Confesso que é um pouco estranho para mim ver a realeza andando por aí de uma forma tão despreocupada- disse Leone, enquanto Astra enchia uma taça de vinho- Venho de um lugar onde qualquer passo em falso resulta em uma facada nas costas, então... Você ser uma princesa e estar tocando harpa em um bar é uma coisa estranha.
-Eu sei me cuidar- disse Astra- E eu também sabia que você estaria naquele lugar. Sabia que alguém importante estaria lá naquele dia, e só precisei procurar com um pouco mais de atenção.
-Sabia?
-Eu tenho um dom- Astra disse aquilo de uma forma tão abrupta que Leone demorou alguns instantes para entender- Consigo enxergar alguns fragmentos do futuro. E vi que você estaria na Taverna. Uma mulher alta, bonita e de cabelos cor de ouro- na outra mesa, Chelsea as encarou com curiosidade. Ainda não eram seis da tarde, e o bar estava incrivelmente cheio de pessoas. Alguns navios mercantes haviam chegado , e o cheiro de especiarias temperava o ar.
Leone sorriu com o elogio.
-Me acha bonita?- Astra limitou-se a sorrir.
Astra sorriu de novo, e então afastou uma mecha do cabelo escuro com o indicador e a colocou atrás de uma das orelhas, a princesa não disse nada, mas a forma como ela olhava para Leone falava por si só. Astra parecia ser uma pessoa simpática que raramente escondia o que sentia, os seus olhos tinham um leve toque de dourado sobre o castanho, como se os deuses houvessem os pincelado com o mais puro ouro, e encaravam Leone com uma atenção e brilho que eram quase hipnotizantes.
-Mas eu não posso ver todas as coisas, assim como não posso ver o paradeiro de Dorothea, eu já tentei, mas ainda não desenvolvi meu dom o suficiente para encontra-la quando ela se esconde- ela suspirou, frustrada, os dedos tamborilavam a mesa- Tudo isso seria muito mais fácil se eu tivesse me esforçado mais.
-Não se cobre tanto- replicou Leone, sorvendo um gole de vinho- Você possui uma Tengu?
-Tengu?- Astra balançou a cabeça negativamente- A única arma imperial aqui é a que meu irmão carrega.
-Conheço a arma. Um de meus companheiros quase morreu por ela.
-Eu não possuo uma coisa dessas, o que eu tenho é algo diferente. A linhagem de seu imperador criou as armas imperiais para conquistar a paz em seu reino, o senhor das terras do Leste, meu ancestral, buscou por muito tempo o segredo da criação desses artefatos, mas nunca conseguiu, em vez disso criou seres, ‘’armas vivas’’ através da bioengenharia. Ele criou homens a partir da união genética entre humanos e bestas, e criou guerreiros que não eram nem humanos, nem animais, e essa é a história da minha família. Nosso ancestral tinha tanto medo da tragédia e do massacre que as Armas Imperiais eram capazes de causar, que sacrificou o bem estar de todos os filhos, e dos filhos depois deles. Um antigo usuário de Incursio quase destruiu Albion no passado, então eu penso que o medo dele era justificável... Com o passar dos anos, o sangue de minha família foi sendo passado adiante, sendo refinado através de casamento com pessoas com qualidades específicas, e se unindo ao sangue de outros humanos exemplares, os Huron tornaram-se mais ferozes, mas alguns ficavam insanos com o passar do tempo, como animais, outros que não eram tão fortes, conseguiam desenvolver seus dons com facilidade. Pode-se dizer que eu não sou humana... Não totalmente, eu tenho o dom da visão, ou a maldição, se quiser chamar assim, porque tenho fortes dores de cabeça constantemente. Dores fortes mesmo.
-Sinto muito por isso- Leone arrotou, e naquele momento imaginou se deveria cortar os litros de álcool que ingeria todos os dias, mas Astra pareceu não se importar- Perdoe-me, princesa.
Astra ignorou, Leone percebeu que os olhos daquela mulher pareciam brilhar em tons que eram impossíveis de descrever ou guardar na memória, enquanto ela encarava o seu irmão. Ela parecia triste, completamente desolada por algo que Leone não compreendia.
-As vezes ver o futuro é tão ruim- ela continuou- Eu vi algo terrível quando abraçei meu irmão... Uma sombra que se erguia acima da cidade... Mortos se espalhando pelo chão da cidade enquanto as ruas vertiam sangue negro... Acho que um desastre está para acontecer...
