"A expressão soberana da vida" é outro "fato cru" — tal como a "responsabilidade" de Levinas ou mesmo a "demanda ética" de Logstrup.
Ao contrário da demanda ética, eternamente à espera, inaudível, inexaurida, irrealizada e talvez, a princípio, irrealizável e inexaurível, a expressão soberana da vida sempre se realiza e se conclui prontamente — embora não por escolha, mas "de modo espontâneo, sem que se exija" (8). É, podemos presumir, essa condição "sem escolha" das expressões da vida que explica a imputação de "soberania".
"A expressão soberana da vida" pode ser vista como outro nome para o Befindlichkeit ("estar situado", noção essencialmente ontológica) de Martin Heidegger, combinado com seu Stimmung ("estar sintonizado", reflexo epistemológico do "estar situado"). (9) Como Heidegger insinuou, antes que se possa iniciar qualquer escolha já estamos imersos no mundo e sintonizados com essa imersão — armados de Vorurteil, Vorhabe, Vorsicht, Vorgriff, todas essas capacidades com o prefixo "vor" ("pré") que antecedem todo o conhecimento e constituem a sua própria possibilidade. Mas o Stimmung heideggeriano relaciona-se intimamente com o das Man — o "ninguém, ao qual toda a nossa existência ... já se rendeu".
"No início, eu não sou 'eu' no sentido do meu próprio eu. Para começo de conversa, ser é Man e tende a permanecer assim." Esse estado de "Ser como das Man" é, em sua essência, o estado da conformidade na sich, inconsciente de si mesma como conformidade (e que portanto não deve ser confundida com a escolha soberana da solidariedade). Na medida em que aparece sob o disfarce do das Man, o Mitsein ("Ser Com") é uma fatalidade, não um destino nem uma vocação. E assim é a conformidade com a rendição ao das Man: deve primeiro ser desmascarada como conformidade antes de ser rejeitada e combatida no ato crítico da auto-afirmação, ou abraçada entusiasticamente como uma estratégia e um propósito de vida.
Por outro lado, ao insistir em sua "espontaneidade", Logstrup sugere essa condição de "an sich" para as expressões de vida, reminiscente daquela do Befindlichkeit e do Stimmung. Ao mesmo tempo, contudo, parece identificar a expressão soberana da vida com a rejeição daquela conformidade "primeva", "naturalmente dada" (ele tem fortes objeções à "absorção" das expressões soberanas pela conformidade, sua "submersão numa vida em que um indivíduo imita outro"), embora não identificasse nenhuma delas com o ato original da auto-emancipação, da ruptura do escudo protetor da condição an sich. Logstrup insiste que "não é precipitado concluir que a expressão soberana da vida vai prevalecer" (10).
A expressão soberana tem um adversário poderoso — a expressão "constrangida", induzida externamente e portanto heterônoma em vez de autônoma, ou ainda (numa interpretação provavelmente mais afinada com a intenção de Logstrup) uma expressão cujos motivos (já re-presentados, ou melhor, desvirtuados, como causas) se projetam sobre os agentes externos.
Exemplos da expressão "constrangida" são designados como ofensa, ciúme e inveja. Em cada caso, um traço marcante da conduta é o auto-engano destinado a ocultar as fontes genuínas da ação. Por exemplo, o indivíduo "tem uma opinião muito elevada de si mesmo para tolerar a idéia de ter agido erradamente, e assim apela à ofensa para desviar a atenção de seu próprio deslize, o que consegue identificando-se com a parte prejudicada ... Obtendo-se satisfação em ser a parte prejudicada, deve-se inventar erros para alimentar a autocondescendência." (10) A natureza autônoma da ação é, portanto, suprimida — é a outra parte, acusada da má conduta original, do delito que deu origem a tudo, apresentada como o verdadeiro ator do drama. O eu permanece, assim, totalmente do lado receptor.
Sofre as ações dos outros em vez de ser um ator por direito próprio. Uma vez abraçada, tal visão parece propelir-se e reforçar-se por si mesma. Para manter a credibilidade, o ultraje imputado à outra parte deve ser mais assustador e acima de tudo menos curável ou redimível, e os conseqüentes sofrimentos das vítimas devem ser declarados ainda mais abomináveis e dolorosos, de modo que a vítima autodeclarada possa prosseguir justificando medidas cada vez mais duras "em justa resposta" à ofensa cometida ou "em defesa" contra ofensas ainda por cometer. As ações "constrangidas" precisam negar constantemente sua autonomia. É por essa razão que elas constituem o obstáculo mais radical à admissão da soberania do eu e a que este atue de maneira consoante com tal admissão.
A superação das restrições auto-impostas mediante o desmascaramento e a desvalidação do auto- engano sobre o qual elas se baseiam emerge assim como condição preliminar e indispensável para dar asas à expressão soberana da vida — uma expressão que se manifesta, em primeiro lugar e acima de tudo, na confiança, na misericórdia e na compaixão.
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