Defteros não ficava restrito ao vulcão da Ilha. Vez ou outra, descia até o vilarejo – por mais que o achasse deveras desinteressante – apenas para passar o tempo. É claro, ninguém nunca o notava porque sabia ser furtivo. E num desses dias, parou para ouvir o que um poeta cantava. Dizia ele ser a história de como a Ilha Kanon fora criada.
Foi um tempo que o tempo não esquece
Que os trovões eram roucos de se ouvir
Todo o céu começou a se abrir
Numa fenda de fogo que aparece
O poeta inicia a sua prece,
Ponteando em cordas e lamentos.
Escrevendo seus novos mandamentos,
Na fronteira de um mundo alucinado.
Cavalgando em martelo agalopado,
E viajando com loucos pensamentos
Interessante... um cenário apocalíptico que combinava bem com aquela ilha. Aquele sabia bem inventar uma história. Continuou a ouvir:
Sete botas pisaram no telhado,
Sete léguas comeram-se assim
Sete quedas de lava e de marfim
Sete copos de sangue derramado.
Sete facas de fio amolado,
Sete olhos atentos encerrei
Sete vezes eu me ajoelhei
Na presença de um ser iluminado.
Defteros imaginou, por um instante, se ele como o demônio que era se ajoelharia diante de algum anjo...
Como um cego fiquei tão ofuscado
Ante o brilho dos olhos que olhei
Era pena que ninguém parasse para ouvir o poeta. E ele, somo se soubesse disso, cantava:
Pode ser que ninguém me compreenda
Quando digo que sou visionário
Pode a Bíblia ser um dicionário?
Pode tudo ser uma refazenda?
Dizem que os poetas são meio loucos. E talvez nesse caso fosse verdade. Mas não podia negar que o rapaz tinha talento.
Mas a mente talvez não me atenda
Se eu quiser novamente retornar
Para um mundo de leis me obrigar
A lutar pelo erro do engano
Eu prefiro um galope soberano
À loucura do mundo me entregar
Reparou na cor fosca dos olhos. Cego e louco. Como um bom poeta deve ser.
Defteros se distanciou com o fim do poema. Mas não podia deixar de pensar em seus últimos versos. Talvez ele, demônio que fosse, não estivesse muito distante daquele rapaz. Afinal, também não queria se entregar ao mundo. Prefere continuar soberano, naquele canto esquecido. Que o mundo não viesse busca-lo...
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