comercial?”

Ele me olhou com uma expressão do tipo: Michele! Isso não era obvio?!

Ele voltou a seu documento recém-encontrado, e eu, com um sorriso contido de orgulho, saí pela porta da presidência.

 

* * *

 

“MAS EU NÃO ACREDITO?!”

Estávamos todas no Sabor do Campo, o restaurante onde as funcionárias da Luna Vita almoçam todos os dias. Eu estava sentada em uma das pontas da mesa enquanto minhas colegas, de olhos e queixos abertos, tinham todas as suas atenções voltadas para o meu relato sobre os últimos acontecimentos na presidência da empresa.

“E ela roubou o seu trabalho assim?! Na cara dura?! Mas é uma salafrária, vigarista mesmo!” disse a Andrea vermelha de indignação."

Ah, mas isso era de se esperar, né Andrea? Aquela loira de farmácia não vale o que come.” Completou a Carla.

“Ei gente, deixa a Michele contá a história.” Disse a Letícia.

Passei quase todo o nosso tempo de almoço contado os detalhes da longa jornada pela qual eu havia passado essa semana, e que vocês já bem sabem. Por mais que todas as meninas soubessem que a Loira-cascavel era tão confiável quanto um gato tomando conta de um aquário, todas ficaram estarrecidas com a audácia dela em levar os méritos do meu trabalho sob o trunfo da chantagem.

“Mas o doutor Rodrigues é um santo, mesmo! Eu sempre soube que ele tinha um bom coração. Mas e com a megera?! Ele não fez nada?” questionou a Sônia.

“Bom, até agora eu não sei.” respondi.

“Ah, mas se o doutor Rodrigues não botar aquela biscate no olho da rua, eu juro que nós todas subimos lá na presidência e damos um ultimato nele.” Disse a Carla em tom altivo.

A única coisa que pudemos perceber em seguida foi o olhar fulminante de reprovação da Leda.

“Meninas. Acho melhor a gente já ir pedindo a conta. Já são quase duas da tarde.” Disse a Andrea quebrado o clima do assunto.

“Ah! Mas já?!” disse a Sônia levantando da mesa.

“É impressionante como quando o assunto tá bom, o tempo voa.” Disse a Carla se levantando também.

Se para elas o tempo tinha voado, para mim parecia que havia passado milésimos de segundo. Eu havia passado por tantas emoções essa semana, que passar um momento descontraído com as minhas colegas de trabalho nunca havia sido tão prazeroso. Fomos em direção ao caixa para acertar nossos almoços. Eu fiquei um pouco para trás, pensando que até hoje cedo, meu maior temor era não conseguir agradar meu chefe o suficiente para que ele me mantivesse no emprego. Mas depois de tudo o que ele me disse a pouco na sala da presidência, acho que não vou mais estremecer toda vez que ele chamar pelo o meu nome.                 

 

* * *

 

“Os senhores desejam mais alguma coisa?”

“Não. Obrigado Dimas. Pode trazer a conta, por favor.”

Eu e o Emerson estávamos, como de costume, no restaurante Porto Belo, local onde almoçamos em dias de trabalho. Após uma longa explanação sobre os fatos ocorridos anteriormente na presidência da Luna Vita, o vice-presidente da empresa decidiu se manifestar.

“Mas essas suas funcionárias, ehn? Estão pior que a encomenda! Onde já se viu?! Tráfico de informação e coação bem debaixo do seu nariz?! E ainda por cima, a gordona te deu o maior prejuízo com a joia da dona Leonora?! Eu no seu lugar mandaria as duas para o olho da rua sem pestanejar!”

Em partes o Emerson estava certo. O que a Andressa havia feito era mais que o suficiente para que eu esfregasse na cara do Arthur o quão suja e baixa era a mulher que ele havia contratado como sua espiã. Ele não teria a menor chance de sequer convocar o conselho para refutar minha decisão. Contudo, algo me dizia que se eu demitisse a Andressa agora, nesse ponto do campeonato, eu perderia por completo a chance de provar que é o Arthur, e não a Andressa quem está conspirando contra a empresa. Já com relação à Michele seria completamente injusto da minha parte demiti-la por uma fatalidade relativa a uma tarefa ao qual nunca havia sido de responsabilidade dela. Eu já havia ligado para a Aqua Marina, confirmado a história com o Escobar, de modo que não havia o menor motivo para que eu a acusasse de qualquer coisa.

“Não, Emerson. Ainda não...” respondi reflexivo.

“Ainda não?! Como ainda não?! Você tá esperando o quê? Que a gorda te coloque em outra fria e que a piriguete te chute da presidência?”

“Antes nós temos que resolver o problema dos empréstimos.”

“Irmão, vê se relaxa. É claro que nós vamos conseguir esses empréstimos. Seu pai deixou um histórico de prestigio entre os bancos internacionais. A Luna Vita jamais deixou de cumprir com uma só dívida em toda a sua história. Olha, presta a atenção. Você está muito tenso. Vê se aproveita amanhã a noite, lá na festa da dona Leonora, e fatura uma das filhinhas das socialites. A Graziela vai tá na festa?”

