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História Atrás da Aurora - Carcará


Escrita por: miabitt

Notas do Autor


Bonjour! 🦋

Ana Beatriz não sabe medir os próprios atos para manter o casamento intacto, e Aloísio vai ter que aguentar isso. Ela falou a verdade - que convém a ela.

Voa alto, carcará!

Boa leitura!

- Mia Bitencourt

Capítulo 42 - Carcará


Fanfic / Fanfiction Atrás da Aurora - Carcará

Carcará vai fazer sua caçada. Carcará come inté cobra queimada. Mas quando chega o tempo da invernada, no sertão não tem mais roça queimada, carcará mesmo assim não passa fome. Os burrego que nasce na baixada: Carcará pega, mata e come. Carcará não vai morrer de fome. Carcará, mais coragem do que homem. Carcará pega, mata e come. – Carcará, na voz de Maria Bethânia.

 

Belo Horizonte, Minas Gerais

Janeiro, 17,  2024

Carcará – dor da fome. Alimentava o espírito com o cair alheio, estava cansada de sucumbir à fome. Impaciente. Apressada. Emocionalmente racional. Teve tantas chances de usar certos saberes e mesmo assim encontrou outras alternativas, contudo, fora cega pela dor de um passado que se acabava diante dela.

Findou.

O mal-agouro fez findar.

Passadas treze horas, Verônica percebeu Heloísa se aproximar. Henrique estava sentado na poltrona, esperava a esposa, que chegou com o café passado. Soltou a bandeja na mesa de centro, foi quando o corpo dela enfraqueceu. A filha e o marido ouviram o exato segundo que o fio de contas da senhora estourou, caindo cada uma das miçangas ao chão, que se espalharam ligeiras por entre os vincos. A matriarca caiu ajoelhada, encarando o mais absoluto nada. Quebrou-se o elo, estava feito. Até o olhar mudou, ficou opaco, um breu.

Heloísa perdeu vida.

Mas, fez findar.

Sentiu as mãos do marido a tocarem o rosto e o mundo dela parecia estar em outra velocidade, onde não se ouvia ou agia. Onde tudo se fez em vultos, até os rostos não se distinguiam. Ficou tudo escuro e ela ouviu o pássaro a rondando. O cheiro que ele buscava estava nela. Vinha dela. Impregnado na carne.

- Maria?! – Henrique a amparava. – Heloísa Maria!

Sentiu o cheiro putrefato em si mesma. Apesar disso, não se arrependeu. Se tinha uma coisa que Heloísa não estava, era arrependida.

Morena segurou a firma branca do fio de contas arrebentado e engoliu seco. Ficou segundos longos a olhando, até que voltou a encarar Maria – que não se moveu mais, calando-se. A dor cortante no pescoço a ceifou as cordas vocais e por um instante, achou ter morrido. Morrido junto dele, pelas mãos de um carcará. Pelas mãos que jogaram pedras na filha dela, pelas mãos de quem a levou a boa parte do limite. Foi uma troca pelos anos de maus-tratos. Era o mínimo, tanto tempo fazendo doer, agora findara o suplício de quem tanto pisou.

Perceberam o bater dos passos de Madalena, que desceu as escadas apressada, ainda que mancasse. Madá se fez tão cansada, de respiração pesada, que até parecia mais velha que a avó. Mais sábia que ela. Até beirava outra pessoa.

- Vai pro quarto, Madalena! – Mandou Verônica.

- Heloísa Maria?! – A menina a segurou pelos ombros, empurrando Henrique. – Heloísa Maria! Se erga!

Os lábios de Heloísa já estavam arroxeados e tudo se fazia tão depressa que só quem compreendeu aquele amortecimento fora a mais nova. Só quem teve a pressa de trazer Heloísa de volta fora a neta que herdou dela mãos sagradas e a capacidade de entregar a si dando voz a outrem. Cantou alto ao pé do ouvido da senhora, que escorou o rosto no ombro dela, Madalena ditou alto as palavras iorubanas que a sopraram na cabeça, só então ouviram o respirar doloroso de Maria. O ar veio feito navalhas, ferida de morte, se refez em vida.

O cheiro ainda impregnava nela, os ruídos do pássaro vinham em zunidos, porém estava viva. Maria voltou. Madalena – ou Angelina? – a trouxe de volta. Não se sabia até quando. Nem como.

- Lhe cortaram a língua, não foi? – Madalena irritou-se. – Grite maldade agora! Abra a boca e grite!

- Madalena! Não fala assim com sua avó, menina! – Verônica a olhou pasma.

- Buliu no que não devia, no que não lhe cabia. – A criança prosseguiu. – Enterrou as mãos em lodo. Quando lhe queimar, quando lhe subir a peste, não adianta chamar por ele. Vai a comer viva, aguente calada! – Heloísa não ousou contestar.

Por uma fração de segundo, a baiana quase sentiu o peso da mão na boca, quase sentiu o próprio sangue nos lábios, mas Verônica segurou o braço da filha antes que a batesse. Madalena sentiu a cabeça latejar e tentou tampar os olhos, sendo abraçada pela avó.

- Não brigue com a criança, Morena. – Falou rouca. – Não foi ela quem disse.

- O que foi que tu fez, Heloísa? – Henrique a questionou.

- O que tinha de ser feito. – Murmurou. – E isso só cabe a mim, a mais ninguém.

Desceu o olhar pelas mãos, lhe pareceram manchadas em rubro, ainda não sentia dor, porém a fraqueza ia e vinha. Fora um recado bem dado, um recado que fez a avó virar neta – muita coisa acontecia naquele instante, mas nada mais se ouvia, ou enxergava, até que voltasse a merecer, se é que voltasse a merecer algum dia.

...

Ana Beatriz ouviu o último suspirar de Anselmo Evaristo e o peso dele caiu sobre ela, derrubando ambos. Ela tentou empurrá-lo conforme a sufocava, até que em um solavanco, a advogada o virou, afastando-o. Conseguiu voltar a respirar mesmo que o peito batesse tão forte que a estava tirando o fôlego. Quase falhou. Quase. A esposa de Aloísio olhou as próprias mãos, o sangue nelas só a deu mais certeza do que havia feito. Desceu o olhar pela imagem do homem caído e encostou-se na mesa, dando um leve riso. Ela conseguiu. E pouco a importava o quanto pagaria por aquele ato, ela conseguiu. Gargalhava por saber que a sentença seria leve dada a satisfação de se ver livre de mais uma pedra no sapato. Tão sórdida ao ponto de rir, Ana tentou, ela tentou tanto, tentou muito, ser aquilo que esperavam dela, mas os anos a moldaram de maneira tão cruel que a levou a fazer o que fez. Ordenar algo era diferente de fazer e mesmo que Aloísio não achasse que a esposa seria capaz de ir além, ela foi.

Doutor Requião estava errado, Ana também conseguia resolver as próprias pendências com frieza – contudo, ele não precisava saber disso.

Puxou o fôlego, tinha de dar continuidade a aquele ato, precisava mostrar porque todos a respeitavam, porque ninguém ousava tocá-la. Cândida tinha razão, Beatriz era uma desgraçada, ficou tão claro agora. Poderia tentar, fugir, moldar a si, mas no fundo, bem no âmago, seguia a mesma desgraçada de sempre. Ele ainda estava quente. Percebeu conforme o tocou, não sentia o pulso de Anselmo e o sangue se espalhava cada vez mais pelo assoalho, o que já estava a enojando, contudo, ainda havia um resquício de calor. Pouco, mas existente. Nessas frações de segundo, precisou mudar a rota e não se desesperar. Por que há de ter desespero? Não era o momento. Desespero era para tolos e ela estava ali puramente por escolha. Sabia muito bem que ao final do dia estaria no mesmo cenário, independente da forma como ocorresse.

Beatriz sentiu o endurecer do sangue no rosto dela, secou na pele alva, sujou as mãos com aquele abutre e elas pareciam queimar. Sentia queimar. Esgueirou ambas por entre os cabelos embranquecidos e respirou fundo, tinha de resolver, tinha de fazer algo. Deus, ainda bem que ela feriu o outro punho anos antes, ou não teria força para descontar em Anselmo aquela traição. Bia sequer sabia como teve força, foi tão rápido, tão fulminante e certeiro, como quando conheceu Aloísio. Sorriu. Aquele homem a pertencia. Era dela, não da outra. E, depois de todo esse caos acabar – porque Aloísio faria qualquer coisa para que se acabasse o mais depressa possível –, eles voltariam ao que eram. Claro que voltariam. Ela faria voltar. O torturaria para voltar. Devolveria em uma moeda mais cara, o faria sentir a dor que ela sentiu quando o viu com outra. Pois, assim como Anselmo, Ana Beatriz Requião sabia que o ponto fraco do marido era ela.

Tremulou ao pegar o celular, tremulou ao achar o nome do marido na agenda, tremulou conforme ouvia chamar.

- Aloísio, me ajude, por favor! – Embargou a voz. – Por favor! Ai, Aloísio! Por favor, vida!

- Bia?! O que foi, Bia?! – A indagou nervoso. – Onde cê anda?!

- Ele me tocou, Aloísio! – Soluçou. – Ele me seguiu! Ai!

- Quem, Ana?! Onde cê tá?! – Desesperou ao ouvir o pranto dela. – Ana, o que aconteceu?!

- Anselmo, Anselmo me agarrou, ele veio atrás de mim! Ai, querido, eu preciso de ti! Me ajuda, Aloísio! – O enlouqueceu. – Ele está caído! Eu não sei o que fiz, Aloísio! Ele me agarrou!

Foi o bastante para que Requião desgovernasse completamente, pegando o rumo do ateliê onde a esposa estava. O peito dele batia tão frenético que se assemelhava ao dela. Eles eram um só, por isso ela o estava enganando de volta, ainda eram um só. Sempre seriam, Aloísio até poderia tentar ser de outra mulher, mas sempre seria o mesmo que Ana.

Ana Beatriz, assim que desligou a ligação, tirou o blazer que usava, rasgando a própria camisa de cetim. Pouco a importou deixar a lingerie exposta, pouco a importava quem a olharia daquela forma, piorar o que aconteceu era o caminho mais correto a seguir. Abriu o cinto de Evaristo, desabotoando cautelosa o botão da calça dele. A advogada subiu a saia que a delineava o corpo até o meio das coxas, permanecendo sentada no chão, pensava minuciosamente, era automático. Mordeu o próprio lábio com tanta força que tirou um filete de sangue, franzindo o cenho pelo gosto de ferro a língua. Esgueirou a mão pela mesa, acabou encontrando um compasso, prendeu o ar quando o arrastou pela parte interna da coxa, pouco abaixo da virilha, deixando mais uma vez o próprio sangue escorrer entre as pernas. Os saltos foram tirados e ela se preparou para que viessem até ela sabendo muito bem cada palavra que diria e a forma de agir. Puxou da memória os relatos que já ouviu, a experiência como advogada a fez traçar o próprio álibi eximiamente. Coitada, Anselmo era um ser vil. Todos sabiam disso. Assim como sabiam que a Ana de Aloísio era tentadora.

Ela tinha de ser impecável e para ser impecável, permaneceria na desordem do que ocorreu e mais ainda do que inventou.

- Beatriz! – Aloísio a encontrou.

O doutor a tocava o rosto exasperado, implorando que ela o olhasse, que falasse com ele. Ela, por sua vez, forjou uma dispersão, forjou a dor, forjou a vergonha. E, além de Anselmo, ela matou Aloísio também. Matou o ego daquele homem. No escorrer de uma única lágrima da esposa, Requião quis derrubar aquele lugar, quis dar um fim em quem a tocou – mas esse gosto não o pertenceria porque ela não o daria essa vitória. Aloísio perdeu para Ana, que jogava silenciosamente com ele. O advogado veio acompanhado de Júlio e Érico, que chamaram a polícia no caminho. Logo a senhora se viu envolta por pessoas, ela só precisava fingir, como já vinha fazendo.

- Ana, olha pra mim. – Segurou o rosto dela. – Ele te agarrou até que ponto?! – Ana desceu o olhar, ele fez o mesmo, tocando a coxa. – Esse sangue é dele? – A viu negar.

