Haviam se passado três dias e duas noites desde que a Rainha retornou para Marmoreal. Ela continuava na mesma situação: Não acordava, e já não esboçava nenhum sinal de melhora... Nem mesmo sorria ao ouvir minhas maluquices.
Eu continuava com a minha estúpida esperança de que Mirana abrisse seus olhos, e às vezes, passava o dia, tarde e a noite inteira ao seu lado.
A sua espera.
Todos começaram a se preocupar com a minha ausência em Marmoreal, estava confinado naquele quarto como se eu estivesse desacordado e impossibilitado de sair. De fato, era assim que eu me sentia emocionalmente: Com certeza não havia nenhuma forma de mudar o futuro construído pelo Oráculo, um futuro que estava se tornando cada vez mais próximo, para o meu desespero.
Wonderland nunca esteve tão escuro e vazio quanto nesses últimos dias. Eu tinha certeza que o Mundo Subterrâneo sofria com o estado da Rainha.
''Obrigada. '' - Ouvi uma risadinha tímida vindo do jardim.
Me levantei ao perceber que era a voz da Alice, eu estava dois andares acima dela e pensei que poderia espiá-la.
Cheguei até a janela do quarto, batendo um dos meus dedais sobre o vidro.
Presenciei uma cena que mexeu com toda a minha estrutura.
Ela abraçava o Valete enquanto segurava uma Rosa Vermelha, certamente o cavaleiro havia lhe dado. Meu coração se apertou enquanto o meu peito estufava com a minha expiração lenta, reparava no modo como ela se mantinha nas pontas dos pés, causando-lhe um certo desconforto que era muito bem recompensado pelo abraço reconfortante que recebia: As mãos da moça tocavam sua nuca com delicadeza. E o que mais me incomodava era que Stayne estava de costas para a minha janela e não tinha como ver onde suas mãos pousavam, talvez acariciavam sua cintura, bem de leve.
Eu evitava ao máximo imaginar a sensação que ele tinha ao ter aquele corpo junto ao seu.
Apertei meus lábios enquanto fechava o meu punho, arranhando o meu dedal na janela e me forçando a fechar os olhos com o ruído estridente que eu mesmo causei.
Alice parecia apreciar o abraço e a rosa vermelha em suas mãos. Naquele instante eu não tinha certeza se era o Tempo me castigando, ou se aquela demonstração de afeto dos dois demorava mais do que o normal.
Eu não via a hora de vê-los separados. Já não suportava olhar os dedos de Kingsley brincando com os cabelos lisos e pretos do Valete. Exatamente como fez comigo, nas poucas vezes que me abraçou.
Pressionei minha sobrancelha e aproximei mais o meu rosto da janela, tocando o vidro com o meu nariz. Eu estava enlouquecendo ou havia algo de muito estranho?
Sim...
Seus olhos...
Seus olhos castanhos esverdeados me analisavam de longe. E ao perceber que eu finalmente notei aquele detalhe, um sorrisinho de lado se desenhou rapidamente nos seus lábios rosados.
Fechei as cortinas e me afastei da janela. Conseguia perceber uma mancha laranja atrapalhando a minha visão: Eu não conseguiria segurar a raiva dessa vez. - Ela fez de propósito! - Puxei os meus cabelos depois de jogar o meu chapéu com força no chão, atitude na qual me arrependi em seguida. - Por que ela fez de propósito? - Não controlei minha risada, meu humor estava instável e isso era nítido. - P-propósito... - Virei para o lado, percebendo Mirana ainda deitada sobre o colchão de grama. - Q-que grande Slurvish*! - Sentei-me, ajoelhando sobre o chão. - Perdão, Majestade... - Eu balançava a minha cabeça sem parar. - E-eu não queria chingar a A-Alice na sua presença... E-eu a amo, t-t-enho certeza que ela quer me levar a loucura. - Me esforcei para prender a risada dessa vez. - L-loucura... - Sussurrei. Tornei a ficar sério de novo, percebendo algo que eu não havia notado. - O que é i-isso? - Toquei na saia branca do seu vestido, reparando um grande rasgo na lateral.
Eu encarava suas vestimentas um pouco surpreso, seu tecido era o mais nobre de toda a Wonderland, feito sob medida para a realeza.
Eu me perguntava como pode rasgar assim, tão facilmente.
[...]