“Não faço a menor ideia.”

“Então aproveita e liga agora pra ela.” E me estendeu seu celular já com o contato dela selecionado.

Tomei o celular de sua mão e hesitei por alguns instantes.

“Não, deixa.” E devolvi o celular a ele.

Enquanto o garçom trazia a maquina de cartão de crédito, tirei meu celular do bolso do paletó e deslizei o dedo sobre os números de telefone registrados na agenda. Me levantei e fui até a área onde ficava o bar.

“Adriana? Tudo bem? Você tá na cidade? Ah, não. É que eu ia te convidar pra gente dar uma volta, tomar um café. Ah, que pena? Não, tá tudo bem sim. Não, era só pra gente conversar mesmo. Semana que vem? Não vai dar. Eu viajo a negócios. Então, a gente se vê. Um beijo. Tchau.”

Coloquei de volta o celular no bolso quando percebi o Emerson vindo na minha direção.

“Qual é, irmão? Tá de segredinhos pra cima do seu brother?”

“Era a Adriana. Mas ela disse que tá em Pontes.”

“Ih rapaz! Pelo visto o negócio tá sério com ela?”

“Não, cara. A Adriana é minha amiga.”

“Amiga, é? Sei. Eu também tenho uma meia dúzia de amigas assim. Inclusive todas são muito boas de cama.”

Não pude conter o sorriso. Adriana? Boa de cama? E bota boa nisso!

Seguimos em direção à saída do restaurante. Um dos valetes já trazia o carro do Emerson.

“Vou até a Gráfica e de lá vou pra casa. Até a amanhã, irmão.” Disse o Emerson entrando em seu Jaguar XK.

“Até.”

Logo atrás dele vinha o outro valete trazendo um Volvo S90, que me entregou a chave e retornou ao estacionamento.

É. Talvez o Emerson esteja certo. O que eu preciso mesmo é relaxar. Dei a partida saí com o carro rumo a Luna Vita Cosméticos e Saúde.

 

* * *

 

“FELIZ ANIVERSÁRIO!”

Eram 8:35 da noite quando toquei a campainha da casa 14 do condomínio Isla Bella. Pedi para que o rapaz da portaria não anunciasse minha chegada justamente para que eu pudesse pegar a dona Leonora desprevenida.

“Ai, meu filho! Que susto! Por um minuto achei que um fantasma tinha vindo me visitar.” Disse ela com as duas mãos no coração.

Eu havia tocado a campainha e me escondido atrás de um dos arbustos que ficavam na entrada da casa. Ela abriu a porta e ficou durante quase um minuto procurando a origem do chamado. A cara que ela fez quando me viu saltar por detrás do vaso de planta lhe desejando os parabéns foi uns dos momentos mais impagáveis da minha vida.

“Antes que a senhora fique ainda mais brava comigo, aqui está seu presente.” E estendi a sacolinha florida que minha secretária havia providenciado previamente.

“Ah, meu filho! Obrigada.” Disse ela se derretendo e me abraçando.

“Mas que pacote mais simpático! Será que o que tem dentro vai ser tão simpático também?” Disse espiando o interior da sacola enquanto adentrávamos a sala de estar, onde a festa já se iniciara.

“Não sei. Só abrindo pra ver.” Disse em tom de expectativa.

Ela retirou de dentro dela uma caixinha quadrangular com estampas em lilás e duas borboletas sobre a tampa em alto relevo.

“Noooossssa, que coisa mais linda!” E retirou o anel de quartzo azul que eu havia escolhido depois de assistir ao desfile de lançamento da Aqua Marina deste ano.

“Que bom que você gostou.” Disse enquanto ela experimentava o anel em seu dedo médio.

“Obrigada, meu amor!” disse ela segurando e beijando meu rosto. “Ah, mas esse anel está com cara de que foi escolhido a quatro olhos.” Disse ela com um olhar insinuador.

“Nãããooo. O anel fui eu quem escolheu. Sozinho! Só o pacote que ficou por conta da Michele. Aquela minha secretária que eu te apresentei no dia da reunião do conselho.”

“Aquela gordinha? Você ainda está com ela, meu filho?” Disse minha mãe, levemente surpresa.

“Sim.” Percebi que não era só a minha mãe que me reprovava por ter uma secretária plus size. Os outros convidados presentes na sala também me olhavam estranhamente. Enquanto ela se dirigia ao outro lado da sala, a fim de depositar seu mais novo presente sobre uma mesa reservada especialmente para eles, eu segui em direção à mesa onde estavam as bebidas. Precisava me servir de algo que tivesse teor alcoólico minimamente suficiente para começar a festa.

“Você pode fazer um desse pra mim?”

Ao perceber uma voz feminina familiar, me voltei para trás e dei de cara com a ultima pessoa que imagina ver por aqui.