- É meu. Me leva pra casa. – O abraçou em lágrimas, trazendo as pernas junto ao corpo.

Aloísio tirou o paletó que usava, cobrindo a esposa e impedindo que ficasse exposta na frente de todos.

- Mãe, o que ele a fez? – Érico a tocou o rosto, Ana esquivou fingindo temor. – Mãe, olha pra mim, sou eu, o Érico. Vamos ligar para uma ambulância, está machucada...

- Acabou com a minha vida. – Disse assombrada, percebendo o olhar de Érico marejar. – Ele... Me sujou. Leva a mamãe pra casa, filho.

Aloísio descontou a fúria em um murro na mesa de madeira, ele compreendeu o que Anselmo a fez e tudo escureceu em raiva. O enterrou em remorso – falhou com Ana. Aloísio Requião falhou com a sua Bia. E ela, conhecendo-o como conhecia, soube que o acertou em cheio, o que achou merecido. Talvez a única fagulha de arrependimento que a fez sentir um arrepio pelo espinhaço surgiu conforme avistou Júlio, que olhava Anselmo e se fez estagnado. O rapaz sentiu a repulsa daquele cenário. Os falatórios das autoridades aumentavam e todos tomaram conhecimento de que o pai de Júlio havia feito uma atrocidade tamanha com a avó dele. E ele se culpou. Tentou não o fazer, mas se culpou sim. Caso ele não tivesse nascido, nada disso teria acontecido. A avó dele não sofreria tanto quanto a mãe, Evaristo não teria manchado ambas. Júlio quis o matar, assim como Érico pensou em fazer, mas não poderiam porque Ana já o tinha feito.

Beatriz tirou a chance de três homens da família dela sentirem satisfação. Mesmo que negassem, que tentassem evitar, ela sabia que as três gerações ansiavam pelo dia que conseguiriam findar a existência de Evaristo, porém o mérito era todo dela. Infernalmente dela. Assim como a satisfação vinha sendo apenas dela também.

- Eu vou levá-la pro hospital. – Érico murmurou perdido.

- Devagar, por favor. – Ana sibilou ao ser levantada pelo marido e o filho. – Não me levem para hospital algum, todos vão saber... – Trouxe o desespero para si, gemeu levando a mão ao baixo ventre. – Aloísio, não permita que me torturem dessa forma! Foi um acidente! Me perdoa, querido, eu não consegui segurá-lo!

- Ninguém aqui vai tocar nela! – Aloísio esbravejou. – Ninguém! Resolvam comigo! Tirem esse abutre daqui e resolvam comigo!

- Segura em mim, vó. – Júlio a fez abraçá-lo pelo pescoço e a pegou no colo. – Vou tirar a senhora daqui. Cobre ela, pega um pano, qualquer coisa! Ninguém vai ver ela assim!

Um sobrenome abria portas, assim como também as fechava para que ninguém soubesse de atos que pareciam acidentais. Tudo se ajeita, tudo se reconstrói, você tem nome, faça por merecer. Estava claro como as írises de Ana o que ocorreu ali e ninguém queria um escândalo midiático envolvendo a família Requião e a família Carneiro-Evaristo. Foi um acidente.

A palavra de Ana Beatriz Requião era lei: foi um acidente.

...

Notícias ruins voavam depressa, sempre se faziam mais marcantes, severas. Heloísa estava sentada no sofá, abraçada ao marido, assimilando o que havia acontecido. Verônica olhava a mãe e sentia-se culpada, caso não tivesse mantido aquele segredo, não ceifaria a alegria da senhora. Estava assombrada por não ter dimensão do que ela fez, era a vez da matriarca esconder algo.

Todos os olhares se voltaram para a porta de entrada, confidenciando parte da penumbra que pairaria por toda a família.

O olhar de Heloísa encontrou o olhar de Ana, o estado visivelmente deplorável da sogra de Verônica só a deu mais certeza de que aquele martírio havia se findado. Ela chegou nos braços de Júlio, que a soltou a pedido da mesma, onde fora amparada por Aloísio. Olhares pasmos a encaravam, Heloísa entendia bem o que havia ocorrido, porém a pareceu pior do que o pensado.

- Dona Ana?! – Verônica arregalou os olhos. – O que aconteceu com ela?! – Se aproximou, olhando os homens que a acompanhavam. – Está toda machucada! – Encarava o sangue que a manchava a face. – O que lhe aconteceu?!

Verônica percebeu o sogro largar Ana, saindo de perto da esposa. Ele estava no próprio limite. Henrique também soltou Heloísa, levantando em um solavanco. O médico olhava Beatriz buscando entender o que havia acontecido, da mesma forma que a enteada. No olhar entristecido de Érico e Júlio, Verônica soube que fora grave, teve certeza conforme desceu os olhos pelas pernas da sogra, percebendo o sangue que secava na pele dela.

- Acabou, minha nora. – Beatriz encarou a baiana. – Anselmo nunca mais chegará perto da nossa família. – Verônica lacrimejou.

- O que ele lhe fez, Dona Ana? – Chegou mais perto.

- Na frente do meu filho... Eu não posso dizer. – Manteve a seriedade. – Mas, acabou. Evaristo está morto.

Morto – palavra que fez Verônica recuar alguns passos. A morena sentou em uma das poltronas, sentiu uma vertigem irritadiça, levando a mão ao rosto. Anselmo Evaristo estava morto, precisou de um instante para refletir aquilo, para refletir que acabou. Não sabia como ou porquê, mas acabou. A espera, o temor, a angústia, tudo acabou. E, mesmo que comemorar a morte de alguém fosse cruel aos olhos da baiana, ela deixou uma lágrima aliviada cair. Esqueceu o que a rodeava, desistiu de tentar entender, Anselmo estava morto, Ana Beatriz conseguiu. Ela jurou e o fez, deu a uma mulher a sua palavra e cumpriu, sabe-se lá como, mas cumpriu. Isso estagnou Verônica, o pai do filho dela morreu. Anselmo nunca arcaria com a responsabilidade, ele nunca a ajudaria, mas, também não a rejeitaria mais, não a magoaria mais. Foi dor e alívio, não saberia explicar.

Ao perceber o alívio da filha, Heloísa levantou, parando diante de Ana.

- Tu devia de ter ido a um hospital, mulher. – A olhou de cima a baixo. – Ele lhe bateu, foi?

- Preciso de alguém de confiança. – Beatriz murmurou. – A legista virá pessoalmente aqui, é uma amiga, mas... Eu vou acabar desistindo desse exame e arcando com as consequências. – Deixou as lágrimas voltarem. – Me ajude, Maria.

- Mãe, a senhora precisa aceitar esse exame. – Érico a olhava preocupado. – Temos que provar o ocorrido e a senhora está machucada, precisa de cuidados.

- Não, meu filho. Já basta a vergonha que estou sentindo. – Suspirou, evitava olhar Aloísio, estava deliciada pela confusão dele. – Só quero que acabe.

- Não podemos deixá-la aqui, se acalme e vamos pro hospital. – O filho insistiu. – Precisa ser examinada, mãe. Acatamos seu pedido de falar com Verônica, agora precisamos cuidá-la.

- Não! Por favor! – Ana cobriu o rosto com ambas as mãos. – Eu não vou aguentar mais alguém colocando as mãos em mim, filho!

- Não avexem ela. – Heloísa abraçou Ana, encarando os homens brava. – Aquiete que daqui ninguém lhe tira. Oxente! Se Ana não quer, ela não vai!  

- Preciso da sua ajuda. – Bia disse em lágrimas. – Estou muito envergonhada! – Soluçou. – Eu só queria sumir, meu deus do céu!

- Alguém tem que lhe olhar certinho, Ana. Eu não sou médica. – A baiana entristeceu. – Mas, eu fico com você, não se avexe. – Ana assentiu. – Henrique, dê uma olhada em Ana, por favor. – Heloísa pediu ao marido. – Venha, Ana, se escore em mim. – A segurou pela cintura. – Vou lhe levar pra deitar, não se avexe, ninguém vai lhe obrigar a nada. Tá sentindo muita dor?

- Eu a ajudo, mãe. – Érico se aproximou.

- Fique com sua esposa, ela precisa de ti, querido. – Esboçou um meio sorriso. – Maria sabe o que faz. Eu confio nela.

Aloísio percebeu Ana Beatriz seguir com Heloísa e Henrique, subindo as escadarias apressado. Por sua vez, Érico agachou diante de Verônica, olhando-a. A baiana acarinhou o rosto dele e nada disse, fora um baque ouvir da boca da sogra que todos os anseios haviam se findado. Parecia mentira. Subiu o olhar até Júlio, que a olhava de volta sem desviar. Os amores de Verônica Medrado estavam ali, por ela, com ela.

- Pode parecer horrível o que vou dizer a vocês dois, mas, eu estou tão aliviada! – Verônica desabafou. – O dia de hoje só me comprovou o quanto ele ainda era um peso nos meus ombros! – O rosto se inundou. – E agora... Não há peso algum! Não tem peso mais!

- Não há, mainha. – Júlio a beijou a testa. – E eu só tenho a agradecer a senhora por ter me feito o homem que sou e por ter me dado um bom pai. – Abaixou a cabeça. – Que graças aos dois, hoje eu não preciso chorar a morte de ninguém. Só não pensei que... Acabaria como acabou, ferindo mais pessoas que amo.

- Júlio, não se culpe. – A baiana o tocou o rosto. – Tô vendo em seu rosto a culpa, não se culpe. – Secou a lágrima do rapaz. – Acabou, meu filho. Aquele homem não lhe merecia, filho. Não merecia. Nós estamos bem agora, não estamos? Ele foi embora e não precisamos dele pra nada, Júlio.

- Não precisamos. – Ele sentiu a mãe abraçá-lo. – A senhora merece uma vida sem esse peso, mainha. Nunca mais ele toca na senhora. Nem em ninguém. Fica tranquila.

- Eu te amo. – Deixou um soluço escapar. – Ai, meu menino! Acabou! Finalmente, eu não aguentava mais!

A partida de Anselmo libertou a moça que existia em Verônica. Libertou a Morena. Saber que aquele homem não voltaria a assombrá-la os dias foi a virada de chave que faltava para viver sem medo. Sem tentar adivinhar o dia que ele voltaria para ceifar a felicidade dela, sem fugir da presença dele, sem temer o amanhã. Verônica Medrado também era uma Requião e isso a livrou de tentar uma vida inteira ser uma Evaristo, apesar do vazio do abandono a ter moldado os dias. O único elo que tinha com Evaristo era o filho que a abraçava cuidadoso, mas esse fora quebrado após uma morte inesperada. Agora, seriam apenas os dois por toda a vida, mãe e filho, a salvo das armadilhas de quem não valorizava aquele amor que movimentou Verônica desde o primeiro choro.

No andar de cima, Heloísa ajudava Ana a deitar, pedindo aos homens que permanecessem a esperando do lado de fora.

- Que foi que ele lhe fez, Ana? Onde lhe buliu? – Sentou de frente para ela, mas não obteve uma resposta. A baiana desceu os olhos pelas pernas alvas da mulher, o sangue a deixou encucada. – Não precisa me dizer, só diga se quer que eu pegue um paninho e lhe ajude a se limpar. – Beatriz sorriu contida. – Posso lhe colocar debaixo do chuveiro também. A gente dá um jeito, visse?

- Não precisa. – Segurou a mão da baiana. – Eu ainda não posso tirar as marcas.

- Ô, Ana, esse sangue é teu? – Viu a outra assentir. – Quer que eu lhe veja? Você se cortou, foi? Ó paí... Eu não sei nem o que dizer a você. Aquele homem a forçou? A gente não deixa homem nenhum te tocar mais, nem Aloísio, nem Henrique, nenhum! Chamo Jandira e cuidamos de você.

Heloísa não enxergou por conta a mentira de Ana, ela estava vendada. Nos olhos entristecidos da baiana, Beatriz fitou a si mesma, percebendo que talvez fosse melhor confidenciar a ela o que estava fazendo. Como era possível uma mulher que tanto a praguejou ainda ter a decência de se propor a cuidá-la por achar que fora invadida por outrem? Poderia comemorar aquela derrocada, mas não o fez. A baiana estendeu a mão, sem questionar a verdade da outra, sem apontar o dedo a ela, sem massacrá-la. E, apesar de ter feito o que fez por conta dela, Ana Beatriz não conseguiu olhá-la e mentir como vinha mentindo ao redor.