-Chapeleiro! - Mallymkun foi atraída pelo som da máquina de costura vindo do meu quarto.
Ela subiu pela minha perna e saltou para a mesinha ao lado, perto de alguns retalhos que não tive tempo de guardar. - São dez pras seis! - Disse ao me ver totalmente concentrado na costura. - Você não vai para a festa do chá? Todos estão se aprontando!
-Ocupado. - Respondi lhe dando um breve sorriso, contudo, sem tirar meus olhos da saia rasgada de Mirana. -Você não vai?
-Hum. - A ratinha se sentou sobre a dobra do meu braço, aproveitando que eu o movimentava para se balançar. - Sem você o chá não é a mesma coisa.
-E-entendo. - Fiz uma pausa. - Q-qual seria a graça para você, se não me acertasse com os seus cubos de açúcar? - Rimos juntos.
-Eu sei que você gosta de costurar! - Ela se levantou, subindo até o meu ombro. - Mas não perderia a hora do chá... Tenho certeza disso! Algo está errado e eu quero descobrir!
Torci os meus lábios. Mallymkun me conhecia muito bem. - A-ah, a-agora que eu n-não estou mais preso na hora do chá, e-eu posso tomá-lo quando quiser. - Tentei lhe dar uma desculpa, mas a Ratinha com certeza não se convenceu.
Afinal, o meu sotaque aparente entregava a minha mentira quase que por completo. - Eu quero o real motivo, se não eu te espeto! - Ameaçou, escorregando pelo meu braço e me mostrando sua inseparável agulha.
-Pois bem. - Deixei de costurar por um momento. Os olhos da Ratinha saltitaram com a minha atitude, já que eram raras as ocasiões em que nossas conversas tomavam um rumo mais sério, afinal, normalmente nossos diálogos não se passavam de maluquices. - O motivo... - Suspirei. - É a Alice.
-Lá vem você falar dessa grande traidora, atrapalhada! - Bradou.
-S-só não estou muito muitaz hoje. - Admiti. - Para vê-la tomando chá, alegremente com o Valete... - Dei um sorriso para disfarçar.
-Não posso acreditar que ainda gosta dela!
-P-por favor, Mally. Fale mais baixo. - Olhei para trás. - A p-porta está aberta. - Sussurrei.
-Ela não tem forças nem mesmo para levantar uma espada! - Cruzou seus braços. - Odeio o jeito como a admira!
-Hum. - Voltei a costurar. - Sabe, às vezes eu odeio também...
-Ela é uma menina burra! Como dizia Absolem!
-Mallymkun... - A repreendi.
-O que foi?! Eu estou falando a verdade! - Gritou. - Sou infinitamente mais corajosa do que ela, até me ofereci para matar o Jaguadarte! - Levantou seu alfinete. - E o que ela fez?! Saiu correndo! M-mas quem é que viaja no seu chapéu quando toma o suco minimizador, afinal?! ela, é claro!
Respirei fundo. - N-não tenho tempo para os seus ciúmes, Mally. Tenho que voltar ao trabalho. - A ratinha espetou a minha mão em seguida. - Sabe... - Enrolei a língua, um pouco irritado. - N-não foi uma boa ideia lhe dar esse alfinete!
-Diga-me aonde Alice está que eu a espeto também! - Exclamou enquanto manuseava habilidosamente sua arma.
-Você? - Fiz uma careta, espremendo minha risada.
Mallynkum aquietou-se. - Do quê está rindo? Seu louco envenenado por mercúrio?! - Se preparava para me alfinetar novamente. -Hey, me solta! - Se contorcia enquanto eu a segurava, ela roeu levemente o meu dedo mas isso não me fez largá-la.
Eu a coloquei em cima do meu chapéu. - N-nós já conversamos sobre isso. - Me enrolei ao falar, não queria entrar no assunto, mas o seu estresse quanto ao que eu lhe disse não me dava escolhas. - Eu gosto de você. - Sorri. - Somos amigos. Eu e você seremos amigos, sempre. N-não é preciso sentir ciúmes da Alice!
Pude ver pelo reflexo da minha máquina de costura que Mally cruzou os seus braços, abaixou a cabeça, escondendo sua expressão emburrada. -M-mas... - Gargalhei. - Fico lisonjeado com a sua dor de cotovelo!
-Cale a boca! - Saltou do meu chapéu, caindo ao lado da minha máquina. - P-por que eu teria ciúmes de você?!
