Já passava das onze quando o jovem rei decidiu se levantar. O sol raiava feroz através do vão existente entre uma cortina de pele e outra. Era seu primeiro dia como monarca regente, tendo em vista que sua coroação havia sido na manhã antecessora àquela, acompanhada de um robusto banquete no jantar, para o agrado dos grandes nobres e burgueses que por ali habitavam.
Pensando em seu matrimônio, que estava marcado para uma semana a partir dali, ele suspirou. Casar-se-ia com uma princesa de um reino vizinho, almejando que, a partir da união, seu poderio militar ao mínimo fosse duplicado – e a quantidade já exorbitante de ouro em seu palácio também. Ambas as monarquias guerreavam contra um jovem país governado por um ambicioso imperador, que visava dominar não apenas seu território, mas todo o continente em que os três se encontravam. Parceiros na guerra poderiam tornar-se companheiros de quarto, afinal.
Melancólico, deixou que os criados o ajudassem a trajar suas vestes e calmamente caminhou até a sala do trono, lembrando-se do discurso feito na noite anterior. Fizera menção a seu falecido pai, vítima de um massacre durante um ataque ao acampamento no qual ele e seus generais planejavam quais seriam seus próximos passos em campo de batalha. Não era comum que um rei se fizesse presente em guarnições militares, mas vez ou outra o soberano gostava de mostrar apoio ao seu exército. “Aprenda, filho” o atual regente pensou consigo mesmo, agarrando-se à voz de seu antecessor, temeroso de que um dia não mais se recordaria dela “Um povo faminto pode ser controlado por um exército devoto ao rei; mas não há rei que controle um exército faminto.” Ele dizia. Durante o reinado de seu pai, o país viveu perseverante. O jovem monarca, com a coroa torta em sua cabeça, torcia para que no seu isso continuasse. Ainda que ele não dissesse em voz alta, a ameaça de um império conquistador o apavorava até o último fio dos cabelos louros-palha.
Balançou a cabeça, tentando espantar de seu interior os pensamentos ruins e voltou a imaginar os fatores que levaram à morte do antigo governante do reino. De alguma forma, alguém sabia que ele estaria lá naquela noite. Na calada da madrugada, espiões invadiram as tendas dos aliados, rapidamente executando os líderes do exército inimigo, assassinando e mutilando brutalmente soldados. Levaram consigo os sobreviventes, para torná-los servos do poderoso domínio ascendente. Os mais fortes receberiam treinamento para guerrearem contra seus próprios irmãos após tortuosas sessões de lavagem cerebral, enquanto os fracos e feridos tiveram suas línguas arrancadas e olhos furados, pois seriam vendidos como escravos. O corpo de seu pai nunca foi encontrado; tudo que acharam no meio daquele banho de sangue foi uma coroa manchada de vermelho e um dedo decepado com um anel que um dia pertencera ao rei.
Estralando os dedos – e tocando aquele mesmo anel, que agora adornava seu indicador –, ele expulsou aqueles pensamentos de sua mente e passou a se concentrar no enorme salão à sua volta. Estava vazio, porém impecavelmente organizado. Aquele seria o dia em que ele conheceria a mulher que logo se tornaria sua esposa, e a perfeição com que o ambiente havia sido preparado era eminente. Flores de todos os tipos haviam sido espalhadas pelo castelo, como uma forma de dizer “boas vindas” à princesa e à sua corte. O aroma do lugar remetia a rosas. “Seriam essas as favoritas de minha futura rainha?” Pensou ao acariciar um recém-nascido broto vermelho que vigorosamente crescia entre os espinhos do buquê colocado em um vaso ao lado do lugar no qual a moça se sentaria.
O monarca sentou-se e ordenou a abertura das portas do castelo, para que pudesse interagir com certo público. Era uma estratégia para passar uma boa impressão, já que seus súditos viviam praticamente famintos. Dias antes fora estipulado ao mensageiro real que espalhasse pela cidade que o novo rei, em toda sua bondade, permitiria a entrada de cidadãos em sua residência para a seleção de novos criados.
A notícia não tardou a repercutir pela cidade e por seus arredores, e logo os moradores tanto dali quanto de vilarejos mais próximos formaram uma fila em frente aos grandes portões de ferro que guardavam a fortaleza real. Eram homens e mulheres de todas as idades, em sua grande maioria maltrapilha, em busca de melhorias para suas miseráveis existências. Vestiam trapos esburacados, que revelavam a magreza consequente da fome que passavam todos os dias. A situação em que viviam era deplorável, o frio do inverno era impiedoso e a podridão da morte se alastrava em meio àquelas pessoas, escolhendo delicadamente sua próxima vítima. De tempos em tempos, alguns corpos precisavam ser retirados do meio da multidão, com suas vidas por um fio, nem todos aguentavam esperar enquanto sua majestade se preparava para recebê-los.