Foi mais forte do que ambas.

- Tu é uma pessoa tão melhor do que eu. Tão mais digna de cuidado. Não dê sua bondade a minha pessoa. – Beatriz murmurou. – Não consigo ter raiva de ti mais, Heloísa. Eu tento, mas não consigo. O meu rancor ficou todo para Aloísio. E ele não a merece. Aloísio é muito parecido comigo e tu não merece alguém assim na vida. – Heloísa estranhou aquelas palavras. – Não se deixe levar por ele, Heloísa. Eu o amo, e não digo isso por amá-lo. Aloísio não te merece.

- É que eu sou mulher também, oxente... Dá uma coisa aqui no peito. – Disse sem jeito. – Minha família tem tanta mulher. Temos que nos ajudar ou a coisa não anda. E, quando uma precisa, não importa o passado, o presente, a gente só estende a mão. – Umedeceu os lábios. – Não quero me meter em sua vida com Aloísio não, eu amo o Henrique e... Eu sei o meu lugar. Isso já basta. Vamos falar de você, tá toda doída, me deixe fazer alguma coisa pela sua pessoa, Ana.

- Tens mãos sagradas, Heloísa, não as use para limpar uma pessoa que inventou uma mentira tão vil, tão vergonhosa para uma mulher, só para torturar o próprio marido. – Foi sincera, fazendo a baiana a olhar pasma. – Eu só quero que ele volte a me cuidar. Porque todas as vezes que Aloísio se aproxima de ti, é tu quem ele quer proteger. – Respirou fundo. – Anselmo tentou sim me agarrar, mas eu o feri antes que me machucasse de fato. Eu forjei a cena, Heloísa. Queria que Aloísio pensasse o pior e acabou que o álibi se fez mais forte. Anselmo não me tocou da forma como fiz parecer.

- Não minta uma coisa dessas, Ana, é cruel! Está chamando mau-agouro para a sua pessoa! – A olhava atônita. – Oxente! Isso não se faz, Ana! Por motivo nenhum!

- Eu não sei medir os meus atos quando se trata da minha família, Heloísa. Principalmente do meu casamento. – Ana sentiu o olhar marejar verdadeiramente. – O que tu seria capaz de fazer para que o amor da sua vida ficasse, Heloísa? Sei que estou errada, mas não vou voltar atrás. Aloísio irá se divorciar caso saiba que estou mentindo. Não quero morrer sozinha, Heloísa. São tantos anos que eu já não sei mais viver sem o Aloísio.

- Mulher, essa sua dependência por esse homem ainda vai lhe matar. – Heloísa suspirou. – Faça isso não. Tá lhe doendo mais do que se estivesse separada. O amor não pode ser a tua sentença, Ana. Digo por experiência própria.

- De alguma forma preciso pagar nessa vida. – Sorriu. – Guarde o meu segredo, por favor. – Pediu. – Não conte a ele, nem ao seu marido. Essa mentira me ajudará a mascarar minha culpa, eu matei um homem, Heloísa! O homem que desgraçou a sua filha! Ele nunca mais tocará na Verônica! Nenhum médico pode atestar o contrário.

- E como tu acha que Henrique vai lhe ajudar se... Não tem prova alguma em seu corpo? Oxente! Henrique é pelo certo, ele não vai mentir dessa forma. – Falou certa da índole do marido. – Pode até a olhar, mas vai saber que algo não fecha e cai por terra tua história.

- Não vou prejudicá-lo. E prometo que seu marido não me tocará. De alguma forma vou convencê-lo a não me tocar... Só preciso que me prometa que manterá isso em segredo, Heloísa. – Segurou a mão dela. – Por favor.

Maria a olhou e refletiu que ambas carregavam as mesmas culpas, que Ana fora um meio de conseguir a sentença que pediu. A baiana suspirou e assentiu, confirmando que nada sairia da boca dela. Já sabia o próprio destino, o peso que tirou dos ombros da filha para carregar consigo – o peso que dividiu com Ana.

- Tu é danada, mulher. – Heloísa sorriu de canto. – Vou te deixar se livrar dessa, carcará. Repare, Henrique tem coração mole, igual de mãe, se tu fizer um drama, ele cede. Finja que não está diante do médico e sim de um familiar, ele vai perder a pose e lhe ajudar sem nem se dar conta. – Ana assentiu. – Henrique é um doutor excelente, mas quando se trata de família... O homem perde o juízo. Só não faça o meu chamego ir preso, eu rodo minha baiana com você!

- Eu pago a fiança caso for. – Ana Beatriz sorriu.

- Eu devia lhe dar o tapa que não levou, mas vou segurar sua farsa porque livrou minha filha de um destino amargo. – Respirou fundo. – Tô de olho em você, carcará. E cuide pra não matar seu marido do coração, que ele já não ferve na primeira.

- Ferve sim. – Fez Heloísa semicerrar os olhos. – Aloísio aguenta, ele merece esse susto, eu sei o que estou fazendo.

- Quero morrer sua amiga, lá ele. – Maneou a cabeça em negativa.

A senhora deixou Ana Beatriz sozinha no quarto, pedindo a entrada dos homens, que seguiriam emaranhados em uma mentira bem contada.

Aloísio adentrou o cômodo e a viu deitada na cama, deu a volta no móvel a passos lentos, olhando-a. As mãos do advogado esfriaram, sequer conseguia tocá-la, ele estava definhando. Ana percebeu o choro do marido, que tentava de todas as formas se fazer forte perante ela – e não estava conseguindo. Nem por um segundo a advogada pensou em voltar atrás, era merecido aquele pranto, ele também a fez chorar.

- Não me olhe assim, por favor. – Bia murmurou. – Já me basta o que passei.

- Me deixa cuidar d’ocê. – Pediu e a tocou os cabelos, mas Ana se afastou. – Não se esquiva de mim não, Bia. Teu marido vai cuidar d’ocê, tô aqui do seu lado.

- Tu quem está enojado da minha pessoa. – O olhou magoada. – E, agora não adianta mais tentar me cuidar, Aloísio. – Afastou o marido. – Me deixe a sós com Doutor Gusmão, por favor.

- Não, Bia! Eu não saio do seu lado! – Insistiu.

- Me deixe sozinha, Aloísio. – Ana o implorou. – Não vou conseguir dizer na sua frente. Por favor.

- Não adianta tentar, eu não vou... – Ela o interrompeu.

- Por favor, Aloísio! – Aumentou o tom de voz. – Não aumente a minha tortura! Me deixe sozinha, não será a primeira vez que fará isso! Se estivesse ao meu lado como antes, Anselmo não teria me sujado dessa forma! Tu falhaste, Aloísio, agora me deixe salvar a mim mesma já que estou sozinha em minha vida!

Atordoado, Aloísio a deixou na presença de Henrique, descendo as escadas e sentindo um aperto massivo no peito. Érico ouviu o instante em que o pai agarrou um dos jarros da estante e o estraçalhou ao chão. O advogado causou angústia no redor, Requião estava transtornado, ele não conseguia aceitar o que fizeram a esposa dele – o que ele achava terem feito. Tremia conforme encarava o próprio reflexo pelo vidro da janela, preferia morrer para não ter de lidar com aquela penitência, com a própria falha. Aloísio Requião amava Ana Beatriz muito mais do que amava a si mesmo, tentou não amá-la, tentou honrar a si mesmo, porém ela seguia sendo a devoção dele.

- Doutor Aloísio, tente se acalmar. – Verônica se aproximou.

- Aquele abutre tocou nela. – Respirou fundo. – E eu tô morto já! Morto por dentro! Ele morreu e... Tem nem como vingar o que a fizeram! Como que olha pra ela agora?! Eu errei com a minha mulher e errei feio!

- Saia de perto desses cacos, venha. – A nora tentou acalmá-lo. – Vai acabar se machucando, meu sogro. Dona Ana precisa do senhor.

Não a ouviu, estava distante demais para compreendê-la. Érico seguia encarando o pai sem vontade alguma de ir até ele – o culpava em parte. O advogado fechou os punhos, controlava-se para não destruir aquela casa, destruir a si mesmo, Aloísio soube chamar a morte, o peito dele se fazia tão desenfreado que beirava um ataque cardíaco.

- Vou pegar uma água pro senhor. – Avisou a nora.

- Vô, o senhor precisa manter a calma. – Júlio parou próximo a ele.

- Colocaram as mãos na minha Ana Beatriz! – Aloísio avançou na direção de Júlio. – Encostaram na minha mulher! – Érico impediu Aloísio de descontar no neto. – E o maldito tá morto! Não tem como ter calma!

- O senhor se acalme ou vou tirá-lo daqui. – Érico o encarou. – Não encoste no meu filho.

- Eu vou... Ligar pra Sônia. – Júlio saiu pela porta atordoado.

Heloísa acompanhava o quão transtornado Aloísio estava e a angústia por saber que a advogada estava mentindo a esgueirou o corpo. Ela lacrimejou assim que o viu bater os punhos no armário, estavam deixando ele descontar na casa para não fazer uma besteira, porém nada era suficiente para tirá-lo daquela gana que o queimava vivo, que o dilacerava.

A baiana se aproximou, cautelosa, sem temer os falatórios. Ela ergueu a mão para tocá-lo, mas recuou em um primeiro momento.

- Tu vai infartar desse jeito, homem. – Caminhou por entre a louça quebrada. – Sossegue pra não acabar passando mal.

Ensurdeceu e qualquer palavra que tentassem dizer a ele não seria compreendida. Levou a mão ao peito, sentindo o bater frenético, a cabeça já latejava. Agora não adianta mais tentar me cuidar,  Aloísio – era a única frase coesa nos pensamentos do doutor. Não haviam mais motivos para estar vivo, nenhum sequer. Passou mais de cinquenta anos zelando por uma única mulher e tudo se desfez rápido como um castelo de areia.

- Aloísio, eu tô sentindo sua braveza. – A baiana o abraçou pelas costas. – Respira e aquiete esse juízo, vai lhe dar uma coisa!

- Me perdoa, baiana. – Ele resmungou. – Me perdoa por amar ela. – Tentou puxar o fôlego. – Eu amo ela, Ana é tudo que tenho nessa vida. Tudo, Heloísa.

- Oxente, homem, mas eu sempre soube disso. – O beijou as costas. – Não deixe o ódio lhe tirar esse amor. Não deixe o ódio lhe cegar. Vai passar mal e isso só vai piorar a situação de Ana. Tente acalmar o peito e aguentar firme por ela.

- Não consigo amar outra mulher nessa minha vida. – Sentiu a lágrima escorrer. – Me perdoa, Heloísa. Ocê é o meu repouso, baiana. Mas a Ana é a minha vida. Eu morro sem ela.

O olhar de Érico se voltou para Verônica, que retornou da cozinha e encarava aqueles dois como quem buscasse alguma compreensão. A forma como a mãe dela estava abraçando Doutor Aloísio a lembrou os abraços que a baiana dava no primeiro marido, uma forma vaga de aquietar Carlos, que nunca fora calmo no agir. É o meu repouso, baiana – engoliu seco aquela frase, não era boba, mas aqueles dois estavam tentando fazê-la ser. E, como um sopro, Verônica compreendeu o motivo de Érico querer afastá-los, fez total sentido. Quem sabe, a outra mulher que Aloísio Requião tentou amar fora Heloísa.

- Repare, Ana te ama. Ela ama bastante. E te ter do lado vai fazê-la aguentar firme. – Parou diante de Aloísio, tocando-o o rosto. – Segure as pontas, não desista, visse? Muito menos dela, que eu sei que se gostam por demais. Quando estamos machucados fazemos besteira mesmo, teu ego tava ferido, mas passou, melhor que tenha passado, tu não acha? – Aloísio assentiu. – Ela precisa tanto do seu amor quanto tu precisa do dela. Não solte a mão de Ana por ninguém nesse mundo, homem, abandonar a Ana seria como morrer em vida pra você.