-E-eu não sei dizer, d-deve haver um motivo oculto aqui dentro. - Mirei meu dedo em seu coração. - M-mas em todo o caso, e-eu agrade--- Desviei a minha mão. - Uhhh, foi por pouco! - Ri, levemente surpreso. - V-você quase espetou a minha veia, Mally. N-não faça mais isso. - Sorri. - Danadinha.
-Mudei de ideia! - Protestou, irritada. - Eu vou para a festa do chá, aproveito e digo umas verdades para aquela traidora desprovida de coragem! - A roedora pulou os meus dois braços, enquanto guardava a sua agulha nas costas.
Me levantei, sabendo que Mallymkun estava pilhada o bastante para cumprir com o que acabou de dizer. - Se eu for... - Eu a olhei, ela virou-se para mim. -Você promete se comportar?
-Hum. - Ficou em silêncio. Pensativa. - Se me deixar viajar no seu chapéu. - Levantou sua calda enquanto esboçava um sorrisinho.
Retribui. - Ora, m-mas isso é indispensável! - Mally levantou seus braços e eu a peguei, colocando em cima da minha cartola. Nada poderia deixá-la mais feliz.
Depois de passar alguns dias sem estar presente na festa do chá, eu já não sentia tanta vontade de estar reunido com todos. Ao que parece, minha tristeza em ver que a Rainha estava morrendo me afetava por completo. Seis da tarde com certeza era a hora mais especial de todo o meu dia, mas com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, a hora mais aguardada do meu dia se transformou em meros sessentas minutos e a bebida mais deliciosa do Mundo Subterrâneo se tornou algo indiferente para mim.
Eu simplesmente não podia deixar os problemas que envolviam a Rainha, o Oráculo e a Alice de lado. - Haja naturalmente. - Mallymkun aconselhou enquanto se debruçava na borda do meu chapéu.
A minha loucura interior me dizia que eu deveria trocar o ''naturalmente'' pelo ''normalmente''.
E foi o que eu decidi fazer. Mally e eu chegamos a mesa, e a primeira coisa que precisei fazer foi desviar de uma xícara que vinha voando em minha direção. - Estão atrasados! - A Lebre se exaltou, ela e Dormidonga riram em seguida. Continuei em silêncio, me esforçando para agir como alguém normal.
-Mallymkun e Chapeleiro! - Alice sorriu. - Que alegria vê-los aqui!
O gênio forte da Ratinha não lhe permitiu que respondesse, pelo contrário, ela pulou do meu chapéu, olhando para Alice com seus olhos cerrados. Dei um breve sorriso, e me sentei.
Todos estavam reunidos, como nunca antes: McTwisp finalmente voltou para o chá, os Twedlees brigavam entre si, a Lebre de Março desorganizava a mesa ao se confundir com os bules. Stayne sentava ao lado da Alice, ele não usava sua armadura habitual, estava vestido com um terno preto e uma blusa social branca por baixo, Alice lhe oferecia um pouco de chá e eu não deixava de notar o quanto ela estava sendo carinhosa com o Valete.
Não se via Cheshire em lugar nenhum, mas eu o conhecia bem e sabia que aquele felino fofoqueiro estava entre nós.
Sentei na minha poltrona de sempre. Ajeitei cuidadosamente os livros empilhados para que Mallymkun sentasse ao meu lado. A pequena roedora não estava satisfeita em ver que os meus olhos estavam focados na linda visão da Alice, na minha frente: Ela usava os seus cabelos soltos, um vestido cor de creme sem muitos detalhes, era simples e ainda sim, Alice continuava linda.
-Quer uma broa? - Stayne me acordou dos pensamentos ao oferecer o doce para Alice, ela sorriu e ele levou a broa até os lábios da moça, em seguida os limpou com um pequeno guardanapo de pano.
Não tive tempo em esboçar reação nenhuma ao ver aquela cena. Afinal, Mally mostrou seu desprazer quanto a pouca atenção que recebia.
Fiz uma careta e olhei para o lado, após sentir algo penetrando a minha pele. Puxei a agulha que furou o meu dedo, e antes que eu pudesse repreendê-la, McTwisp me interrompeu. - Está tão quieto hoje, Tarrant.
Respirei fundo, toda atenção se focou em mim. Vi o sorriso de escárnio do Valete e prossegui. - P-pensei em agir com mais formalidade. - Peguei o bule das mãos da Lebre.