“Camila?! Que surpresa te encontrar aqui. Veio tirar umas férias do Maine?” disse entre beijos de cumprimento.

“Na verdade vim em definitivo.”

Ela permaneceu em silencio me olhando, esperando que eu lhe fizesse o que ela havia pedido. Me voltei para o bar e tomei uma garrafa de Jack Daniels.

“E faz quanto tempo que você está aqui?”

“Oito dias.” E num instante senti sua mão pousando levemente sobre as minhas costas. “Mas e você? Ouvi falar que agora é você quem manda na Luna Vita.”

“É...Pelo menos é isso que eu estou tentando fazer.” Respondi com uma risada que denotava meu desconforto mediante a pergunta. “On the rocks?

“Por favor.” E sua mão escorregou suavemente até a altura da minha cintura.

"Então você ficou cansada do gelo e resolveu voltar para o calorzinho brasileiro?” entreguei o copo a ela e nos dirigimos ao outro lado da sala.

“Não especificamente. Foi mais uma questão familiar.”

“Algum problema com a Débora e com o Theodoro?”

“Não.” Ela sorriu e balançou a cabeça. “Meus pais estão ótimos. O que eu quis dizer é que foi mais uma questão de...como eu poderia dizer...Uma mãe sentindo a ausência dos seus filhos e um pai que acredita que sua filha pode ser mais bem sucedida aqui com um escritório de arquitetura, do que numa terra fria onde as casas são feitas de neve.”

“Há! Agora eu entendi.”

Eu e a Camila nos conhecemos desde crianças, mas não somos propriamente amigos. Na verdade o Theodoro é que era muito amigo do meu pai. Durante nossa infância e começo da adolescência, nossas famílias costumavam passar os fins de semana no clube de campo em Primaris. Alguns anos depois ela foi estudar nos Estados Unidos e eu na Suíça. Chegamos a nos encontrar mais duas ou três vezes nesse período. Depois de concluirmos a graduação, eu voltei para o Brasil e ela foi fazer estágio numa construtora no estado do Maine e desde então não nos vimos mais. Isso já deve fazer quase dez anos.

Apesar de nunca termos nutrido uma amizade no sentido convencional da coisa, nós já tivemos os nossos momentos. Um deles foi no final da nossa infância, quando passamos por algo que eu chamaria de um namoro juvenil (aquele com direito a passeio de mão dada e coração com nossas iniciais cravado na casca da árvore). E outro foi quando estávamos no ensino médio, numa dessas festas beneficentes que nossas mães costumavam organizar. Estávamos trabalhando como voluntários do leilão de peças de arte e entre a catalogagem de um quadro aqui, uma escultura ali, empacotando um vaso chinês acolá, nos escondemos debaixo de uma das mesas do buffet e arrematamos uma meia dúzia de amassos.

“Mas me fala mais de você. Além presidir a sua empresa, o que você tem feito de bom?”

Estávamos sentados em um dos sofás. Ela, que já sentava com as pernas cruzadas, virou seu corpo na minha direção e pousou delicadamente a mão direta sobre o meu joelho.

“Bom...é...” Muitas coisas, mas nenhuma delas que supere uma noite de vinho, música e uma cama habitada por uma bela mulher.

“Fazem uns três meses, eu e alguns amigos passamos um fim de semana em Bariloche.”

"Bariloche?! Então eu não sou a única a ter uma queda pela neve?” ela sorriu abertamente.

"Aparentemente não!” e rimos simultaneamente.

“Mas só amigos? Você não tem feito nenhum programinha com as amigas?” e provou de um gole malicioso de seu whisky.

“Se você quiser me convidar para algum. Eu estou completamente disponível.”

“Quando você diz disponível...” ela me olhou desconfiada.

"Eu quero dizer: solteiro.”

“Ah!” E mais uma vez rimos com segundas intenções.

Ela pousou o copo sobre um dos aparadores e se aproximou do meu rosto, quase no pé do meu ouvido.

“Não que eu não esteja gostando da festa de aniversário da sua mãe.” Ela se aproximou ainda mais, quase encostando os lábios na minha nuca. “Mas...que tal se a gente desse uma volta pela cidade. Desde que eu voltei pra Mongrado, ainda não tive tempo de conferir o quão evoluída ela está.”

Passei meu braço por volta do seu corpo, que me parecia estar mais macio do que da ultima vez que nos escondemos debaixo da mesa no leilão. Não que ela fosse do tipo gordinha. Na verdade a Camila sempre foi daquelas falsas magras, que vendo é uma coisa, mas pegando é outra completamente diferente. Segurei sua cintura e me levantei, trazendo seu corpo junto ao meu. Seguimos pela sala de jantar em direção à cozinha. Saímos pela porta dos fundos. Nenhum dos convidados percebeu nossa fuga, com exceção do Emerson, que estava apoiado em um dos balcões da cozinha, conversando com uma funcionária do Buffet contratado para servir a festa. Nos entreolhamos por alguns milissegundos, e isso foi o suficiente para que a mensagem fosse dada: Vai lá meu brother! De um trato na boneca, mas não perca a cabeça, porque amanhã eu quero saber de todos os detalhes dessa brincadeira.