- Eu não quis usar ocê. – Murmurou.

- Eu sei que não. – Sorriu. – Mas, repare, eu precisava que tu esbarrasse em mim, Aloísio. Te gosto, homem. Minha gana é que eu te gosto. – Ambos sorriam. – Não se avexe, Doutor Requião, aguente firme por seu amor. Pela sua Ana Beatriz. – Ele assentiu. – Logo ela manda lhe chamar e tu vai ir. A gente só tem uma vida, Aloísio, é uma só, não é a toa que a chama assim. Eu não posso ocupar o lugar dela em tua vida, nem te dar o amor que ela te dá.

Voltou a abraçar a baiana até notar o olhar do filho pesando sobre os dois. Ambos viviam opostos, Aloísio era uma pessoa que afastava Érico da própria aurora, os dois pareciam água e óleo. Tripudiava tudo que viesse de Aloísio Requião, como se ele fosse o grande vilão da vida de Érico, quem o tirava a paz. E Aloísio não se importava com o fardo daquele olhar, não se importava com o que Érico viesse a pensar – ousava entender que vê-lo morto seria um alívio para o filho.

Afastou Heloísa daquele abraço, a beijando a testa. Ela o reergueu para que pudesse voltar para Ana, isso valia um bocado. Por esse valor, seguiria cada palavra dita por ela, que o acalmou o ser.

Verônica abaixou a cabeça, tentando não se deixar levar pela compreensão. A baiana retornou a cozinha, soltando o copo sobre a bancada e levando ambas as mãos ao mármore, respirando fundo. Não demorou a perceber Érico se aproximar, beijando-a os cabelos.

- Quanto tempo? – Verônica o olhou. – Me diga.

- Amor... – Ela o interrompeu.

- Não, não me chame de amor. Eu quero que me diga há quanto tempo eles estão me fazendo de palhaça. – Ergueu o queixo. – Ou melhor, há quanto tempo estão fazendo Ana de palhaça.

- A minha mãe sabe, Verônica. – Notou o olhar descrente da esposa. – Ela sabe. E o perdoou. – Ouviu o riso debochado dela. – Foi antes do Valentim nascer.

- E só eu não sabia. Óbvio que eu não sabia, sou uma idiota mesmo. – Não deixou Érico tocá-la. – Se saia! Você não se atreva a vir me tratar como uma...

- Verônica, eu descobri fazem poucos dias! – Ela não acreditou. – Eu juro pelos nossos filhos, Verônica! Soube no mesmo dia que Anselmo veio atrás d’ocê! Da mesma forma que ocê, mas meu pai me confessou quando o coloquei contra a parede!

- Não coloque as crianças nesse balaio. – O apontou o dedo. – Você não jura por nada, Érico. Muito menos por eles. – Segurou o pranto. – Mainha não tinha o direito de se deitar mais meu sogro. Ela não tinha. Porque eu ouvi anos calada, Érico, eu ouvi anos ela me espezinhando por causa do homem que destruiu a minha vida. Pra no final... Ela virar amante do seu pai. Ela se esfregar no marido alheio! No meu sogro, Érico!

- O meu pai não é santo, Verônica... – Ela não o deixou terminar.

- Mas eu enxergo a minha mãe como uma, Érico. – O queixo tremeu. – Eu enxergo mainha como uma divindade. Como um orixá vivo. Ela é a pessoa mais valiosa da minha vida depois dos meus filhos, Érico. – O marido a abraçou apertado. – Agora faz total sentido a gana de minha sogra. Total sentido.

- Escute a versão dela, eu só tenho a versão do meu pai. Dona Heloísa é importante demais pr’ocê, não a afaste. Já passou tempo demais afastada dela e sei o quanto isso a machucou. – Verônica o fez soltá-la.

- Não tente aliviar pro lado dela. – Falou amarga, pegando o celular. – Vou avisar Eulália da confusão que aconteceu e tu não vai me dizer mais nada, que agora não tô querendo ouvir ninguém... Já nem sei mais o que é verdade e o que é mentira, a única que me trata com verdade é Dona Ana, que essa nunca escondeu que não me suportava e me pediu perdão admitindo os erros que cometeu. – Érico engoliu seco. – Talvez, ela não seja o único carcará da família.

Saiu em direção a varanda, deixando Érico pensando sobre o caos que se formou naquela casa em pouquíssimo tempo.

Noutro andar, pouco acima deles, Henrique colocou a maleta sobre a cômoda, sentando ao lado de Ana Beatriz, que trouxe as pernas junto ao corpo conforme o homem se aproximou. Precisava seguir naquele teatro, forjando a própria dor, fingindo sofrer o que não a fizeram. A advogada olhava Henrique com temor e ele percebeu que tocá-la seria muito mais difícil do que o pensado.

- Desculpe-me por precisar fazer isso, Beatriz. – Ele a olhou sério. – Vou esperar até que se sinta confortável. – Não obteve uma resposta. – Como já disse, eu não sou o médico mais adequado para dizer algo nessa situação. Mas, farei da forma mais rápida que eu puder. Nós somos da mesma família, nada que eu presenciar sairá desse quarto e tudo estará descrito em seu laudo, que será entregue a médica sua amiga.

- A última vez que eu sangrei assim foi quando... Perdi a minha filha. – Murmurou. – Eu não quero que... Me vejam assim. Nem ela pode me ver assim, é uma dor que não contei a ninguém.

- Oxente... Ninguém além de nossa família a verá assim. E vamos cuidá-la da melhor maneira possível. – Tentou se aproximar, porém Ana novamente se afastou. – Quer que eu chame a Verônica ou a Heloísa para ficar ao seu lado? Talvez, com uma mulher ao lado...

- Não, eu vou tentar me acalmar. – Deixou uma lágrima fingida escapar. – Foi horrível, Henrique. Horrível. Anselmo acabou com a minha vida. – Soluçou. – E a culpa foi toda minha! – Abaixou a cabeça. – Foi culpa minha!

- Não foi, Beatriz! De forma alguma. – Manteve a seriedade. – O único culpado foi Anselmo. Ele quem detêm toda a culpa.

- Deve me olhar e sentir nojo, sim? – O olhou chorosa. – Olha como estou... Olhe o que ele fez comigo! – Henrique chegou mais perto de Ana, sentando diante dela. – Meu marido sequer teve coragem de me tocar! Todos estão sentindo nojo de mim! – Puxou o ar sôfrega. – Ele está entranhado em mim!

Ana Beatriz manteve aquela faceta, de alguma forma tentaria convencer Henrique a não fazer o exame. Ele tinha de mentir junto dela ou tudo ficaria mais difícil de solucionar. Percebeu o médico pegar um pano limpo, molhando-o na bacia d’água.

- Eu posso tocá-la? No rosto. – Ana assentiu. – Ninguém sente nojo de você. – A ergueu o queixo, limpando cuidadoso o sangue que secara na pele dela. – Sentimos nojo do ocorrido, de quem o fez, mas de você, jamais. – Ela o olhou doída. – Não teve culpa alguma, Beatriz.

- Tive sim. – Murmurou. – Eu estava frágil...

- Não teve. – Afirmou. – Está sentindo dores? – Passava o lenço por cada marca.

- Estou. – Deitou o rosto na mão dele, inclinando o pescoço. – Estou tão envergonhada. Dói todo o meu corpo... Não sei como tive forças de fazer o que fiz.

- Se defendeu. Fez o que a coube naquele desespero. – A viu chorar ainda mais. – Eu entendo o que fez, Beatriz. Se defendeu. Era a sua vida ou a dele. Não a vejo como errada, vamos comprovar isso.

O médico sentiu Ana Beatriz abraçá-lo, escondendo o rosto na curva do pescoço dele. Precisava manter a descrição, ser o mais profissional possível e garantir que nada mais a deixasse desconfortável ou tudo sairia do controle. Ela era ardilosa, esgueirava pela emoção alheia, usando-a ao próprio favor.

- Não sinta nojo de mim, por favor. – Disse em súplica esperando que a abraçasse de volta.

- Eu não sinto, ficará bem, Beatriz, na medida do possível. – A abraçou cuidadoso. – Como seu médico e membro da sua família, vou garantir que fique bem.

- Me perdoe por fazer isso demorar tanto! – Embargou a voz. – Só o meu marido me tocou tão intimamente! Eu não tenho o costume... O costume de ser vista dessa forma! – Subiu ambas as mãos pelos ombros dele. – Estou envergonhada até de ter Aloísio por perto!

- Beatriz, olhe para mim. – A gaúcha o olhou. – Se tu me disser os detalhes do que seu agressor fez, descrevo no prontuário e encaminho a sua amiga. – Ela lacrimejou. – Confio em você, não precisa me mostrar se se sente desconfortável. Essa perícia morre entre nós.

- Faria isso por mim? – Esboçou um sorriso apático. – Eu não quero prejudicá-lo por um erro meu. Já prejudiquei a todos por esse erro!

- Ninguém saberá, só nós dois. – Respirou fundo. – Eu peço o encaminhamento para que a ginecologista que a acompanha cuide das possíveis lesões, dado o seu sangramento. – Ela assentiu. – Mas descrevemos as lesões como se eu as tivesse constatado. Me diga o que sente, apenas isso, não vou invadi-la desse jeito, ainda mais fazendo parte da minha família, não quero que a minha presença a envergonhe de alguma forma.

- Heloísa tem muita sorte de ter um homem como você ao lado, Doutor Gusmão. – Suspirou. – Muito obrigada.

- Não carece, oxente, não me agradeça. – Beatriz voltou a abraçá-lo pelo pescoço. –  Me deixe tirar essas manchas de você, para que se sinta mais confortável. – Acarinhou as costas dela. – Posso pedir a Verônica um hobbie para cobri-la.

- Não se faz necessário. – Voltou a olhá-lo. – É um homem admirável, Henrique, obrigada. Eu não saberia aguentar tanta exposição!

O cinismo a escorria por entre os lábios, dissimulada ao ponto de malear o redor como bem queria. Pairava sobre aquela família feito uma ave prestes a destrinchar cada um que tentasse pará-la. Ana Beatriz Requião resolveu o problema que assolava a todos, merecia ser recompensada por isso.

...

Ouviram o celular de Eulália tocando, o que fez a baiana levantar da cama para atender. Caminhou em direção a janela do quarto, olhando a movimentação ao lado de fora. Foi na voz embargada de Verônica que todo o restante perdeu o foco e as palavras ditas pela prima – Anselmo está morto, Eulália – a fizeram respirar aliviada. Anselmo Evaristo causou marcas irreparáveis em quem amava e saber da derrocada do homem a vingou. Ele não tocaria mais em Verônica, Cândida ou Aurora, ninguém mais se acharia no direito de interferir nas mulheres que amava. Acabou.

- Que foi que aconteceu, bem? – Cândida a indagou assim que a ligação findou. – Algum problema com as crianças? Os meninos estão bem?

- Era a Verônica. – Parou diante dela. – Eu não sei nem como lhe dizer.

- Seja direta, Eulália. Não gosto que me escondam as coisas. Seja direta. O que aconteceu? – Trouxe certa seriedade para si.

- Anselmo está morto, Cândida. – Eulália falou firme.

Fechou os olhos conforme as palavras da amada ecoavam pelo pensamento. Naquele fechar de olhos, lembrou de quando o conheceu, da cerimônia de casamento, do nascimento dos filhos e de quando ela finalmente conseguiu deixá-lo à sombra dela. Anselmo Evaristo estava morto e Cândida reviveu. Talvez fosse monstruoso sentir tamanha calma, mas, quando um ser se faz tão repugnante, o silêncio absoluto dele torna-se uma vitória.

 - Foi Ana quem... O matou. – Percebeu Cândida estranhar. – Anselmo foi atrás de Ana. Ele a agarrou e ela, pra se defender, acabou o ferindo.