-Deve ser difícil para você. - O Valete resmungou enquanto levava o chá a boca.
-É. - Sorri, mas secretamente cerrava meus punhos em baixo da mesa. Fazendo minha veia saltar. - Principalmente quando se é preciso aturar certas pessoas, que nem ao menos deveriam estar aqui.
-Stayne ajudou a rainha. - Alice se intrometeu. - Acho que ele merece participar do chá como qualquer um. - Mallynkum. - Esticou seus braços. - Pode me passar essa torta?
-Será um prazer! - Ela arremessou o doce, mas Alice conseguiu ser mais rápida e se esquivar. Seria um desgosto tremendo se o seu vestido e seu lindo rosto se sujassem.
O Cavaleiro de Copas olhava perplexo para o seu terno, agora totalmente sujo de bolo. Alice levou a mão a boca, engolindo sua risada quanto ao o que aconteceu.
Apontei o meu dedo, deixando de lado toda e qualquer formalidade que tentei possuir. Contorci a minha barriga, enquanto minha risada se tornava mais alta e contagiosa. A Lebre e a Ratinha foram os primeiros a se juntar a mim, em seguida os dois irmãos e até mesmo McTwisp não pode se aguentar. - M-Mal-ly, vo-cê é d-emais! - Dizia entre risos, sentindo meus olhos lagrimarem e a minha loucura chegar ao ápice. - N-não está mais t-tão elegante, af-inal! E-ra melhor ter v-indo de armad-ura para se prote-ger! - Ele olhava perplexo para a sua roupa, ignorando meus comentários.
-Tarrant, já chega. Por favor. - McTwisp pediu. A Lebre e a Dormidonga ainda riam. Tampei os meus lábios, pude ver quando Alice suspirou e pegou um pouco mais de chá.
Apesar do meu silêncio, era possível ver que os meus ombros balançavam freneticamente e eu ainda não tinha parado de rir. A loira me olhou, mostrando-me um sorrisinho. Saber que Alice amava minha loucura só me deixou ainda mais feliz.
-Certamente, isso não é problema! - O Valete anunciou.
Minha crise de riso cessou assim que ele pegou nas mãos de Alice, ela soltou o bule que segurava. - Faria a gentileza de limpar para mim?
-Oh. - Suas maçãs do rosto coraram. Ela me lançou um breve olhar, mas graças ao meu chapéu ela não percebeu o quanto a minha testa estava enrugada. - Claro. - Pegou o primeiro guardanapo de pano que encontrou na mesa, esfregando sutilmente contra o peito de Stayne.
Meu chá passou a esfriar dentro da xícara, e eu não me importava em bebê-lo. Nada ali era tão incomodo para mim quanto presenciar tal cena. - O chá de hortelã acabou? - Perguntou um dos irmãos Twedlees, com certeza direcionou a pergunta para mim.
-... - Meus olhos perderam o brilho. Eu ainda me torturava notando os movimentos delicados das mãos de Alice e o seu sorriso meigo para alguém que ajudou a destruir toda a minha família. Minha loucura me ajudava a superar o que houve no passado. Mas o meu coração gemia de agonia vendo o quanto ela demonstrava seu cuidado.
Eu não conseguia entender direito que estava havendo com o meu interior. Uma força maior do que a razão me impulsionava para subir na mesa e acertar o Valete com um chute certeiro na cabeça, tão certeiro a ponto de quebrar o seu pescoço. - Chapeleiro. - Dormidonga se posicionou na minha frente. Porém, ela não recebia minha atenção. - Hum. - Percebeu que os meus olhos estavam fixados na moça do outro mundo. - Ainda quer esse pedaço de bolo? - Perguntou para McTwisp e antes mesmo do Coelho lhe responder, ela saltou sobre a colher, usando a mesma como uma espécie de carapuça.
E dessa vez, com o arremesso preciso e certeiro. Mallynkum acertou o bolo no vestido da Alice. Ela parou de limpar o Valete ao notar que havia se sujado. - Qual é o seu problema?! - Kingsley irritou-se.
-O problema de todos nós é unicamente você! - Gritou a camundongo, mostrando seu alfinete como forma de ameaça e assim conseguindo finalmente a minha atenção e a de todos: Eu a olhei perplexo, sem acreditar no nível de ciúmes da Ratinha.