 

* * *

 

“Doutor. Nessa pastinha eu coloquei os vouchers das passagens de ida e volta, o voucher do hotel em Miami, a lista com os endereços dos bancos que o senhor vai visitar e alguns números de telefone úteis como pontos de táxi, farmácias 24 horas, consulado brasileiro e outras coisas. O mesmo eu fiz com os documentos do doutor Vilaça que estão nessa pastinha aqui.” E abriu a gaveta da escrivaninha onde de dentro dela retirou uma pequena pasta de elástico, do mesmo tamanho que a minha, mas que ao invés de ser vermelha, tinha a coloração azulada.

Eram quase cinco da tarde da segunda feira. Eu e o Emerson já estávamos de malas prontas para nossa viagem de peregrinação pelos bancos internacionais. Eu e a Michele estávamos repassando os últimos detalhes da viagem.

“É bom que o senhor coloque nessa pastinha também o seu passaporte, pra não ter risco de se perder na bagagem."

“Claro, Michele. Eu vou sim.” Disse enquanto fechava a pasta com o elástico.

“O senhor está levando roupa de frio? É que eu dei uma olhada na previsão do tempo de Miami e parece que vai chover no final da semana...”

“Vou ver se providencio isso quando chegar em casa. Obrigado por me lembrar.”

“E guarda chuva também. No caso do senhor precisar andar a pé em algum lugar.”

“Claro.”

“E remédio? O senhor está levando alguma coisa? Quer que eu vá até a farmácia buscar um Tilenol? Um sal de fruta?”

“Não, não precisa. Obrigado.”

“E álcool em gel? Nunca se sabe se algum vírus...”

“MICHELE! EU NÃO ESTOU INDO PRA MARTE!”

Ela abriu bem os olhos, se estremeceu e em seguida baixou a cabeça.

“Se eu precisar de mais alguma coisa compro por lá.” Completei meio arrependido por me exaltar. “Bom, vamos repassar o que combinamos.”

Evidentemente eu não poderia partir em uma viagem que deveria transcorrer na maior descrição, sem antes preparar um álibi minimamente convincente. Passei quase que a manhã toda conversando com o Emerson, buscando possíveis e impossíveis questionamentos que seriam feitos às nossas secretárias. Naturalmente, a única pessoa que sabia da real intenção dessa viagem era a Michele. E era com esta que eu deveria tomar o cuidado maior.

“Se algum dos funcionários perguntar sobre a minha ausência ou sobre a ausência do doutor Vilaça...”

“Eu digo que os senhores tiveram que viajar as pressas para São Paulo porque um dos contêineres com um lote de mercadoria que ia para a China ficou interditado na aduana e os senhores tiveram que ir lá pessoalmente desembaraçar a papelada.”

“Ótimo. Se alguém perguntar quantos dias nós vamos ficar por lá ou para quando está marcado o nosso retorno...”

“Eu digo que tudo vai depender que como vão se desenrolar os tramites por lá.”

“Muito bem. Se algum dos diretores quiser saber sobre o local onde estamos hospedados...”

“Digo que não sei ao certo porque os senhores iriam se hospedar na casa de amigos, mas não disseram qual ou quais, onde moram ou qualquer contato para que eu possa falar.”

“Perfeito. Caso algum dos acionistas ou diretores estranhem o fato de não conseguirem entrar em contato conosco pelos nossos celulares...”

“Digo que por algum motivo, as linhas de celulares em São Paulo estão congestionadas, mas que assim que eu receber a ligação dos senhores, aviso que algum deles está tentando entrar em contato e que em breve os senhores retornarão a ligação."

“Muito bom.”

Ela abriu um sorriso de orelha a orelha.

“Há! E mais uma coisa. Se o doutor Cavalcante ligar perguntando sobre nosso paradeiro...”

“Digo que os senhores tiveram que viajar as pressas para São Paulo e isso é tudo o que eu sei.”

Essa é a secretária que eu pedi a Deus!

“Excelente Michele! Prometo que algum dia te promovo a assistente da presidência.”

Ela deu um sorrisinho tímido e balançou a cabeça sem graça.

“Bom acho que está tudo certo então.”

Peguei minha valise com os documentos necessários para os bancos, coloquei a pasta contendo os outros documentos separados pela minha secretária dentro dela, peguei a bolsa com meu notebook contendo todas as planilhas de projeções financeiras da Luna Vita e segui rumo a saída da presidência.

“Por hoje acho que não há mais nada a se fazer. Você está dispensada.”

“Obrigada, doutor.”

“Amanhã, apesar de não estar aqui, quero a senhora começando o expediente bem cedo. No máximo até as oito."

"Pode deixar, doutor.”

“Então. Até daqui a dez dias.”

”Até, doutor.”