Ao primeiro ruído das altas portas, a multidão se agitou. Elas foram abertas lentamente, causando grande alvoroço. Os indivíduos se empurravam e se atropelavam, soltando xingamentos e agressões físicas. “Animais selvagens” pensou o homem sentado no trono, enquanto forçava um sorriso receptivo. A violência se alastrou velozmente pelo ambiente, jazendo mais cadáveres sobre o gélido chão lamacento. Os que caíram foram pisoteados até o óbito. O aguardo por aquele momento havia durado dias, ocasionando a perda de muitas vidas simplórias. Aquelas criaturas, que pouco se semelhavam a humanos devido à ao tamanho de suas ínfimas carnes, foram lentamente sendo levadas pela hipotermia, pneumonia ou desnutrição. O ar cheirava a doença.
O cenário em que se encontravam era desumano e precário. A maioria ali tinha seus frágeis ossos à mostra, colados à sua calejada pele. A realidade vil que os conduzia era quebrada pelo brilho em seus olhos, marca de esperança, tudo que lhes restava.
Das centenas que estavam lá, pouco mais de algumas dezenas pôde fazer seu caminho castelo adentro antes que a entrada fosse novamente bloqueada pelas enormes plataformas verticais de ferro. Muitos dos derrotados arrancariam a si próprios da existência, aquilo era sua última esperança. Os vitoriosos foram levados por um corredor, onde seriam devidamente higienizados e alimentados para a seleção de seus futuros cargos. Haveria testes de aptidão para determinar quais seriam descartados por inabilidade e quais permaneceriam para servir ao rei. Podia-se dizer que havia mais de mil pessoas presente no palácio naquela manhã; menos de dez seriam aprovados.
Com sua guarda a postos, o rei esperou que os moribundos fossem encaminhados para uma audiência. O primeiro a entrar foi um homem fino de pele escura. Suas olheiras eram profundas e as bolsas sob seus olhos indicavam que ele não dormia bem há pelo menos uma semana. Tinha ataduras em diversas partes de seu frígido tronco, provavelmente feridas oriundas da batalha que travara minutos antes. Suas costas eram arqueadas como se carregasse algum peso invisível em seus ombros cansados. Apesar de seu corpo franzino, músculos vistosos pendiam em seus braços, indicando que daria um ótimo trabalhador braçal, apesar de sua avantajada idade – deveria ter pouco mais de vinte e cinco anos.
Fez uma leve reverência para saudar sua majestade, que lhe observava com atenção, e se apresentou. Contou depressa sua história e sem delongas foi designado à estrebaria, local onde carregaria largos fardos de feno e estaria encarregado da limpeza dos estábulos. Agradeceu mediante um simples gesto com as costas e deixou o espaço.
O processo se repetiu várias vezes, entediando o núbil monarca. Conforme os novos serventes entravam e saíam, esperando receber seus empregos no palácio, ele se empenhava cada vez menos em distribui-los, expulsando idosos e doentes, dado que não lhe seriam úteis. Decidiu, também, que enviaria parte da plebe para a infantaria, como puros escudos humanos em defesa de seu verdadeiro batalhão. Pelo menos assim teriam uma razão nobre pela qual morrer.
Quando a última plebeia adentrou o cômodo, os minutos já pareciam durar horas. Ela caminhou lentamente até o centro do aposento e fitou o jovem à sua frente com desdém, calculando cada movimento. Surpreso, ele arqueou as sobrancelhas. Apesar da pobreza estampada em suas roupas, a mulher irradiava graça. Graça e desprezo, ele ressaltou a si mesmo. Seus olhos se encontraram com os da moça e ela sorriu, com um encanto inigualável, desfazendo a figura durona que tentara demonstrar minutos antes. Era uma verdadeira beldade com sua pele castanha e seus olhos azuis.
“Meu rei, meu nome é Leah e eu gostaria de presenteá-lo por sua posse ao trono com uma formosa música que ouvi em uma de minhas viagens” Sua melodiosa voz ecoou pelas paredes de forma suave. Se não fosse pelas rugas em seus olhos e o desgaste em suas mãos, seria difícil de acreditar que aquela dama vivia em meio à tamanha miséria. Após a aquiescência de seu soberano, ela reverenciou-o e pôs-se a cantar uma bela canção. Seu talento era tanto que alguns criados deixaram seus afazeres unicamente para poderem a ouvir. Seriam punidos por isso posteriormente, o rei disse para si mesmo.
A música contava a história de um menino muito pobre que havia se apaixonado por uma princesa. Ambos sabiam que aquele amor seria impossível, já que ele não passava de um mero peão e ela já estava prometida a outro. Apesar de a letra ser pouco conhecida, sua majestade sabia-a de cor. Lembrou-se de sua infância e de todas as vezes que sua ama de leite botou-o para dormir cantarolando aquela melodia, sua favorita entre todas as outras quais ele já havia sido ninado. Com o coração acalentado por uma doce nostalgia, ele respirou fundo.
A cada nota, grave ou aguda, a morena cativava-o. Houve até mesmo um momento em que ele acompanhou-a em sua cantoria, suas vozes síncronas uma à outra. Com o término da cantiga, veio um olhar de admiração por parte do homem. Seria um dos poucos que seus olhos dariam durante toda a sua breve vida. De todos os trovadores que já visitaram o palácio, nenhum o envolvera tanto em uma só canção. Incrédulo de tamanha habilidade vocal, e deliciado pelas lembranças que o invadiam por causa da música, ele optou por uma medida inesperada.