Lembrava bem o pedido que fez a Beatriz, só não imaginava que ela mesma o cumprisse. A mineira permaneceu em silêncio, conhecia muito bem a advogada, bem ao ponto de constatar que ela arquitetou uma ótima mentira para se escapar daquele ato. Ana não fazia nada sem ter muita certeza, era fria ao ponto disso. Não duvidaria caso a amiga confirmasse que Anselmo a obrigou a algo, mas lhe pareceu mais uma boa mentira de Beatriz. Ela se safava de tudo. Ela sempre saía ilesa.

Enquanto refletia, pensou nos filhos, em como eles encarariam aquela notícia – era do pai deles que estavam falando. Levou a mão a testa, sentiu a cabeça latejar, sendo amparada por Eulália.

- Vou pedir a enfermeira... – A baiana fora interrompida.

- Não. – Sussurrou. – Preciso ligar pros meninos.

- Tu quer que eu ligue? – Eulália indagou. – Eu falo com os dois.

- Anselmo se foi, Eulália. – Caiu a ficha de Cândida. – O pai dos meus filhos... O pai dos meus filhos está morto! – Exasperou. – Acabou. – Murmurou. – Ele nunca mais... Nunca mais tirará a paz da minha família! Nunca mais, Eulália! – Abraçou a esposa.

Mais uma das mulheres se viu liberta de um homem vil, Anselmo, por onde passasse, minava o redor. Alastrava por cada canto sua avareza, sugando quem o rondava. Quem estava perto. Cândida foi uma das pessoas que mais lidou com ele. Foram quarenta anos em um casamento infeliz sustentado por períodos de distância um do outro e períodos onde ela se obrigava a aguentá-lo. Contudo, acabou – e auroras chegavam para libertá-la.

- Poderá ser feliz sem esse fardo, minha flor. – A baiana murmurou.

- Ninguém tirará nossa filha. – Cândida a segurou o rosto. – Eu nunca vou permitir uma coisa dessas, Eulália.

- Mulher, tu mandou fazerem alguma ruindade por aí? Não minta, tem culpa em seu cartório? – Olhou Cândida. – Cândida, eu lhe conheço!

- Ele foi atrás da Ana, uai! Ela não ia deixar por isso mesmo! – Eulália semicerrou os olhos. – Não te respondi, né? – A outra negou. – Não tenho sangue de barata, bem! Mas, os meninos não podem nem desconfiar disso! Ana passou na frente, paciência!

- Não vão. – Afirmou. – Finalmente acabou.

- Eu nunca imaginei que fosse sentir alívio pela morte do pai dos meus filhos. – Cândida suspirou. – Não consigo mais mentir a mim mesma, Eulália. Desde que enterrei Gaspar, Anselmo aflorou o meu ódio. Sinto tanta falta do meu filho que não há chance alguma de me compadecer por aquele abutre.

- Nem deve. Não chore a morte de um homem que a feriu, povo tem mania de se compadecer com doença, com morte... – Eulália sorriu. – Mas, ninguém se compadece com nossa dor pelo que nos foi feito. Chore pelo seu filho, coloque para fora, mas não se doa por quem fez doer.

Cândida desceu os olhos pela esposa, fitando-a cautelosa. Sorriu e acenou, Eulália tinha razão. Não devia chorar por quem a feriu, por quem a tirou um pedaço, afinal, premeditou essa partida e lidaria com isso. Haviam chegadas mais bonitas, pedaços capazes de acalentar aquele luto.

- Os meninos vão saber da partida do pai e estaremos com eles, quero entender também o que foi que aconteceu com Ana. – Acariciou o braço da amada, que assentiu.

- Vem cá. Me deixe lhe fazer um chamego. – Fez Cândida deitar sobre as pernas dela. – Sou doida nesses seus cabelos, são da minha cor favorita, visse? – Passou a fazer um cafuné nas madeixas avermelhadas da mineira. – Eu te amo. Amo sua pessoa, o que sei que tu é. A minha Cândida.

- Eu te amo toda. – A beijou uma das mãos. – Tudinho que vem d’ocê é bom demais da conta. Não tem como ser triste do teu lado.

- Que bom. Não lhe quero triste nessa vida. – Sorriu.

Eulália e Cândida às vezes nem precisavam correr atrás de uma aurora, elas caminhavam de mãos dadas com ela, às vezes sem que se faça tão aparente.

...

Os ânimos seguiam amargos, Aloísio retornou até Ana e Henrique conversava com a legista que chegou na casa de Verônica. Não demorou a estranhar a ausência da filha, Morena se enfiou na cozinha e não saiu mais, o que encucou Heloísa, que seguiu atrás dela. A mais velha viu a filha sentada encarando parte do jardim, na parte externa da casa.

- Deve de estar sendo difícil pra você. – Heloísa chegou perto da filha, que não ousou olhá-la. – Um dia tu amou aquele homem. E ele a machucou. Mas, a gente nunca espera a morte. Ainda mais do jeito que foi. Esse homem era ruim, minha filha. Teve o fim merecido.

- Terminou de consolar meu sogro e decidiu vir até mim? – Verônica olhou a mãe. – A senhora é uma pessoa admirável, mainha.

- Oxente, minha filha é você. Só quis evitar que uma confusão se formasse ainda maior, Morena. – Justificou. – O homem estava a ponto de sair e cometer uma loucura!

- É normal cometer uma loucura na vida, olhe pra mim. A desvairada vai enterrar o pai do filho. – Heloísa estranhou. – Mas, o tempo serviu pra me mostrar que eu não sou a única perdida da família. Meu coração me fere sim, mas nunca me faltou decência. Há quem se deite com homem casado sabendo que é, eu fui feita de idiota, mas não acho que com o passar do tempo mudou muita coisa.

Heloísa fechou os olhos e respirou fundo, entendendo aquela mágoa de Verônica. Ela descobriu, da mesma forma que o filho de Ana também soube. E, com isso ficou tão claro que ela não era aquela perfeição toda, Heloísa Medrado também errava, também falhava – e a primogênita tinha de enxergá-la como uma pessoa também. De carne e osso, mesmo que agora não a restasse tanta fé assim.

- Me perdoe. – Maria lacrimejou, já entendendo a fala de Verônica. – Perdoe sua mainha, filha.

- Não tenho que perdoar nada, eu bato cabeça pra senhora, minha mãe. – Disse magoada. – Me doeu de vergonha, mas eu lhe amo ao ponto de aguentar calada. Também já lhe envergonhei na vida.

- Eu te explico, Verônica. – Ajoelhou diante dela. – Olhe pra mim, Morena, em meu olho. – Segurou o rosto dela. – Deixe tua mãe explicar, por favor.

- É o meu repouso, baiana. – Repetiu as palavras do sogro. – A senhora amou ele, mainha? Porque essa é a única explicação que me cabe. Se não foi amor, foi pra se vingar. Não sei se de Dona Ana ou de mim, que tanto a dei desgosto.

- Se eu lhe disser que amei, tu me perdoa? – Escorreu a lágrima.

- Não foi nem por amor. – Verônica fez a mãe soltá-la. – Deve de ter sido por vingança mesmo, não tô de um todo errada, que eu bem lhe conheço. Uma vida inteira ouvindo da senhora que corpo é sagrado, que precisamos cuidar a quem nos entregamos, pra justo hoje me dar conta que a senhora não prega o que impõe.

- Eu não dormi mais ele, filha. – Fez Verônica olhá-la. – Eu não consegui! Único homem que tive depois de teu painho foi Henrique. Lhe juro, Morena.

- A senhora jura por seu pai? – Percebeu a mãe entristecer. – Olhando em meu olho, mainha, a senhora jura por Oxalá?

- Não posso mais recorrer a ele, Morena. Fiz um desrespeito muito grande a ele, filha. – Abaixou a cabeça. – Agora tá tudo se desgraçando em minha cabeça pela maldade que fiz!

- A senhora foi suja, minha mãe. – Maria a olhou magoada. – Quase tirou o amor de Dona Ana e ainda a sujou o corpo. Tem tanta culpa por essa morte quanto ela, porque eu sei a mãe que tenho e se nunca lhe contei foi pra evitar a tragédia do hoje. Olha o estado que minha sogra chegou aqui. Isso foi feitiçaria sua, não me engane!

- Eu não sou santa, Morena. Ela também não é! – Secou o rosto. – Não sou perfeita, mãe também erra! Eu a livrei de ter esse carcará em seu caminho! E não quero morrer brigada contigo, minha filha! – Agarrou as mãos da mais nova. – Eu juro que não me deitei mais ele, Morena!

- Tô magoada, me deixe quieta, mainha. – Pediu. – E se levante, que eu não sou ninguém diante da senhora, eu quem lhe devo obediência. – Heloísa negou. – Mainha, por favor, eu só quero esfriar a cabeça. É muita coisa pra assimilar, preciso ficar sozinha!

- Faça assim não, meu lírio. – A beijou o rosto. – Lhe admito que foi vingança, mas não fui tão longe quanto pensa! Aloísio me viu como a mulher que seu painho não enxergou, ele me olhou bonito, Verônica. Tu e tua irmã me enxergaram como pessoa, ele enxergou como mulher... Eu sou grata por isso, deu um calorzinho no peito, uma vontade de tentar de novo, mas não do lado dele. – Admitiu em lágrimas. – Eu não me deitei mais ele, filha. Foi metade vingança e metade querer! Aloísio se apaixonou por mim, Verônica, eu não sei como, nem o motivo, mas se apaixonou. E eu... Eu sou mulher também, minha filha! Vivia na sombra do seu pai, Aloísio me fez sair dessa sombra! Mas... Não fiz ele se apaixonar por mim, aconteceu e eu não soube evitar.

Verônica não aguentava ver Heloísa ajoelhada diante dela, então desceu da cadeira e ajoelhou junto da mãe, olhando-a. Como não se apaixonar por aquela mulher? Heloísa era tudo que Verônica queria ser, tudo que mais admirava na vida, como culpá-la por ser a paixão de alguém? Por se deixar levar. Ainda bem que alguém a trouxe de volta, aquela baiana não merecia se sentir um fardo para sempre, independente de quem tenha a ajudado a se enxergar.

- Como que não gosta da senhora, minha mãe? – Acarinhou o rosto dela. – A morena mais bonita que Salvador já viu. – Tentou sorrir. – Nunca vi mulher mais bonita em minha vida. Eu cresci querendo ser igualzinha a senhora.

- E tu é. – Murmurou. – Mais bonita e mais amável do que eu. Mais digna do que eu.

- Painho não lhe merecia. Ele não tinha merecimento nenhum. – Secou a lágrima da mãe. – Meu sogro a fez alguma maldade? Seja sincera, mainha.

- Nenhuma. Ele me fez bem. Aloísio me gosta, Morena. Do jeito dele, mas gosta. E mulher gosta de ser bem tratada, ele em nenhum momento me maltratou. – Verônica assentiu. – Mas, ele ama a Ana. E eu amo você. Não tinha como dar pé, Verônica. Restou só um bem querer. Não me odeie por esse erro, vai me doer demais ir embora dessa vida sem o carinho de você e sua irmã.

- Não diga bestagem. – Tentou sorrir. – Ainda preciso da senhora. Preciso muito. Pra tudo tem jeito nessa vida, oxente... Não vai embora. Eu morro junto. – Disse em um fio de voz. – Morro junto. É a felicidade da minha vida, minha mãe, sou nada sem a senhora.

Heloísa abraçou Verônica, respirando aliviada por tirar aquele peso dos ombros. A filha não soube renegá-la, mesmo que tenha sido mais uma descoberta difícil.

- Tu tá livre em seu destino agora, Morena. – Heloísa sorriu. – Ninguém mais lhe empurra pra morte. Ninguém. Finalize sua história feliz, sem pesar, com força pra correr atrás da sua aurora.

- Não há história em minha vida sem a senhora para escrever nela. – A segurou mais forte. – Eu te amo. Não me solte mais, por favor, tô necessitada de seu amor.

O amanhã era uma incerteza, mas o hoje trazia alívio com certo pesar – a relação delas era sagrada demais para se fazer arruinada.

...

Ela o deixou chegar perto.

O amava ao ponto de mentir. De ocultar.

E o rondava, ditando que a pertencia.