Estava quase abrindo a porta quando a ouvi me chamar.

“Doutor? O senhor me liga assim que chegar lá? Pode ser a hora que for. Se eu não estiver mais aqui na empresa, pode ligar no meu celular. O numero esta naquela lista que eu passei pro senhor.”

“Ok. Eu ligo.”

Estava encostando a mão na maçaneta quando mais uma vez ouço-a chamar por mim.

“Doutor? É...”

Me virei para trás e a vi em pé, com as mãos entrelaçadas junto ao peito, balançado as pernas freneticamente.

“Eu só queria desejar ao senhor uma boa viagem e....boa sorte.”

“Obrigado, Michele.”

Com um sorriso estampado nos lábios, virei a maçaneta e me dirigi ao elevador do sexto andar da Luna Vita Cosméticos e Saúde.

 

* * *

O taxi parou em frente ao South Union Bank da avenida Brickell em Miami. De dentro dele, um homem de estatura média, terno Armani impecavelmente alinhado, cabelos penteados para trás e expressão sagas saiu após não fazer questão de pegar o troco do valor pago pela corrida. Apressadamente ele passou pela porta de vidro que separava o calor quase escaldante da cidade, do ambiente climatizado onde só os mais abastados tinham acesso.

“Boa tarde. Eu sou Arthur Cavalcante. Estou aqui, pois tenho hora marcada com o senhor Calvin Philips.” Disse num inglês que não lhe exigia esforços.

“Claro, sente-se, por favor. O senhor Philips já vai atendê-lo.” Respondeu a secretária que pelo modo que se vestia, aparentava receber um salário privilegiado.

  Pouco mais de cinco minutos após sua chegada. Um jovem senhor de cabelos grisalhos e soltos, terno de linho claro e expressão acolhedora adentrou a sala de espera.

“Senhor Cavalcante. Como vai?” disse estendendo a mão na direção de Arthur.

“Melhor agora. E o senhor?” retribui a gentileza.

“Estou bem, também. Por favor, siga por aqui.” E apontou para a direção onde ficava o seu escritório.

“E então? Em que posso ajuda-lo, senhor Cavalcante?”

Apesar das informações dadas pela Andressa terem sido de pouquíssima ajuda, Arthur conseguiu delinear um plano de ação potencialmente eficiente. De acordo com os registros coletados do computador da secretária do Ricardo, Arthur conseguiu inferir que a lista contendo os nomes dos principais bancos de Miami e seus respectivos endereços, serviria, no mínimo, como um guia para uma sabatina de negociações a fim de se pedir algum tipo de financiamento ou empréstimo. O mesmo tinha sido feito com bancos na Suíça.

Afortunadamente, dos nove bancos listados nos documentos anteriores, oito eram dirigidos por economistas que em algum ponto da história tiveram relações comerciais com a família Cavalcante. Desse modo, a primeira parte do plano se tornava viável.

“Eu estou aqui hoje, pois gostaria de conversar com o senhor a respeito de algo que vem me preocupando muito nos últimos tempos.” Arthur tinha uma expressão de pesar e simulava um leve tremor nas mãos.

“Como o senhor deve saber, já que conhece minha família muito bem, eu, Arthur Cavalcante, sou um dos acionistas majoritários de uma empresa de cosméticos brasileira chamada Luna Vita.” Ele fez uma pausa para segurar a mão que aparentemente tremia.

“Creio também que o senhor deva ter tido a oportunidade de conhecer o seu presidente anterior, o senhor Ricardo Luis Rodrigues.”

“Claro.” Respondeu o gerente sorrindo e balançado a cabeça.

“O fato é que há pouco mais de um ano, infelizmente.” Arthur tornou seu tom ainda mais sombrio. “O senhor Ricardo Luis veio a falecer. Um evento súbito que não nos trouxe outra alternativa a não ser preencher o seu cargo com a única pessoa que teria o direito por lei de sucedê-lo na empresa: seu filho, Ricardo Rodrigues Filho.” Arthur deu um suspiro profundo e seguiu com a história.

“Contudo, o empreendedorismo e o senso de liderança do pai não foram herdados pelo filho. O rapaz, que hoje não deve passar dos trinta anos, é um verdadeiro doidivanas. Mimado, sem limites, acostumado com os caprichos que o pai lhe dava, é uma verdadeira bomba-relógio na presidência da Luna Vita.” Arthur novamente voltou a segurar a mão que dissimuladamente tremia.

“Soube por fontes internas que ele está vindo para Miami, a fim de requisitar seus recursos financeiros para alguma estratégia megalomaníaca e inconsequente de mercado.”

“Soube também, por essas mesmas fontes que o empréstimo ou financiamento que ele está preste a requisitar será feito completamente por baixo dos panos.” Arthur fez uma pausa dramática, demonstrando na expressão toda a sua falsa perplexidade.

“Senhor Philips. A família Cavalcante é acionista dessa empresa há três gerações e devo dizer que temo que o patrimônio construído desde a época de meu avo corra o risco de ser levado para campos ilícitos.” Arthur mais uma vez fechou o cenho em sinal de profunda perturbação.