A tristeza de Alice me afetava, ela olhava para as suas vestimentas, provavelmente se perguntando como limparia a sua roupa.
Me levantei, não podia perder tempo!
Puxei o meu terno enquanto me aproximava da Alice. - Não se preocupe! - Stayne também puxou o seu terno, ele estava ao lado de Kingsley e prontamente se levantou, parando por trás da mesma. - Fique com o meu terno por enquanto. - Sorriu.
Ela retribuiu o sorriso, virando o seu rosto por cima do ombro para encará-lo. - Obrigada, Valete. É muito gentil... - Ele a calou após juntar os seus lábios. Alice fechou os olhos, sentindo aquele toque e se afastou assustada em seguida.
Olhei para o chão. Eu podia jurar que ela limpou os lábios com uma certa repulsa, porém, eu não tinha prestado a atenção e isso não fazia a menor diferença para mim.
Passei por todos e deixei a mesa de chá.
[...]
-Agora o seu vestido está impecável! - Sorri, após ajeitar a saia de Mirana.
Mas o meu sorriso não durou muito tempo, não importava o quanto eu tentava me distrair com costuras ou chapéus, que os meus pensamentos sempre terminavam na Alice.
- Majestade... - Peguei em sua mão. - Precisa acordar logo. - Não haverá nenhuma Rainha mais bondosa do que você. - Abaixei meus ombros. Estava cansado de ficar agachado e decidi me sentar de vez. - Não tive um bom dia. - Torci meus lábios, prestando a atenção em todo o seu rosto: Ele parecia cada vez mais pálido, e seus olhos tomavam mais profundidade com o passar das horas.
Eu estava conversando com alguém que estava há um passo da morte. Pensando bem, ninguém mais passava tanto tempo ali do que eu.
Eu estava louco, afinal.
O som da maçaneta se abrindo me fez olhar diretamente para a porta. Ouvi algumas batidas em seguida. - Q-quem é? - Perguntei um pouco atordoado.
Não obtive respostas, porém, a maçaneta ainda se movimentava para todos os lados e a madeira da porta continuava a ser agredida. - … - Me levantei, hesitante. Eu queria mesmo passar o restante da noite conversando com Mirana, apesar de conversar praticamente sozinho. As batidas eram fracas, e eu não tinha a menor ideia de quem estava do outro lado. - Mally? - Sussurrei me aproximando da porta, só mesmo a Dormidonga estaria me procurando.
Destranquei a porta. - Oi. - Alice me deu um sorriso um pouco constrangida. - Imaginei que estivesse aqui.
-O-oi. - Respirei fundo. - Posso ajudar?
-É... - Ela entrou assim que lhe dei mais espaço. -Como a Rainha está? - Perguntou aproximando-se da sua cama.
Estranhei a sua atitude, faz muitos dias que Alice não perguntava sobre Mirana. - S-sem reação.
-E você? - Me olhou. Estava ansiosa demais para receber uma resposta, porém, me interrompeu antes mesmo de ouvir qualquer palavra. - Encontrei o Cheshire no corredor, ele acabou de me dizer que você está doente.
-Chessur... - Fechei meus punhos e pronunciei seu nome com um certo tom oculto de aversão.
- E como eu prometi que cuidaria de você, vim vê-lo. - Ela concluiu. Me encarava com seus olhos redondos. Olhos que simplesmente me fascinavam.
-A-a-hh-h... - Minhas palavras falhavam. Escondi meu nervosismo com um sorriso insano. - P-pedi para aquele f-foqueiro não c-comentar nada com você. - Balancei a minha cabeça, enquanto ria. - N-não queria alarmá-la.
-Eu entendo. - Ela aproximou, tocando no meu rosto com delicadeza. Fiquei em silêncio, admirando-a secretamente.
Alice parecia mesmo ter acreditado naquele absurdo. E eu não conseguia entender como aquela ideia absurda do Cheshire iria funcionar. - O que eu devo fazer por você? Posso te preparar uma bebida quente, se quiser.
Meus dedos se movimentavam e minhas mãos balançavam levemente no ar. Ela sorriu para mim, enquanto percebia minha reação estranha.
-S-s-seria... Muito bom. - Respondi finalmente, coloquei minhas mãos sobre as dela e a fiz soltar o meu rosto. -E-eu... - Sorri. - E-eu vou para o meu quarto.
