1. Spirit Fanfics >
  2. Cãopitalista >
  3. Capítulo Único

História Cãopitalista - Capítulo Único


Escrita por: Laranja_Laranjinha

Notas do Autor


Era pra ser uma história curtinha, mas eu me empolguei.

Aviso de gatilho: capitalismo e suas mazelas, sintomas depressivos.

Capítulo 1 - Capítulo Único


1983

Bairro do Limoeiro

    Ainda estava escuro quando o rádio relógio o despertou naquela manhã. Manfredo permaneceu deitado na cama, reunindo forças para se levantar enquanto o locutor exclamava as mesmas frases de sempre, impelindo o ouvinte a iniciar o dia. “Sorria! Uma bela semana te espera”, foi o que a voz carregada de estática disse naquela manhã. Manfredo bufou. Não bastava ter que acordar de madrugada, ele ainda tinha que fazer isso sorrindo. Quando colocou os pés no chão, não havia alegria alguma dentro de si, apenas cansaço, desânimo e ódio. Já havia meses que ele se sentia assim. O fato de ser segunda-feira também não ajudava em nada, mas fazer o quê? 


É o pau, é a pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba no campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o matita-pereira

 

Vagarosamente, ele se arrastou até a cozinha. Não havia muita coisa nos armários, mas ultimamente aquilo não era mais um problema, já que ele mal conseguia comer, principalmente de manhã. Manfredo era preenchido por uma onda de náusea sempre que pensava em ter que ir trabalhar. O café preto que ele tomava incontáveis vezes ao dia também não ajudava em nada, mas fazer o quê?


É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto um desgosto, é um pouco sozinho

 

Ele acendeu um cigarro enquanto aguardava o ônibus no ponto. O trajeto até o seu trabalho durava quase duas horas. Os passageiros iam espremidos uns em cima dos outros, lutando por um pouco de conforto durante a viagem.


É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama

 

Chovia quando ele finalmente chegou ao estúdio. Parte dele queria procurar uma maneira de entrar escondido, sem que os outros funcionários notassem sua chegada. A outra parte não tinha forças sequer para dar a volta e entrar pelos fundos. Além disso, ele não poderia se esconder o dia todo. O jeito era se agarrar ao pouco de dignidade que ainda lhe restava e cruzar o hall de entrada com a cabeça erguida. Afinal, ele era um cão ou um rato?

Bom, independentemente do que ele fosse, Manfredo se sentiu como um camundongo indefeso assim que os olhares de seus colegas caíram sobre si. Antes que ele pudesse alcançar a porta da sua sala, já estava rodeado por aqueles olhos ansiosos, bocas famintas e ouvidos aguçados. Será que eles conseguiam farejar o seu medo?

— Bom dia, seu Manfredo! — cumprimentou Duque com um sorriso amarelo. — Que bom ver o senhor. A gente tava precisando dar uma palavrinha com você.

Manfredo conteve um suspiro. — Bom dia, Duque. Bom dia, pessoal — disse, se dirigindo aos outros. — Olha, se for pra falar sobre o pagamento, a resposta é a mesma da semana passada: teve um atraso, mas a situação está sendo resolvida, ok?

— Me desculpa, seu Manfredo, mas a gente já tá há quase dois meses sem receber! — Fifi ganiu. — Não dá pra continuar assim, eu tô com um monte de conta atrasada, perigando ter a luz cortada ou até mesmo ficar sem comer! Não tem previsão de quando vai cair o pagamento?

— É como eu falei, Fifi — Manfredo tirou o boné molhado da cabeça. A última coisa de que ele precisava era pegar um resfriado. — Em breve tudo vai ser acertado, pode ficar tranquila.

— Mas em breve quando? — ela insistiu. — Eu preciso de pelo menos uma data pra poder negociar o aluguel com o meu locador.

— Olha, eu não consigo te dar uma data exata. Por que você não pergunta pro seu Bidu?

Bugu riu com escárnio. — Claro. Se ao menos aquele almofadinha chegasse na hora, a gente até poderia tentar falar com ele agora.

— O que nós estamos querendo dizer — Duque acrescentou com um tom conciliador, — é que a gente prefere falar com você, seu Manfredo, que é nosso amigo e sempre nos ajudou tanto. E a gente sabe que você é o mais próximo do seu Bidu, então seria mais fácil se você falasse com ele em nome da equipe toda, não é?

— Ô pessoal, eu sou apenas o contrarregra — Manfredo abriu os braços, exasperado. — Se dependesse de mim, todo mundo saía daqui com o dinheiro na mão no dia certinho. Aliás, o meu salário também tá atrasado igual ao de vocês. Nem sei como vou fazer pra pagar a condução pra vir pra cá a partir da semana que vem. Não tá fácil pra ninguém, mas vamos ter um pouco mais de paciência.

— Pois é, Manfredo. Enquanto você tá juntando moedinha pro busão, o patrão chega bem descansado, confortável e seco no carrão importado dele. E na hora que ele quer, é óbvio. Você acha isso certo?

O que Bugu disse era a mais pura verdade. Mas o que Manfredo poderia fazer? Diacho. Ele todo ensopado, sem poder se secar e ainda tendo que responder pelas merdas dos outros. — Não importa o que eu acho. Só que não é justo vocês ficarem me cobrando, sendo que essas coisas não dependem de mim.