“É por esses motivos que venho pedir ao senhor que não conceda nenhum centavo a esse delinquente.”

O gerente do banco permaneceu por alguns segundo observando o homem que sentava a sua frente.

“Senhor Cavalcante, entendo as suas razões, mas não posso negar um empréstimo antes mesmo dele ter sido avaliado. Por mais que esse novo presidente seja tudo isso o que o senhor falou, eu não tenho como lhe negar recursos caso não conste nenhum tipo de ilegalidade ou inadimplência no histórico da sua empresa.”

Arthur se ajeitou melhor na cadeira e se recompôs para iniciar a segunda parte do seu plano.

“Eu entendo. Entendo perfeitamente o que o senhor está querendo dizer. E eu particularmente acredito que do ponto de vista jurídico não haverá nenhum empecilho para que o empréstimo seja concedido. O rapaz, mesmo sendo um irresponsável, é bastante inteligente e certamente lhe convencerá de que não há qualquer risco que mostre que a Luna Vita não seja capaz de arcar com o pagamento da dívida. E quer saber do mais? Acho que caso ele se enquadre nos pré-requisitos para o empréstimo, o senhor deveria conceder o dinheiro a ele.”

Arthur agora simulou um tremor ainda mais intenso e uma pequena falta de ar.

“Contudo, antes de ir embora, gostaria de lhe fazer um ultimo pedido.”

O gerente do banco agora observava Arthur com a expressão ainda mais enigmática.

“Como o senhor deve ter percebido, minha saúde não tem tido os seus melhores dias.” Ele passou a mão ao longo do pescoço, sinalizando que gostaria de um copo d’água.

O gerente instantaneamente telefonou a sua secretária que em segundos adentrou a sala com uma bandeja de prata. O gerente do banco observou Arthur tomando o copo da bandeja com as mãos ainda mais tremulas, e com dificuldade bebeu até a ultima gota d’agua.

“Caso esse empréstimo seja concedido e se por uma desventura o pagamento não for feito, de modo que o banco seja obrigado a embargar a empresa. E isso o que eu estou dizendo é apenas uma conjectura.” Ele depositou o copo sobre a mesa e posicionou sua mão estrategicamente no feixe de sua valise. “Gostaria que me fosse dada prioridade de compra, caso a empresa seja colocada a leilão.”

Ele retirou, sorrateiramente, um documento, previamente concebido pelos seus advogados e depositou suavemente sobre a mesa.

“Isso que eu estou lhe pedindo é apenas uma medida preventiva. E não faço isso nem por mim e nem pelos meus antepassados, mas sim pelos meus futuros filhos. Para que eu seja capaz de lhes garantir uma mínima segurança de vida.”

O gerente do South Union Bank tomou o documento em suas mãos e dinamicamente leu cada uma de suas clausulas.

“OK. Como aqui consta que esta é apenas uma medida preventiva, não vejo o porquê de não assinar.”

Retirou a caneta de seu bolso e assinou na área onde constava seu nome e cargo do banco.

Arthur tirou também sua própria caneta do bolso e assinou na área correspondente a ele.

“Muito obrigado, senhor Philips. O senhor acaba de me tirar um peso das costas.”

Ambos os homens se despediram com um aperto de mão e Arthur seguiu rumo à saída do prédio do banco.

Pronto, agora só me restam sete. Antes mesmo daquele moleque pensar em botar os pés nessa cidade, ele já vai estar comendo na minha mão. E o melhor é que ele não faz a menor ideia disso. Pensou Arthur quando avistou um táxi vindo no sentido do próximo banco ao qual ele se dirigia.

 

* * *

 

“Amor, vai abrindo o vinho enquanto eu tiro a travessa do forno.”

Eram oito e vinte da noite e o primeiro jantar oficial da casa dos Martins estava prestes a ser servido. O Pedro e a Isa tinham voltado da viagem de lua de mel no sábado, mas só hoje é que eu pude revê-los e conhecer o novo lar dos pombinhos. Sabe como é, né? Até eles se recuperarem do jet leg e se organizarem na casa nova. O jantar de boas vindas terminou saindo só hoje, terça-feira.

“Ai, Mi. Esqueci de pegar o aparador pra travessa. Cê abre aquela gaveta em baixo da pia e pega pra mim?”

Eles haviam passado três dias em Cancun e dois na Cidade do México. Então imagine a quantidade de fotos e histórias da viagem que eles tinham para contar. A Isa me trouxe um monte de souvenires Astecas, já que eles tinham visitado dois sítios arqueológicos na Cidade do México.

“É esse Isa?” disse enquanto mostrava uma espécie de tapetinho redondo de silicone verde.

“Isso, Mi. Coloca no centro da mesa pra mim?” Respondeu ela com uma travessa de costela assada nas mãos.