-Não seria melhor no meu? - Estranhei a sua pergunta. - O seu quarto é tão frio, você pode piorar!
Me dei conta de que estava entrando naquele joguinho que Cheshire me propôs. E percebi que seria loucura, até mesmo para mim.
-A-Alice... - Espremi meus lábios e fechei os meus olhos por alguns segundos. Eu tinha certeza que ela continuava parada, esperando minha conclusão. - S-sabe... E-eu acho que não há necessidade... E-eu posso me cuidar sozinho. - Ri. - A-aliás... - Ela continuou em silêncio, um pouco entristecida. - Preciso ficar aqui, tomando conta da Rainha.
-Não! - Alice me puxou. - Já cuidou demais da Rainha!
Ela me tirou do pequeno cubículo em que fiquei confinado por dias. Alice ainda segurava o meu braço quando apertou seus passos, praticamente voando pelos corredores. Subiu as escadas depressa, todos os cômodos tinham suas portas fechadas, com certeza apenas nós dois estávamos acordados. Reparei no relógio de parede que era um pouco mais de uma hora da madrugada. - Por que ainda não foi dormir? - Indaguei, expressando minha seriedade.
-... - Ela abriu a porta do seu quarto e me empurrou levemente. - E-eu vou lhe preparar um chá!
Me deixou ali, sem nem mesmo ouvir a minha resposta. - Chá. - Sussurrei, umedecendo os meus lábios só de pensar naquela bebida quente e deliciosa.
Acendi a luz do quarto. Olhei em volta, encontrando o seu vestido sujo sobre a escrivaninha, juntamente com o terno de Stayne. Me aproximei das roupas, senti o tecido do paletó. - Hum. - Devo admitir que era um bom tecido, ótimo tecido, quase tão bom quanto o meu. -M-mas é um terno muito simples. - Enrolei a língua, ainda analisando a peça. Não havia nenhum detalhe para torná-la única.
Peguei a minha tesoura, decidido a dar uma incrementada.
Picotei a parte dos ombros, furei os bolsos internos e arranquei os botões de ouro perto da manga. Olhei para os lados, guardando a tesoura e os botões discretamente no bolso. Não era mais possível voltar atrás: Eu tinha acabado de destruir um terno caro, com certeza feito a mão e com um tecido nobre. Foi uma atitude muito anti-profissional da minha parte.
Um sorriso diabólico se formou nos meus lábios.
O Valete merecia esse presente.
[...]
Eu não tinha muito o que fazer ali, a não ser esperar por um bom chá. Me sentei na sua cama, sentindo a maciez do seu colchão, olhei para a janela, um pouco entediado.
Até que os meus olhos se focaram na sua escrivaninha. -Hum... Corvos... - Fechei meus olhos, afastando a maldita charada dos meus pensamentos. - Chá... - Bati minha cabeça na parede. - P-preciso de chá... - Encarei o teto e me virei para a mesinha ao lado da cama novamente. Era inevitável não pensar numa resposta.
Me levantei, notando que em cima da escrivaninha havia um pequeno papel e algo que me deixou realmente muito surpreso: Muitos e muitos tubos de ensaios, a maioria vazios...
Um deles estava mal fechado, fazendo com que a poção pingasse no piso do quarto.
Peguei o papel, juntamente com a poção. Cerrei meus olhos depois de ter certeza que era a poção do sono, assim como todas as outras.
A deixei no mesmo lugar ao ver que a folha continha algo muito mais interessante. - ''Um sinal de luto pelo amor perdido.'' Hum... P-por que ela anotou isso? - Me perguntava depois de ler.
-Chapeleiro! - Alice gritou do outro lado.
Me assustei. Deixando algumas poções caírem. - Abre a porta aqui! Estou com as mãos ocupadas!
-... - Catei as poções rapidamente. E as joguei dentro da única gaveta da escrivaninha sem muito cuidado. Corri até a porta e abri.
Ela entrou, enquanto carregava uma bandeja metálica com dificuldade. Peguei de suas mãos, Alice sorriu em agradecimento e fechou a porta. Tinha duas xícaras cheias, um bule florido de porcelana e alguns biscoitos com gotas de chocolate. - E-eu adorei! - Alice abriu mais o seu sorriso ao ver meu entusiasmo.
-Sente-se. - Apontou para a cama. - Eu vou te servir.
-Uhh... - Obedeci. A olhando. - A-assim eu fico mal acostumado.