— Também não é justo a gente ficar sem o nosso dinheiro desde o começo do ano, sendo que batemos o ponto todos os dias no horário e muitas vezes saímos mais tarde ou ficamos sem almoçar pra compensar o atraso do chefe — Fifi rebateu.

— Isso sem contar o jeito que ele nos trata, como se a gente fosse uns vira-latas — Bugu acrescentou, quase cuspindo a última palavra.

Manfredo deu de ombros. — Quem não estiver satisfeito, pode sair. E se encontrarem algo melhor, me avisem que eu vou junto.


É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira

 

Como ninguém havia dito mais nada, Manfredo retomou a caminhada em direção à sua sala.

— Seu Manfredo, posso só perguntar uma coisa? — ele foi interrompido novamente. Não era necessário se virar para saber quem era o dono daquela voz rouca, mas Manfredo lançou um olhar por cima do ombro mesmo assim.

— Pode falar, Rúfius.

— Eu só queria saber o que é que o senhor ganha pra defender tão bem o filé do patrão — a voz dele agora era quase um rosnado. — Será que sobra um ossinho pra você que não sobra pra gente?

— E-eu não… Não é isso que-

— Ah, desculpa. Acho que eu me enganei.


É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé

 

Atônito, Manfredo finalmente pôde se trancar dentro de sua sala, que estava entulhada de trabalho, por sinal. Figurinos para organizar, roteiros para revisar, cenários para reaproveitar, e mais uma porrada de outras coisas. Ele sentiu uma pontada na barriga. Sabia que não conseguiria fazer sua pausa do almoço, para variar. O tempo que ele perdeu naquela conversa com a equipe também não ajudava em nada, mas fazer o quê?

“Fazer o quê?”, ele pensou, enquanto acendia outro cigarro e sentava-se em sua cadeira desgastada. “Oras, eu não vou fazer é nada. Não tô com cabeça pra fazer mais nada.”

As palavras de Bugu, Rúfius, Fifi e Duque repetiam-se em sua mente. Era verdade. Tudo verdade. Eles tinham que fazer alguma coisa, mas o quê? Manfredo não conseguia pensar direito. O tique-taque do relógio martelava sua cabeça, lembrando que o tempo estava passando. Logo o chefe estaria aí, e ele ia levar um esporro daqueles por ainda não ter feito nada.

“Pois ele pode berrar, xingar, espernear e se morder todinho, não tô nem aí”.

Como esperado, a reação de Bidu ao chegar no estúdio e ver todos os seus funcionários ociosos não foi muito bonita.

— MAS QUE CACHORRADA É ESSA? — ele bradou. — Não é por que eu me atrasei um pouco que vocês têm o direito de ficar nesse relaxo todo, não! Até onde eu sei, tem muito trabalho pra fazer aqui, vocês não acham?

Uns procuravam se esconder da fúria do chefe, ao passo que outros tentavam se explicar.

— É que o Manfre-

— MANFREDO! CADÊ O MANFREDO?

— Na sala dele…

Bidu adentrou o cômodo feito um furacão, exigindo explicações em meio a uma série de gritos e palavrões. Impassível, Manfredo entregava respostas monossilábicas. “Sim, senhor.” “Não, senhor.” “Desculpe, senhor.”

Quando se deu por satisfeito, Bidu deixou a sala da mesma maneira que havia entrado. Um silêncio esmagador dominava o hall, onde os funcionários observavam tudo com os olhos arregalados.

— Por que ainda estão parados aí? Vamos, de volta ao trabalho! — Bidu ordenou. Num instante, o estúdio voltou a se movimentar.

Pelo resto do dia, Manfredo cumpriu suas obrigações maquinalmente, sem dar qualquer atenção ao que estava fazendo. Seus pensamentos estavam voltados para algo mais importante. Um plano de vingança.


É um estepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É um pingo pingando, é uma conta, é um ponto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando

 

Não foi difícil convencer os outros a entrar no esquema. Em dois dias, eles arquitetaram um plano. Todos sabiam dos podres de Bidu. Envolvimento com tráfico, lavagem de dinheiro, jogos de azar. Típico de um cidadão de bem. Ele se gabava de ser o maioral, mas na realidade era bem desleixado. Reunir as provas foi moleza. A parte da chantagem também foi melhor do que eles esperavam. Quem diria que o valentão ficaria tão mansinho quando colocado contra a parede? É claro que foi preciso mais do que algumas ameaças para persuadir o playboy a transferir os títulos da empresa para os funcionários, mas o gancho de direita de Duque e o soco inglês de Fifi faziam argumentos bem convincentes.

Firmado o acordo, eles tinham só mais um probleminha para resolver. Deixar Bidu ir embora não era uma opção, por mais que ele insistisse que não iria contar nada a ninguém. Felizmente, alguns antigos parceiros de negócios estavam ansiosos para fazer um ajuste de contas com o empreendedor.

— É, parece que você cavou sua própria cova, amigo.


É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

 

Manfredo já conseguia ouvir a voz do locutor no rádio relógio, anunciando as notícias na manhã seguinte. Imaginava que seria algo como: “Em 10 de março de 1983, Bidu foi morto a tiros nas ruas do Brasil por um cartel de drogas rival”.


É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração


Notas Finais


Sim, eu odeio o Bidu
Também odeio o capitalismo


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...