Apesar da comida estar com uma aparência extremamente apetitosa, meu estomago estava meio embrulhado. Isso devido, um pouco, ao frenesi do retorno da minha melhor amiga, e em grande parte, pelo fato do doutor Rodrigues, a essa hora da noite, ainda não ter ligado. É possível que ele tivesse simplesmente chegado cansado da viagem e esquecido de me ligar. Ou pode ser que o voo tenha atrasado e ele ainda não tenha chego lá. Ou ainda, pode ser que tenha acontecido alguma coisa...Ai minha Santa Madalena! E é nessas horas, quando eu pensava o pior, que o meu estomago embrulhava ainda mais.

“Nossa! O cheiro dessa costela tá hipnotizante.” Disse o Pedro já se sentando a mesa.

“Ah! Acho bom! Ai de você reclamar da minha comida!” disse a Isa fingindo que o ameaçava.

“Cê viu né, Michele? Já viu porque eu casei com ela. Mulher prende o marido pelo estomago.” Disse ele sorrindo pra Isa.

“Ah, não é só o marido, não! As visitas também!”

Todos nós gargalhamos.

 O banquete da noite era constituído de arroz branco; salada mista com alface, agrião, cebola, palmito e tomatinhos cereja; e costela assada no suco de laranja com batatas sotê. Hum! Que delicia! E para acompanhar essas iguarias, Almaden Cabernet Suave (o meu favorito!). O papo durante o jantar não se manteve muito diferente do que já estava em pauta antes dele: A maravilhosa viagem ao México. Apesar de adorar ouvir sobre essas coisas, meus olhinhos esporadicamente se direcionavam ao meu celular que estava posicionado estrategicamente sobre o meu colo, levemente camuflado pelo guardanapo que pousava sobre ele. E naturalmente que a Isa (que não é boba!) percebeu que havia algo de estranho.

“Agora, adivinha o que eu fiz de sobremesa?”

“Que NÓS fizemos de sobremesa.” Reiterou o Pedro.

Certamente ela havia feito alguma coisa que eu gosto (o que é bem típico da Isa). Mas tendo em vista que meu gosto pende a praticamente tudo que é composto por dissacarídeos de uso comercial, seria difícil de adivinhar de qual das infinitas possibilidades ela estava falando.

“Pudim de leite?”

“Não.”

“Torta holandesa?”

“Também não.”

Olhei involuntariamente para baixo o que despertou um fechar de semblante na Isa.

“Mousse de maracujá?”

“Nããão.”

Tava ficando cada vez mais difícil.

“Bolo de maçã.”

Ela apenas fez uma cara de Errou feio. Errou feio. Errou rude.

Olhei para o Pedro e ele estava fazendo um formato redondo com as mãos, mas como sou péssima de mimica chutei o mais longe que pude.

 “Torta de nozes?”

Ela só balançou a cabeça em sinal negativo.

Ele começou a mexer os dedos como se estivesse torcendo algo. E eu, cada vez mais nervosa, olhei novamente para baixo.

“Sorvete de palito?”

Dessa vez a Isa nem se deu ao trabalho de responder

Olhei de novo para baixo e em seguida para o Pedro, que agora fazia com uma das mãos um formato de copinho e com a outra uma colher.

“Pavê de sonho de valsa?”

“Aê! Finalmente!” comemorou o Pedro.

A Isa simplesmente se levantou e foi até a geladeira buscar a recompensa. Trouxe os copinhos e três colheres de cores variadas. Comemos os três em silencio. Depois de terminarmos, recolhemos a louça e fomos todos para a pia arrumar a bagunça.

“Pedro? Salva uma cópia das fotos da viagem pra Mi enquanto a gente termina aqui?”

“Claro, amor!” disse ele dando um selinho em sua esposa e se dirigindo a sala onde estava ligado o notebook.

Assim que o Pedro se afastou ela chegou bem perto do meu ouvido e falou baixinho.

“O que que tá acontecendo que você não tá querendo me contar?” ela estava claramente brava.

“Não, Isa! Não tá acontecendo nada...”

“Para de bancar a tonta comigo. Desde que você chegou aqui, você não para de ficar olhando pra esse celular. E você nunca fica olhando o seu celular!”

É. Fui pega.

“É que eu tô esperando uma ligação?”

“Michele. Não me trata feito burra. É lógico que eu sei que você tá esperando uma ligação. O que eu quero saber é porque você passou o tempo inteiro, desde que chegou aqui, feito uma calopsita neurótica. Você sabe muito bem o quanto eu odeio quando você esconde as coisas de mim.”

Em tese, não havia nada demais em eu dizer à Isa que eu só estava esperando meu chefe me ligar dizendo que estava tudo bem e que ele havia chego são em salvo em Miami. Mas como é a Isa, a pessoa que me faz o maior número de perguntas do mundo (quase empatada com as meninas da empresa) eu preferia não tocar no assunto. Principalmente pelo fato de que meu chefe tinha me dado ordens claras de que era expressamente proibido falar sobre qualquer coisa, com qualquer pessoa, sobre essa viagem. Por mais que a Isa não tivesse nada a ver com a empresa, ela iria ficar me fazendo diversas insinuações sobre o assunto, o que é algo extremamente desconfortável para mim.