Despiu a esposa, guiando-a ao chuveiro. Aloísio não permitiu que ninguém tocasse em Ana naquele momento, nem mesmo as mulheres da família. Era a esposa dele e quem estaria com ela seria ele. Deixou escorrer a água por entre o corpo dela, olhando-a amoroso, porém culpado. O corroía saber que não a protegeu daquilo, que Anselmo a machucou. Refletia os próprios atos, às próprias escolhas, sentindo um nojo repulsivo do próprio reflexo.

- Se segure em mim. – Ele a trouxe para mais perto.

- Tenha cuidado, por favor. – Murmurou.

- Ele a machucou como? – Aloísio a olhava em desespero. – Me diz, Bia, não me esconda.

- Foi horrível, querido. – Lacrimejou. – Onde tu estava, meu velho? Por que não foi até mim? Não entendo como deixou isso acontecer, Aloísio! Nunca me machucaram dessa forma.

- Me perdoa, Bia... Eu não imaginava que ele iria atrás d’ocê! – Respirou descompassado. – Juro que não saio mais do seu lado, minha vida. Estava no rastro do delegado, eu ia resolver, mas não deu tempo! Não sei como, Bia, mas não deu tempo!

- Agora já está feito. – A voz embargou, ela mentia tão bem. – Por que tu não me protege mais como antes, querido? Fazia tudo por mim, Aloísio... E agora, eu tenho de me proteger sozinha!

- Não diga isso, eu faço o que for por ocê. – Já estava o atormentando. – É o amor da minha vida, Ana Beatriz, me perdoa! Ninguém mais toca n’ocê! Eu juro!

- Eu dei o seu filho, Aloísio. Eu me fiz grandiosa para que me admirasse tanto quanto eu o admiro! – Soluçou. – Não me abandone, meu velho, não aguento uma vida sem te ter! – Notou a lágrima dele escorrer. – Eu não quero morrer infeliz... Sentindo essa culpa toda nos ombros!

- Olha pro seu marido. – A segurou a nuca. – Olha bem pra mim, Ana Beatriz. – O fitou. – Ninguém toca n’ocê, vida. Nunca mais. Nem que eu tenha que te levar pra bem longe! Saímos do país hoje caso queira. – A beijou o rosto, esgueirando ao canto da boca dela. – Foi corajosa, minha vida, teve coragem de dar um basta naquele abutre. Me perdoe por não ter corrido na sua frente. Perdoe, Bia. Foi minha culpa, eu não devia ter deixado ele tocar n'ocê. Me perdoa.

- Eu te amo. – Murmurou.

- Nenhuma marca vai ficar n’ocê. – Ele secou as próprias lágrimas. – Nenhuma, uai. Não vou deixar. – Respirou fundo. – Confia em mim, vai restar nada daquele abutre n’ocê. Nada.

- Eu te amo muito. – Sorriu fraco.

- Eu te amo. É o único amor que tive nessa vida. O único. – Beijou o rosto dela.

Enquanto Aloísio limpava o rosto de Ana, conforme a água caía calorosa por ela, percebeu a esposa mudar o semblante, acalmando as expressões. Estava tão satisfeita do que fez que quase não servia em si, passou a ser notável nos olhos azuis que o advogado viu refletir a si mesmo.

Anselmo Evaristo não está morto porque você é um homem de poder, não está morto por você amar Heloísa, ele está morto por eu ser uma mulher que não precisa de você para nada. O seu poder sou eu, Doutor Requião. Sem mim, você não é nada – pensou Ana.

Beatriz conseguiu enganá-lo, ela o fez acreditar que estava diante de mais uma vítima de Anselmo, o fez se sentir fraco, um homem incapaz de zelar pela própria família – e por puro querer. Ana Beatriz era a perdição dos dias dele, o único ser capaz de fazê-lo um tolo por ela. E essa facilidade em dominá-lo o mantinha vivo, como quem briga sempre de igual para igual, um debate interminável.

- Amo ocê. – Ele falou firme. – Nunca esqueça que eu amo ocê.

Tateou a boca dela com o polegar, aqueles olhos – valiam tudo que tinha – seguiam o olhando e ela abaixou a guarda para ele. Ana Beatriz era uma sina. Ele a tomou em um beijo que a desesperou, estavam fadados a lidar um com o outro até o fim. Aloísio a venerou por ser a imagem e semelhança dele. E ela conseguiu amarrá-lo a ela como antes.

Era insaciável, tinha mais coragem do que homem.

...

Colocou as crianças na cama e adentrou o próprio quarto, olhando o marido sentado em um dos extremos da cama, pensativo. Deu a volta na mesma, sentando ao lado dele, deitando o rosto no ombro do doutor. Verônica nada disse, ele também não ousou dizer. Vez ou outra, a baiana o olhava de canto de olho, tentando decifrar o que pensava.

O abraçou pelos ombros, sentindo o perfume, o cheiro de um bem querer.

- Não vai ter mal que chegue a nossa família. – Garantiu ela. – Nem mal que nos separe.

- Eu juro pr’ocê que só soube agora. Não quis ocultar nada. É que pra mim, interferir na relação d’ocê e sua mãe, é maldade. – Suspirou. – Sei a importância de Dona Heloísa em sua vida.

- Tá tudo bem entre mim e ela, que eu não sei viver sem mainha. Vivo sem ar, sem água, mas sem ela... Nunca. Não mais. – O beijou o ombro. – E não se preocupe, nossos pais não vão mais se achegar. Mainha ama Henrique. Seu pai ama sua mãe. E eu... Eu lhe amo. – Sorriu contida.

- Seu coração é mais amoroso que o meu. Essa história só me mostrou com mais clareza que é impossível Doutor Aloísio e eu nos darmos bem. – Admitiu. – E ainda me acontece uma crueldade dessas com a minha mãe.

- Dê a Dona Ana o que não pode dar a seu pai, Érico. Retribua a ela. Seu carinho, seu amor, o que há de bom. – Sorriu. – É o que faço pela minha. Meu pai a feriu, eu não consigo ferir mais. Não posso ser o reflexo dele.

- Vou fazer isso. – Acarinhou a mão dela sobre o peito dele. – Como tá seu coração? Por causa do ocorrido. De Anselmo.

- Não quero ser ruim, amor. Mas, eu tô tão aliviada. – Lacrimejou. – Eu não aguentava mais ter ele se atravessando em meu caminho, Érico. Me tirando a paz. A tranquilidade. Se interferindo nos momentos mais importantes da minha vida. É uma paz inexplicável. – Foi sincera. – Pode parecer horrível...

- Verônica, nem se ocê tentar, consegue ser uma pessoa horrível. – Érico a olhou admirado. – É a melhor pessoa dos meus dias, não há chance alguma de ser alguém ruim. – A beijou a testa. – Fique tranquila, Anselmo teve o fim que merecia e estamos nos cercando de todos os lados para evitar que minha mãe... E qualquer outra pessoa da nossa família, seja culpada.

- Acha que Dona Ana pode ir presa? – O indagou preocupada. – Coitada de minha sogra, Érico! Ela só se defendeu!

- Verônica, foi um flagrante. Mas, o delegado era amigo do meu pai, se ela fosse ser presa, já teria sido no instante que a acharam com o corpo daquele abutre. – Foi sincero. – E como Dona Ana mesmo diz, um sobrenome vale muito. Ela sabe usar o dela até melhor do que meu pai, que carrega desde o berço. – Deu de ombros. – Dona Ana é a única pessoa que conheço, em anos de profissão, que fez um corpo de delito em casa... Com um médico que não é legista! Ainda receberá o delegado aqui amanhã porque, segundo ele, é inviável levar Dona Ana Beatriz até uma delegacia apenas por se defender. Que ela já estava debilitada o bastante.

- Com todo respeito, Érico, mas sua mãe é um diabo. – A baiana franziu o cenho. – Como que consegue?! Se eu quem tivesse matado, estava no xilindró comendo poeira!

- Anselmo foi queima de arquivo, amor. Da mesma forma que Gaspar. Minha mãe fez o que metade de Minas Gerais queria fazer. – Suspirou. – O apelido dela no tribunal é literalmente Diaba. Ela consegue absolver qualquer um, até a si mesma. E ela tem dinheiro de sobra pra encobrir os próprios atos. Fez fortuna sozinha no direito, mas, mesmo se não fosse advogada, ela já era mais rica que meu pai.

- Oxente... – Verônica o encarou. – Como mais rica que seu pai, Érico?! Não me faça de besta!

- Uai! Ela é! – Verônica seguiu descrente. – Doutor Aloísio herdou as fazendas de café dos meus avós, junto do sobrenome deles, que era muito estimado. Fez carreira como advogado criminalista, o que só o trouxe mais lucros. – A baiana assentiu. – Já a Dona Ana é a única herdeira dos pais, o pai dela era do exército, um general, que deixou pra ela imóveis arrendados em todo território do Rio Grande do Sul. Por parte de minha avó, ficou com as fazendas de arroz. E ainda herdou as fazendas de arroz por parte da tia dela. – Verônica entreabriu os lábios pasma. – Só com a herança por parte da tia, ela já é mais rica que meu pai, Verônica. Sem falar na carreira de advogada, ela só trabalha com político, gente grande como Cândida.

- E por isso que não queriam deixar eles casarem? – O olhou curiosa.

- Sim. Achavam que meu pai queria se aproveitar dela. – Comentou. – A família da minha mãe era muito severa. Mas, foi meu pai quem a permitiu voar. Caso tivesse permanecido no sul, meu avô nunca a deixaria estudar. Ser advogada. Muito menos se envolver em política. E eu não duvido que se eles separassem, ela pegaria os bens todos pra si. – Deu um leve riso. – Nem o casarão ficaria pra ele.

- Nunca vi um carcará com tanta sorte, minha santa. – A baiana cobriu o rosto com as mãos. – E eu jurando que minha sogra se esbaldava com o dinheiro do marido. – Érico negou. – Érico, se seu pai é pobre diante dela, imagina eu!

- Vamos mudar de assunto. – Ela franziu o cenho. – Que foi?

- Eu nunca em minha vida vi uma fazenda de arroz. – Constatou, Érico gargalhou. – Érico, estamos todo esse tempo juntos... E tu nunca me mostrou! Eu já vi na televisão, fica cheinho d’água ao redor... Como que brota na água, homem?!

- Por isso é a coisa mais sem cabimento do mundo a chamarem de interesseira, Verônica. – Ela o olhou sem entender. – Eu acabei de dizer pr’ocê que minha mãe tem esse tanto de coisa e cê quer saber como que planta arroz em água!

- E eu lá vou querer saber de fortuna de Dona Ana?! Me erre, Érico, ela tem esse tanto de coisa pra cuidar e ainda achou tempo esses anos todos pra cuidar da minha vida! – Fez um bico. – Ela nasceu virada pra lua... E eu pro sol!

Fez o marido gargalhar outra vez, acabou por rir também. Fora uma boa distração no dia tortuoso que tiveram. Haviam fortunas mais valiosas, ter para si aquela baiana era um exemplo disso.

Érico Requião tocava a própria fortuna com a ponta dos dedos e ela era inestimável.

...

Belo Horizonte, Minas Gerais

Janeiro, 18,  2024

No meio da noite, acordou com a tosse de alguém da casa. Verônica levantou, respirando fundo, tentando decifrar qual das crianças tossia daquela forma. Levantou e foi a cada um dos quartos, Madalena dormia e Valentim – mesmo atravessado na cama – ressonava. Ouviu novamente o barulho, não quis bater no quarto onde os sogros ficaram, hesitou. Foi quando Heloísa saiu de um dos cômodos que Verônica passou a se preocupar ainda mais.

- Mainha? – Viu Heloísa se segurar na porta do banheiro. – Oxente... O que a senhora tem?!

- Não chame o Henrique. – Pediu fraca. – Não chame.

- Mas, se não está se sentindo bem... – A mãe a interrompeu.

- Mande a tua irmã vir pra cá. Quero Carolina aqui. – Puxou o ar dificultosa. – Tem dinheiro em minha casa. Ela que pegue e venha.

- Vamos lá pra sala. A senhora precisa tomar um ar. – Heloísa negou. – Será que pode me explicar o que tá sentindo?! Deixe de ser cabeça dura. Cacau não vai vir até aqui só pra lhe medir a pressão.