Mandou que o filho do antigo conselheiro de seu pai, rapaz que agora ocupava a posição de sua mão direita, fosse chamado. Ele era esguio e carregava no topo de sua cabeça uma peruca grisalha e fajuta. Era novo, beirando a adolescência, entretanto seus olhos amarelos, como os de um felino, revelavam inteligência e avidez. Tornar-se-ia alguém que seria temido, e não amado. Apresentou-se como Preminger e pôs-se às ordens.
A moça que ainda estava na sala olhava para o jovem rapaz, despretensiosa, buscando compreender o motivo daquela súbita convocação. Sentiu um arrepio subir por sua espinha quando ele lançou seus olhos de serpente sobre ela.
“Ordeno que todos os músicos de meu casamento sejam dispensados” O mentor se assustou com tal pedido e engoliu em seco. Faltavam apenas sete dias para o evento e uma brusca mudança daquelas certamente não seria bem vista. “Encontre um quarto para ela no castelo, de preferência próximo ao meu, com o máximo de conforto que possamos lhe dar, pois decreto que agora sua moradia é neste castelo.” O rei encarou-a antes de continuar “Também cantará em meu casamento e fará parte das damas de minha rainha” E então exibiu seus dentes tortos em um sorriso sincero.
O coração dela encheu-se de animação, seria o maior feito de sua pequena carreira como musicista, e agora moraria ali, em meio a todo aquele luxo. Beliscou-se delicada e discretamente para certificar-se de que não estava sonhando.
Preminger cravou seu olhar nela como uma víbora se preparando para dar o bote, contudo apenas abaixou a cabeça, segurando sua cabeleira falsa para mantê-la no lugar, concordou e se retirou, argumentando que iria tratar da troca o mais rápido possível.
O soberano bateu palmas e uma fila de mulheres muito bem uniformizada postou-se em frente a ele. Reverenciaram-no e esperaram por alguma ordem.
“Senhorita Leah, escolha algumas e suba com elas, tenho certeza que seus aposentos já estarão apropriadamente acomodados para a vossa ocupação. Por favor, compareça em meu quarto essa noite para que eu possa ouvir mais algumas canções.” Cética de qualquer maldade na fala do monarca ela assentiu, selecionou entre as senhoras as de aparência mais empobrecida e saiu.
Momentos após a retirada de Leah, o conselheiro real retornou informando a chegada da princesa Genevieve com seus cortesãos. A partir dali, o tempo voou, e, meses depois, o reino se encheu de contentamento com o nascimento de uma nova princesa.
Foi determinado pela rainha que o nome de sua filha fosse Anneliese, que significava “cheia de graça”, pois ela tinha fé que sua primogênita seria tão graciosa como uma rosa, seu tipo favorito de flor.
Porém, no mesmo dia do nascimento da herdeira do trono, nasceram também duas bastardas de seu pai. O primeiro bebê fora um natimorto, porém o segundo era forte e saudável e recebeu o nome Erika, que tinha o significado de “eterna soberana”, como uma afronta à família real.
Preminger fora o primeiro a tomar conhecimento da existência dos filhos ilegítimos do rei no castelo e logo passou a informação para sua rainha, a quem quase se tornaria fiel, que ficou furiosa ao descobrir a infidelidade de seu marido. Contudo, ele não sabia que havia sido dado luz a gêmeas, e, portanto, passou à frente a informação de que havia apenas um recém-nascido.
Ciente de quais seriam os próximos passos de sua governante, Leah rapidamente arquitetou um plano para enviar sua filha para a cidade, onde poderia crescer com segurança e tornar-se uma encantadora mulher. Não se importava em morrer se pudesse manter seu rebento em segurança, mesmo que ela nunca soubesse que o sangue real corria em suas veias – Leah torcia para que ela nunca o descobrisse. Chamou sua criada de confiança, uma velha senhora chamada Margareth, e designou-a para cuidar da pequena. Disse-lhe também para sair em busca de novos tecidos e leva-la para o ateliê da madame Carp, com algumas moedas de ouro e uma mensagem escrita à mão.
Com zelo, a serviçal seguiu cada palavra dada por sua senhora à risca e levou a menina para fora dos muros do palácio. Não tinha conhecimento de quem era o pai da criança, todavia aquilo também não lhe interessava, pois não devia passar de um modesto rapaz que caíra de amores pela bela morena de olhos claros.
Genevieve, considerada por muitos justa e amável, decretou que sua dama de companhia fosse executada, mas não antes de ter de assistir ao afogamento de seu próprio bebÊ. Ficou surpresa quando percebeu que o corpinho já jazia sem vida ao lado do corpo adormecido de sua mãe antes mesmo que ela pudesse enviá-los à masmorra. Ainda assim, em três dias, Leah foi enviada para a forca e se tornou a primeira e única vítima de uma execução ordenada pela rainha.
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