“Ai, Isa. Não é nada demais. É que eu...”

Eu precisava inventar uma mentira, isso era fato. Só que tinha que ser algo bobo, algo que ela não fosse ficar pegando demais no meu pé. Se eu inventasse que algum rapaz lá da empresa tinha ficado de me ligar, ela iria ficar em polvorosa. Se eu dissesse que estava esperando o telemarketing da TV a cabo me ligar, avisando quando iriam lá em casa consertar o sinal da TV, ela nem morta iria acreditar. Não havia nada na minha cabeça que pudesse se encaixar nesses pré-requisitos. E ainda por cima eu precisava pensar rápido.

“É que o...”

“O o quê, Michele?” ela estava realmente nervosa.

“O....”  o gato, o mato, o Tato.

“O Tato, filho do zelador...”

“Hã.” Disse ela incrédula.

“Tava...” lavando, desenfetando...

“Detetizando os corredores do prédio. E disse que a gente não poderia sair do apartamento até o vapor do veneno assentar.”

“Sei.” Disse ela menos incrédula.

“Então. Como eu vinha pra cá, ele ficou de me avisar a hora que eu ia poder voltar para casa.”

“Ahãm.”

“Mas há essa hora. Acho que ele não me liga mais. Deve tê esquecido.”

Ela ficou me olhando ainda meio suspeita. Mas como viu que eu continuei firme, resolveu acreditar em mim.

Quando terminamos de arrumar a cozinha já passavam das onze e meia da noite. O Pedro me entregou um DVD com todos os arquivos de fotos e vídeos da viagem. Ainda conversamos mais um pouco, mas como já estava ficando tarde, resolvi ir embora. Eles ainda queriam me levar até em casa, mas como o ônibus que sai do prédio deles desce praticamente na porta do meu, resolvi recusar a gentileza.

Assim que eles fecharam a porta quase tive um enfarte cavalar com o toque do meu telefone. Corri para o elevador e tirei o celular do bolso de trás da calça. O numero que constava no visor era gigantesco e começava com o prefixo 1305.

“Alô?” respondi com a voz tremida.

“Michele?”

“Sim?”

“Sou eu, o Ricardo.”

Ai minha nossa senhora da bicicletinha! Nunca tinha sido tão bom poder ouvir a voz do meu chefe.

“Oi, doutor. Como foi de viagem?”

“Bem. Cheguei aqui em Miami por volta das nove da noite. Daí segui para o hotel. Até fazer o check in. Tomar um banho. Eu por acaso não te acordei, te acordei?”

“Não doutor.” Disse rindo contidamente.

“É. Como você pediu para avisar assim que chegasse aqui...”

“Não, doutor. Eu acabei de sair da casa da minha amiga. Tô indo pra casa agora.”

“Há, certo... Está tudo OK na empresa?”

“Até agora sim.”

 “Alguém perguntou do nosso paradeiro?”

“Só o pessoal de sempre. O Celso, o pessoal da administração...”

“O doutor Cavalcante?”

“Não.”

“Ótimo. É...eu vou sair pra comer alguma coisa...eu ligo daqui alguns dias pra saber sobre o andamento das coisas por aí.”

“Sim, senhor.”

“É...então...uma boa noite pra você.”

“Boa noite pro senhor também. E boa sorte amanhã com os bancos.”

“Obrigado, Michele. Tchau.”

“Tchau.” respondi com um semi-sorriso.

Nada poderia descrever o alívio que eu senti quando atendi aquele telefone. Por algum motivo, que eu não sabia bem explicar, essa história toda da viagem e dos empréstimos me deixava muito aflita. Se eu parar para pensar, isso realmente é uma coisa muito boba. Não há nada de mais com uma viagem internacional ou um pedido de empréstimo a um banco. Essa não deve ter sido a primeira vez que a Luna Vita, nem o doutor Rodrigues, fazem uma coisa dessas. Certamente isso deve ser algo bastante corriqueiro para um presidente de uma empresa. Mas não sei...toda vez que eu penso nessa viagem, me dá aquela pontada no peito. Aquela gastura que dá quando agente tá quase entrando na sala para prestar o vestibular. Ou quando a gente tá esperando sair a nota daquela prova dificílima.

Olhei para o fim da avenida e vi que o 64 vinha na direção do ponto de ônibus onde eu me encontrava. Fiz sinal e aguardei que ele parasse.

Calma, Michele! Isso é tudo caraminhola da sua cabeça. O que pode acontecer de ruim com o doutor Rodrigues? Aviões são veículos seguros. Empréstimos são concedidos a grandes empresas a centenas de anos. Não tem nenhum motivo pra você se preocupar. Pensei enquanto observava as luzes da cidade sentada na primeira cadeira do ônibus.

 



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