Ouviram uma das portas se abrir, era Madalena que ouviu a conversa das mulheres. Estranhou pelo horário, preocupou-se pelo jeito que a avó estava.

- Madá, volte pra cama. – Pediu Morena.

- O que voinha tem? – Parou diante delas.

- É insônia, meu dengo, não se avexe. – Tentou sorrir. – Bestagem de voinha.

- Vem dormir comigo, voinha. – Madalena pegou a avó pela mão. – Eu lhe cuido.

- Venha dormir com sua mainha, meu lírio. – Chamou Verônica. – Eu vou melhorar. Só consigo dormir com duas no colo.

- Vou dar mais uma olhadinha em Valentim. E avisar Érico, pra ele não estranhar. – Avisou Verônica. – Quero ficar de olho na senhora.

A matriarca fora guiada para o quarto da neta, que estava uma mocinha linda. Era calmaria em forma de criança, de mocinha. Era o dom passado de uma para a outra, a forma clara como o bem era hereditário. Maria sentou na cama da menina, a viu pegar um vidro de perfume na gaveta da cômoda, logo o cheiro de alfazema a tomou o corpo, Madalena molhou as mãos e passou no peito da avó.

- Sua tosse vai passar. E a senhora vai dormir. – Disse a menina. – A senhora ainda tem mãe, esqueça dela não.

- Esqueço não. – Maria murmurou. – Vai ser rápido? Voinha tá com medo, filha. Eu não consigo ouvir mais nada, eu tô achando...

- Iemanjá é mãe que não solta a mão de um filho, mas esse filho tem que querer segurar a mão dela de volta. – Madá sorriu. – Aceite ela em seu peito e deixe ela lhe deixar aqui com a gente.

- Voinha fez uma maldade muito grande. – Foi sincera. – Tem perdão pra mim não. Eu só quero saber se vai ser rápido.

- Preocupe não, voinha, vai ser igual uma jangada. Vai balançando, sem doer. Sem sofrer. – Sorriu. – A mãezinha é a água que aparta a morte, todo mundo tem um tempo certo, não se dê por terminada não.

Heloísa subiu o olhar por Madalena, aqueles olhos verdes tanto pareciam com os de Verônica. Tinha os ares da mãe dela, que herdou aquele par de joias do pai. A baiana prendeu-se naqueles olhos, por um instante, um fio de esquecimento, ela quis que Carlos Alberto pudesse ver aquela neta. Não soube ao certo o motivo daquela saudade ter vindo tão forte, mas chegou e a distraiu.

Madalena sentiu na palma da mão o suspirar da avó, que voltou por uma fração de tempo aos dias onde ainda se havia esperança. Quando ela poderia sim esperá-lo voltar porque ele viria até ela. Buscá-la. Heloísa queria muito que ele a buscasse e que tudo fosse diferente, Heloísa quis que Madalena fosse Morena. Por um minuto ou dois, implorou que fosse Morena – e, caso a morte tivesse gosto de retorno, ela sequer reclamaria.

- Pronto, cheguei. – Verônica cruzou a porta, tirando o hobbie. – Melhorou? Quer um remédio, mainha? Uma água? Lhe faço um cházinho de erva-doce.

- Olha a camisola da bonita. – Heloísa riu, voltando a si. – Tá faltando pano nesse trapo, visse?

- Oxente! Da língua a senhora tá ótima! – Verônica se aproximou rindo. – Isso aqui é seda, visse? Da pura. Agora se arrumem as duas nessa cama, onde já se viu? Ter que colocar mainha pra dormir igual neném!

- Foi pra lhe fazer rir, eu queria ouvir teu riso. Vai faltar Valentim. Da última vez, ele dormiu junto. Na barriga, mas dormiu. – Heloísa deitou ao lado de Madalena, olhando Morena se aproximar.

- Se contente com duas, que Valentim não sabe dormir quieto e hoje não tô podendo com chute de menino igual era naquela época. – Abraçou Heloísa. – Se aquiete.

- Uai, tem história não? Só dormir no seco? – Madalena torceu o nariz.

- Duas da manhã, Madalena, conte história em sonho. – A mãe resmungou. – Ô, mainha, a senhora tá fria demais, quer uma mantinha?

- Tu que é foguenta, Morena. – Puxou a filha para mais perto. – Esquente sua mainha.

Estar envolta pelas águas fez Maria adormecer, ela sabia o que estava por vir, mas aproveitaria os minutos que a restavam. Por sorte, tinha Madalena, que se fez o reflexo da avó – ela era o seguimento do legado de Maria, nada havia se perdido por maldade ou castigo.

...

Aloísio desceu para buscar o café de Ana, que permaneceu no quarto. Não ficaria muito tempo sozinha, uma boa visita chegaria para alegrá-la. O olhar de Ana sorriu ao ver Vivian cruzar a porta nos braços de Júlio, não demorando a estender os braços para a bisavó, que a puxou para si. Ouviram o choro da menina, que deitou no peito de Ana e assim ficou, não a deixando sequer olhá-la.

- Vidinha, não vai me dar um beijo, querida? – Perguntou a bisavó. – O que tu tens?

- Ela não pregou o olho essa noite, Dona Ana. – Sônia confidenciou exausta. – Como a senhora está?

- Agora, melhor. – Sorriu. – Por que não dormiu, Vivian?

Seguiu sem resposta, voltando a olhar o jovem casal a frente dela. Precisaria de um pouco mais de tempo para arrancar algumas palavras da menina, que continuava a abraçando forte.

- Vão tomar café, queridos. Eu me resolvo com ela. – Acarinhou as costas da pequena. – Sônia está com olheiras.

- Não teve cristo que fizesse ela dormir, Dona Ana. A senhora me desculpe por tomar seu tempo depois de tudo, eu posso levar a Vivian pra casa, ela só queria ver a senhora um cadim. – Sônia sorriu sem jeito.

- Não tem problema algum, minha querida. – Sorriu. – Júlio, leve sua esposa para tomar café e, de preferência, a dê um cochilo de presente. Uma mãe merece dormir em paz nem que seja por meia hora.

- Farei isso. – Júlio pegou Sônia pela mão. – A senhora precisa de algo, vó?

- Não, querido. Obrigada. Seu avô já foi buscar meu café. – Voltou a olhar Vivian. – Depois vamos tirar um bom cochilo juntas. Podem ir sem culpa. Os absolvo de culpa!

Fez o casal sorrir antes de saírem juntos do quarto. Beijou a testa da menina deitada sobre ela, fazendo um carinho nos cabelos encaracolados. Vivian era adorável, um amor adorável, um amor que despertava o melhor lado daquela mulher, mesmo quando o pior se fazia presente.

- Não chore, minha vida. – Ana murmurou. – O que a incomoda? Diga a bisa.

- Mamãe, quando a senhora for embora, me leva junto? – Vivian a olhou.

- Eu não vou a lugar algum. – Secou o rostinho dela. – E tu sabe quem sou, a bisa. Mamãe é a Sônia, querida.

- Todo mundo vai embora um dia. – Disse inconformada. – E eu quero ir com a senhora. Mamãe, eu achei que ia ir sem mim, por isso fiquei triste.

- Por que achou que eu iria embora? – A acomodou na cama.

- Doeu aqui. – Levou a mão ao lado esquerdo do peito. – Machucaram a senhora? Por isso tá aqui? Deitada de pijama. Não voltou pra casa, achei que não ia voltar mais pra mim.

- Não estou machucada, não se preocupe. – Sorriu. – Eu não posso te levar embora comigo, Vivian. A mamãe já viveu muitos anos. Muitos mesmo. E seria egoísmo meu a levar antes da hora. Espero viver muito mais ao seu lado, foi só um susto.

- Eu voltei só pela senhora, uai. – Fez um biquinho. – Me leva embora também, com o papai. Por favor, mamãe. Não vai sem mim!

Beatriz sentiu o olhar marejando, não conseguindo se desfazer das lágrimas. Respirou fundo, mantendo a calma.

- O dia que eu me for, Vivian, saiba que eu volto para ti. Tu me fizeste um bem danado. – Sussurrou. – Caso permitam, eu volto para ficar perto de ti. – A trouxe para perto, sendo abraçada pelo pescoço. – Eu te amo, filha. Tanto ao ponto de voltar.

- Te amo. – Vivian resmungou. – Mas, eu quero ir com a senhora!

- Soube que tem uma vidinha na cama do biso. – Aloísio chegou com a bandeja. – Trouxe o seu iogurte rosa, dondoquinha. E é bom que a Dona Bia coma também, que logo mais vamos ter uma longa conversa com o amigo do biso. – Olhou o relógio. – Moura já tá vindo, Bia.

- Espero que não me façam sair da cama só para narrar a minha decadência. – Beatriz resmungou, entregando o copo para Vivian. – Foi um acidente, eu não fiz nada de errado, vida. E já está sendo cruel o que estou passando. – Fez um biquinho.

- É só pra fazer hora, uai. Já tá tudo acertado. – Sentou junto dela, pegando a vasilha de frutas.

- Pegue o meu cartão e entregue para ele de uma vez. Quem sabe ele pega a cafona da esposa dele e vão os dois aproveitar bem longe, ontem foi a gota d’água! – Dramatizou. – Me sinto o pior dos seres!

- Mamãe, prova. – Vivian mergulhou um biscoito no iogurte, entregando a bisavó.

- Ficou bom. – Ergueu as sobrancelhas. – Seu paladar de criança é impecável.

-  Bia, eu sei que cê quer se livrar dessa situação... – Se aproximou dela. – Mas ocê matou um homem, vida. – Cochichou. – Tem que pelo menos dar um parecer. Falar alguma coisa! Foi um acidente e ainda assim aconteceu. Quem me dera poder tirar isso da sua memória. – Beijou a mão dela.

- Fiz um favor a sociedade! Deveriam erguer uma estátua minha na Praça da Liberdade! – Pegou outro biscoito com Vivian. – Bah, não medi meus atos, mas eu me defendi, amor. Sou uma vítima. Era ele ou eu! Preferia que fosse eu no lugar dele? Foi o que quase ocorreu!

- Eu sei, vida. Fez o correto. – Ana fez um biquinho. – Ainda assim precisa dizer algo ao delegado, mas vai ser coisa rápida. Juro pr’ocê.

- Biso, quer um biscoito? – Vivian sorriu.

- Uai! Achei que cê ia me deixar de lado! – Pegou das mãos da menina. – Quer uma frutinha? Cê quer, Bia? – Ambas assentiram.

- Será que vão abafar isso? Aloísio, será a minha morte ver meu rosto estampado por aí ao lado daquele homem! Ainda mais se disserem o que ele me fez! Vou me sentir exposta de todas as formas. – Lacrimejou, fazendo o marido encará-la. – Aloísio, eu não vou aguentar!

- Ana Beatriz, eu já tomei a frente disso, vão soltar uma nota meia boca só informando o falecimento e o velório será fechado, ainda mais que isso caiu no colo da Carneiro. – Deu de ombros. – E eu sinto muito pelo pai dos filhos dela não ter aguentado a pressão, tirar a própria vida dessa forma é terrível, certa ela de pedir sigilo de informações. Mesmo que minha vontade seja ir cuspir no caixão desse desgraçado em praça pública.

Ouviu a risada da esposa, que não conseguiu segurar. Aloísio era deveras cômico.

- Ai, meu velho, tu é pior que eu. Conseguiu me tirar um riso! – Ela sorriu. – Se eu sou o carcará, tu é um urubu!

- E eu sou o que, mãezinha? – Vivi a olhou curiosa. – Quando a carcará casa com o urubu, nasce o que? – Torceu o nariz.

- Vivi, tu não nasceu de mim, é melhor, lhe garanto. – A beijou o rosto. – E mesmo se tivesse nascido, olha o seu avô, ele definitivamente não é nem um, nem outro. Érico é, no máximo, um Quero-quero.

- Um Curiózinho. – Aloísio riu. – Não puxou a nós. Em nada!

- Que chato, queria ser um carcará. – Vivian fez um bico. – Ou um urubu!

Aloísio e Ana se entreolharam, Vivian cresceria e seria imparável como ambos. Esperavam que para o lado bom, mas, caso decidisse sair a caça, deixariam para ela dinheiro o suficiente para se escapar – como a bisavó.