Kingsley riu. - Só estou cumprindo com a minha promessa de cuidar de você. - Disse me entregando uma das xícaras e pegando a outra, envolvendo-a com as duas mãos e apreciando o aroma do chá. Sentou-se ao meu lado, cruzando lentamente suas pernas.
Ela usava um pijama de seda, rosa claro, suas mangas tinham um tecido diferente e fofo ao toque, causando um volume nos seus pulsos. Deixei de admirá-la, eu não resistia a essência deliciosa que vinha da minha xícara. Assoprei levemente e bebi.
Juntei minhas sobrancelhas e levei os dedos aos lábios. - O que colocou no chá?
-Oh. - Ela afastou sua xícara para me responder. - Um pouco de remédio.
-Remédio? - Repeti olhando para a minha xícara. Forcei um sorriso, disfarçando a tontura que senti. - A-acho que não era necessário.
-Como não? Está doente. V-você mesmo me disse. - Retrucou confusa.
Hesitei um pouco para levar a bebida aos lábios, eu precisava manter a mentira mal contada que Cheshire inventou. - A-acho que não é mais possível eu me intoxicar com nada. - Sacudi meus ombros e tomei mais alguns goles, afinal, o gosto continuava esplêndido.
-Hum... - A loira esticou seu pescoço para olhar a minha xícara. - Acha que coloquei muito remédio? P-por que... E-eu nunca fiz esse tipo de coisa.
Tirei o meu chapéu depois movimentei minha cabeça para cima e para baixo. - D-desculpe. - Pediu a moça, levemente constrangida.
-E-e-eu... - Apontei para a janela. - Estou com calor. V-vou abrir...
-Não! - Exclamou, abraçando seus joelhos após deixar a xícara na bandeja. - E-estou com frio.
Fiquei em silêncio enquanto sentia os meus cabelos grudando na testa. O remédio fazia um efeito rápido. - B-boas lonjuras, A-Alice. - Me levantei. - Acho que devo deixá-la dormir. - Ela me olhava em silêncio, peguei o meu chapéu.
-Chapeleiro, espere! - Puxou o meu braço de novo.
-Tarrant... É Tarrant, por favor. - Sorri. - Tarrant Hightopp... - Suspirei.
Alice olhava inquieta para os lados, ainda segurava firmemente o meu braço, como se tivesse medo de ficar só. - O que houve?
-Não consigo dormir. E-estou... Tendo pesadelos... - Sussurrou. - N-não quero ficar sozinha.
Aproximei nossos rostos. - V-você não está sozinha. - Murmurei, perto do seu ouvido. Pude ver que ela sorriu com as minhas palavras. Me afastei. - A-aquela bola de pelos flutuante com certeza está nos observando! - Ri. - Cheshire será uma boa companhia!
-Não, Tarrant. Sinto-me... - Hesitava. - Segura com você.
Ela me abraçou, eu não esperava tal atitude e isso só me fez sentir mais calor. -A-A-Alice, solte-me. - Pedi nervoso, no entanto, ela juntou ainda mais os nossos corpos. Engoli em seco. - T-tudo bem! - Sorri, e ao ceder, ela finalmente me soltou. - A-apenas deixe a janela aberta. - Pedi. - E-estou com muito calor. - Fiz uma careta, Alice assentiu, abrindo a janela em seguida.
Tirei o meu paletó, deixando cuidadosamente sobre a cabeceira da cama. - Vamos dormir juntos?
Sua pergunta quase me fez engasgar. - O quê? - Sorri. Torcendo para que eu tenha escutado algo errado.
-Vamos dormir juntos. - Ela afirmou e o que mais me constrangia era o seu tom de voz, puramente inocente. Afrouxei minha gravata borboleta, meu silêncio a fez repensar no que disse. - Não tem nada demais. - Nos olhamos. - Não mesmo! E... - Juntou as sobrancelhas. - Você está doente! Se sentir alguma coisa, estarei aqui para cuidar de você!
-É. - Olhei para o chão. - Eu espero não sentir nada...
-Como disse?
Sorri. -Bom, é melhor se deitar, Alice! - Puxei a coberta. Ela encarou a sua mesinha de madeira.
-Espere... - Abriu a gaveta e pegou uma poção.
-Poção do sono não espanta pesadelos.