...

Dormiram demais. Mais do que a cama, diria a mais velha das baianas. Verônica deixou a mãe com a neta, indo em direção ao banheiro. Acabou por ver no celular as mensagens de Eulália, que explicava sobre o velório de Anselmo dali dois dias. Respirou fundo, olhando o próprio reflexo no espelho.

Havia acabado.

Levou a mão ao ventre, quase como quem dizia a menina que um dia foi que o tormento se findou. Júlio cresceu, estudou, ganhou família e era um bom homem. Um homem que não seria assombrado por um pai que não o quis. E Anselmo não a tocaria mais, não colocaria as mãos na alegria dela para ceifá-la, Verônica estava liberta. Sem morte, mesquinhez ou avareza. Sem qualquer resquício de Anselmo. Estava bem.

- É, Morena. Acabou. – Sorriu ao reflexo.

Começou a se arrumar, deixando no quarto ao lado, uma silenciosa confusão se formar.

Heloísa levantou brava consigo mesma, olhou o relógio na cômoda e percebeu que dormiu em demasia. A baiana bufou, atrasaria o trabalho do dia e seria espezinhada pela patroa.

- Morena! Acorde, menina! – Mexeu em Madalena, que acordou perdida. – Oxente, não foi pra aula, Morena? – Puxou o lençol que a cobria. – Cadê Cacau?!

- Uai, voinha... – Madalena bocejou. – Tia Cacau tá na Bahia! Senhora caiu da cama, foi?!

- Deixe de pirraça pra cima de mim, menina! Levante, vamos! Tanto que eu lhe peço pra não faltar aula, Morena! – Suspirou. – Seu painho deve de ter levado Carolina mais ele.

- Vó, senta aqui. – Madalena a estranhou. – Só um minutinho. – Desceu da cama. – Olhe bem pra mim...

- Ô, meu lírio, mainha tem que ir trabalhar. – Sorriu e a tocou os cabelos. – Faltou aula pra ficar de dengo mais sua mainha, foi? Esperta!

- Espere aqui, só um cadim. – Madá saiu apressada pelo quarto, trombando no delegado que veio falar com Ana. – O senhor me desculpe, foi sem querer!

- Uai, Madá, onde vai com essa pressa? – Aloísio a indagou.

- É voinha! Voinha Heloísa tá estranha. – Adentrou o quarto da mãe. – Mainha! Venha!

- Oxe, oxe! Que foi?! – Colocava o brinco que faltava. – Madalena, fale baixo, a polícia tá aí pra falar mais Dona Ana.

- É a vó, mainha! Voinha Heloísa não tá falando coisa com coisa! – Franziu o cenho. – Me acordou toda apressada me chamando de Morena e procurando por Tia Cacau!

- Oxente. – Riu sem humor. – Sua avó é resmungona mesmo. Deixe ela, deve ter acordado atravessada.

- Mainha, me escute, voinha não tá bem! Venha! – Madá a puxou pela mão.

- Madá, eu tenho que ajudar seu pai. – Respirou fundo.

Saiu em direção ao quarto da filha, não dando muita trela ao que dizia. Chegou em frente a Heloísa, que seguia sentada na cama da neta, dobrando os lençóis.

- Mainha, que foi que lhe deu? – Verônica a encarou. – Acordou atravessada, foi?

Percebeu a baiana encará-la de volta, sem entender quem era aquela mulher. Desceu o olhar a criança, buscando uma explicação.

- Quem é essa mulher? – Heloísa resmungou. – Cadê seu pai, Verônica?

- Mãe, eu sou a Verônica. – A segurou pelos ombros. – Essa é a Madá, sua neta.

- Deixe de bestagem. – Murmurou confusa.

- Madá, vá chamar seu voinho Henrique, diga pra vir depressa. – Viu a filha assentir. – Mainha, a senhora lembra de ter tomado algum remédio? Sua cabeça ainda dói?

A baiana ergueu as próprias mãos, percebendo que envelheceu a pele. Tocou os cabelos, que eram mais curtos agora, emaranhando alguns fios soltos de cabelo branco.

- O que foi que me aconteceu? – Heloísa fitou Verônica. – Que casa é essa aqui? Onde anda mainha? Minha irmã?

- Sua mãe faleceu tem muito tempo, mainha. E Tia Jandira está bem, na casa de Eulália. Essa casa aqui é minha. – Percebeu Heloísa lacrimejar.

- Diga uma ruindade dessa nem de brincadeira, como que a mãe da gente morre e a gente não sente? – Questionou magoada.

Não teve tempo de dizer algo, Henrique adentrou o quarto com Érico e Madalena, olhando-a preocupado.

- Meu bem, o que está sentindo? – Tentou tocar o rosto da esposa, que o esquivou.

- Não seja atrevido, homem! – Falou ofendida. – Quem tu pensa que é pra já chegar me tocando?!

- Sou teu marido, Heloísa. – Franziu o cenho.

- Coisa nenhuma! – Levantou apressada da cama. – Se saia! Só tenho um homem nessa vida, pai das minhas filhas!

- Heloísa, em que ano estamos? – Henrique a questionou.

- Não sei. – Tentava puxar da memória. – Eu não me lembro. – Levou a mão à testa. – O meu juízo tá embaralhado.

- O que está sentindo? – O médico voltou a se aproximar. – Levou a mão a cabeça, está com dor?

- Um pouco, bem no topo. – Envergonhou. – Mas, não carece ir em médico, é cansaço. – Sorriu tímida.

- Por que está cansada, Dona Heloísa? – Henrique a trouxe cauteloso até a cama novamente, sentando-a. – Sente muito esses cansaços?

- Oxente, mãe cansa, visse? Carolina anda enjoadinha, não me deixa dormir. – Achou ter encontrado o motivo. – Mas é normal da idade.

- Tudo bem, ela é bebê ainda, não é? – Deu corda, Heloísa assentiu com um sorriso contido. – E a senhora tá sentindo alguma dormência? Em seu rosto... Nas mãos?

- Não, só uma dorzinha chata na cabeça, mas isso passa. É o santo apertando a moleira, homem! – Riu. – Se avexe não.

- É melhor darmos um pulinho no hospital, Dona Heloísa, assim entendemos o motivo da sua confusão. – Henrique ajoelhou na altura dela.

- Que hospital o que, homem?! Hospital de pobre é terreiro, se saia! – Riu. – Nem as crianças eu tive em hospital, vou ir por causa de uma dorzinha besta?!

- Você não tá reconhecendo seu doutor, minha deusa? – A segurou a mão, Heloísa o fez soltá-la. – Heloísa, nós somos casados. – Mostrou a aliança. – Veja, a tua é igual a minha.

- Tu tá me ofendendo, homem... – Ele a olhou magoado.

- Henrique, Helô. Teu Henrique. – Ela negou.

- O senhor me desculpe, Doutor Henrique, mas eu já sou casada, visse? – Sorriu. – Meu marido pode não ser doutor, mas é o amor da minha vida. E amor não se troca por nada. Ele é o painho das minhas filhas, a felicidade de minha vida. Agora... Me deixe quieta, eu não tô gostando do tom dessa conversa.

Henrique levantou,  respirando fundo, Heloísa realmente não estava bem. Puxou Verônica e Érico para um canto, trouxe para si a visão de médico, pois como marido se viu completamente perdido.

- Vou precisar da ajuda de vocês, eu não vou conseguir levá-la sozinho pra um hospital. – Suspirou. – Heloísa está com confusão mental, mas está se comunicando ativamente, sem sinais de paralisia ou reflexos enrijecidos. Essa dorzinha que ela descreve na cabeça é o que me preocupa, pode ser o início de um derrame. – Verônica lacrimejou.

- Repare, essa madrugada acordei porque ela tossia muito, parecia fraca. Quando deitamos na cama, mainha tava numa frieza, Henrique, gelada por demais. – Comentou Verônica. – Mas ela parecia saber o que tinha, tanto que não me deixou lhe chamar.

- Nós precisamos levá-la a um hospital, fazer alguns exames, pode ser emocional... Ou o princípio de algum comprometimento neurológico. – Explicou o homem. – Helô tem uma certa idade, precisamos bater uma tomografia. Tenho receio dela se irritar mais com a minha pessoa e agravar a pressão que ela sente na cabeça. Precisamos mantê-la calma e alerta.

- Vou tentar ligar pra Tia Jandira, que essa consegue arrastar ela pra onde for. – Viu o padrasto assentir, saindo em busca do celular logo após.

- Minha lindeza! – Valentim avistou Heloísa. – Bom dia, voinha! – A abraçou pelo pescoço. – A senhola domiu bem? – Sorriu.

A baiana tocou o rosto daquela criança, os olhos de Valentim a fizeram sorrir. Eram lindos, tão bonitos quanto os olhos de Alberto. O sorriso do menino a fez sorrir também, tinha ternura ali, Maria sentiu amor por ele, algo maternal.

- Que coisa linda tu é. – O tocava o rosto. – Oxente... É o menino mais lindo que já vi. Tu parece Verônica! Os olhos de Verônica. De Cacau.

- Uai, puxei ao painho. – Arrumou os óculos no rosto. – Foi não?

- Foi sim. Puxou a ele. – O trouxe para o colo. – E que sorte a minha, visse?

- Valentim, deixa a voinha quieta. – Pediu Madá.

- Uai, mana, cá de quê? – Sorriu. – É a minha lindeza, e eu quelo que ela me pegue pla ela. Deixa eu e voinha de chamego!

Heloísa sorriu largo com aquela criança nos braços, parecia a realização de uma vontade forte que tinha – dar a Alberto um menino. A confusão da baiana parecia progredir mais a cada instante e a dor de cabeça seguia mansinha. Maria adoeceu. E adoeceu de espírito. Assim, da noite para o dia, perdendo o sentido de passado e presente, voltando ao tempo.

Ouviram do corredor a voz de Aloísio, que levava o delegado a saída após o depoimento de Ana. O senhor desceu as escadas ao mesmo tempo que Verônica retornava ao quarto.

- Tia Jandira não tá atendendo. – Avisou e ajoelhou diante da mãe. – Mainha, vamos pro hospital, não dá tempo de teimosia. – Pegou Valentim dela.

- Me dê ele! Esse menino é meu. – A encarou.

- Mainha, a senhora se erga, que eu vou lhe levar pro hospital nem que seja de arrasto. – Érico pegou Valentim dos braços da esposa. – Dona Heloísa, olhe pra mim. – Verônica a segurou o rosto. – Eu sou a Verônica, tua filha mais velha. Filha de Alberto mais a senhora. E painho não está aqui mais, eu preciso que a senhora me escute!

- Que algazarra é essa aqui? – Aloísio chegou a porta. – Érico, vou levar sua mãe pra casa, tá com algum problema? Que foi que deu em Heloísa? – A olhou. – Tá passando mal de novo?

Heloísa sentiu uma saudade de quase quarenta anos vir toda de uma vez. A cabeça latejou mais forte e ela levantou, se escorando em Verônica. O olhar de Aloísio, a cor daquele olhar, a lembrou de Alberto. Lembrou do quanto o amava. A baiana andou vagarosa até ele, olhando-o um tanto ressabiada, até ter coragem o bastante para tocá-lo o rosto. O advogado engoliu seco, olhando Heloísa de volta sem entender o motivo de tanto apreço em um olhar.

- O que ocê tem, Heloísa? – Aloísio buscou uma resposta no redor.

- Saudade. De você. – Ela murmurou, sorrindo assim que aqueles olhos clarinhos voltaram a fitá-la. –  E essa tava me salgando o coração.

Ele veio buscá-la, finalmente veio buscá-la. Esperou tanto tempo por isso.

A visão ficou turva e ela se sentiu em uma jangada, como quando o amado a levava junto para pescar. Quando ele parecia olhá-la como um pescador olha Mãe D’Água, cheio de admiração, de paixão. O sofrer de Heloísa se findou naquele curto segundo onde a ilusão a trouxe a imagem do homem amado. Onde ela foi realizada.

Fora a morte a enganando – rondando-a como o emblemático carcará.



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