Alice olhou duvidosa para o líquido roxo e brilhante, mas algo me dizia que ela tinha conhecimento sobre esse detalhe. Me sentei no seu colchão, enquanto desamarrava meu sapato de couro marrom. - Na verdade. - Ela começou, ainda com o tubo em mãos. - Eu não sei quase nada sobre essa poção. - Apertou o recipiente ao fechar seus olhos e suspirar.
Ela me encarou. - Só não consigo mais dormir sem ela. - Continuei em silêncio. - Os sonhos que ela me proporciona são simplesmente maravilhosos! - Fez uma pausa. Sua empolgação se foi. - Eram... Eram maravilhosos.
Torcia para que Alice não me pedisse alguma opinião quanto ao que me disse, afinal, eu não sabia o que dizer: Meu coração pulsava com força e eu não tinha certeza se era de alegria ou de tristeza. - Bom... - Me levantei após retirar meus sapatos. - É melhor que durma. - Puxei a sua coberta.
Ela torceu seus lábios. - Tudo bem. - Suspirou profundamente e ingeriu a bebida em apenas um gole. - Espero ter bons sonhos... - Sussurrou para si mesma, mas pude ouvir muito bem.
Se infiltrou dentro da coberta, sorria para mim enquanto eu lhe jogava o edredom. - O que está fazendo? - Perguntou ao me ver sentado na beira do colchão. - Não vai se deitar?
-O-oh... - Tentei ser o menos impróprio possível. - É uma cama de solteiro, A-Alice.
A loira puxou o meu rosto depois de se debruçar, ignorando totalmente o meu alerta e me fazendo deitar a cabeça entre os seus peitos. Amaciava os meus cachos com cuidado, ao mesmo tempo em que me puxava aos poucos para a cama. Cedi ao seu desejo de dormirmos juntos, eu estava exausto e não poderia abrir mão de um colchão confortável. Fui subindo no colchão e Alice por fim soltou o meu rosto. Apoiei meus dois braços entre o seu travesseiro, suas mãos apertavam a minha nuca e ela me olhava sorrindo sem perceber que suas maçãs do rosto coravam sutilmente.
Eu agradecia mentalmente pelo edredom grosso que separavam nossos corpos. As batidas do seu coração me acalmavam, mas certamente deitar meu rosto entre seus seios não me deixaria mais sã.
Meus cabelos se moveram com a sua respiração profunda. Ela se remexia, erguendo levemente o seu corpo. - U-uh... - Precisei me afastar. - Alice, você vai dormir ou não?
-D-desculpe... - Fez uma pausa. - Canta para mim. Q-quero muito ter bons sonhos... - Ela passou seus braços envolta das minhas costas.
-Feche os olhos. - Pedi afofando os seus cabelos balançantes. Ela obedeceu em silêncio, ainda me abraçava quando comecei a cantarolar. - Pisca, pisca... Morceguinho, onde vais... N-nem adivinho. - Levantei levemente o meu rosto e pude ver que ela esboçava um pequeno sorriso. Voltei a repetir o único verso da música ao me acomodar entre seus seios.
Até que Kingsley finalmente pegou no sono.
Ergui minha cabeça com cuidado para que ela não despertasse. Notei sua expressão facial, as sobrancelhas juntas e os seus lábios entre abertos, ela espremia os seus olhos, mesmo fechados. Toquei sutilmente em uma das suas bochechas. -N-não... - Murmurou enquanto afastava o seu rosto.
Fiz uma careta, tentando imaginar o que se passava dentro da sua mente tão fantasiosa. - D-deve estar tendo um sonho louco... - Sussurrei com um pequeno sorriso.
Ela torcia o seu nariz e remexia o seu corpo, me deixando em uma posição desconfortável. - T-Tarr-ant... - Disse baixinho.
Sentei-me no colchão e toquei no seu rosto. - A-Alice... Acorde. - Não hesitei em balançar os seus ombros com violência. - Alice! - Ainda se contorcia em desespero, uma lágrima grossa desceu de seus olhos e aquilo foi o suficiente para mexer com a minha muiteza. - M-meu amor... - Meus olhos se afogaram em meio ao meu pranto. Eu a soltei, pois tinha certeza que nada que eu dissesse a despertaria.
Ela me chamava, afinal!
Olhei para o tubo de tampa dourada, em cima de sua escrivaninha de madeira, em dúvida se deveria invadir o seu sonho.
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