Leone parou de beber e tocou os dedos de Astra com os seus, e a princesa pareceu se assustar por alguns segundos e os pelos finos em seu braço se eriçaram.
-Já sabia o motivo da minha vinda, então?
-Você veio até aqui por nós, mas isso eu não precisei de poder algum para saber. Chelsea me disse... Najenda tem agora o povo do norte ao lado dela, e precisa da minha ajuda para aumentar o exército, e por isso as enviou.
-Na mosca- disse Leone.
-Podemos falar disso outra hora?- Astra fez uma careta- Não estou em condições de falar sobre guerra agora, não quando o país de meu país está uma bagunça.
-Sem problemas, temos tempo, temos todo o tempo do mundo. Uma família que foi modificada geneticamente e que gerou crianças com dores enlouquecedoras. Mesmo em meio a uma guerra, isso me parece crueldade.
-Não posso falar por meus antepassados, mas... Se eu pudesse nascer uma pessoa comum e me livrar das dores eu faria, até hoje esse dom só me trouxe dor, mas isso são divagações. No final das contas, ninguém escolhe a ocasião de seu nascimento, não é?
-Ninguém escolhe coisa alguma- disse Leone- A vida é um grande acaso, seguido de pequenas coincidências.
Astra riu, seus dedos ainda estavam se tocando quando Astra se afastou lentamente.
-Pode ter razão afinal, podemos dizer que nosso encontro é uma grande coincidência?
-Uma boa coincidência- disse Leone.
Astra abriu a boca para dizer qualquer coisa quando sentiu uma dor poderosa quase lhe despedaçar o crânio, ela se inclinou, com ambas as mãos nas têmporas, Uthred se ergueu para ajuda-la em um salto, e a abraçou contra o próprio corpo. Leone também se ergueu, e instintivamente ativou seus poderes, e enquanto Astra retomava a postura, Leone ouviu gritos distantes, um pedido de ajuda.
-É Dorothea- disse Astra- Sinto que ela está perto daqui.
-Não pode ser, dois ataques no mesmo dia- Uthred resmungou- Isso é tolice.
Leone não esperou a confirmação do principe, e simplesmente saiu correndo pela porta.
Dorothea estava parada, em pé na praça da cidade. Assemelhava-se a uma jovem de vinte anos, pequena, esguia e seus olhos azuis brilhavam contra a parca luz do entardecer como duas pedras de safira. Os cabelos eram bem arrumados, tão loiros que pareciam quase brancos, mas o que mais deixou Leone surpresa foi o seu sorriso, de uma falsa aparência inocente e manchado pela malícia, da boca projetavam-se duas presas brancas manchadas pelo rubro do sangue de uma mulher.
-Você- Leone parou a alguns metros de distância de Dorothea, e assustou-se quando ela atirou a mulher que se alimentava com apenas uma das mãos- Desgraçada.
Uthred chegou logo depois, estava vestido com uma roupa simples de couro, e carregava a espada em seu cinto. Ele sacou o sabre, apontou-o para Dorothea, a lâmina cor de prata brilhou. As suas costas, um grupo de seis soldados também sacou as armas.
-A manhã promete ser bonita hoje, não acha? Uthred Huron? Seria uma pena macula-la com sangue da realeza.
-Em nome do rei Auron- disse Uthred- Eu a sentencio a morte pelos assassinatos de...
Dorothea a calou com um movimento gestual.
-Vai citar o nome de todos aqueles que eu matei aqui?- sorriu- Podemos pular essa parte? Digamos que vocês estão atrapalhando meus estudos e eu preciso lhes dar um recado- os olhos de Dorothea se ascenderam em um brilho doentio- Quebrando os ossos do corpo de vocês. Meu empregador já me repreendeu por matar alguns guardas e chamar a atenção, mas ele não vai me repreender por lhe entregar duas Tengus.
-Quanta presunção- disse Leone, preparando-se para atacar- Eu quebrarei cada osso de seu corpo.
Dorothea riu.
-Sinta-se a vontade para tentar, mas não vai me fazer recuar um único passo.
Leone sorriu.
-Deixe-a comigo- falou Leone, dando um passo a frente- Vou derruba-la em um só golpe.
-Tome cuidado, Leone.
-Não precisa se preocupar, príncipe.
Leone avançou, invocou toda a força de sua Tengu e deferiu um soco diretamente no rosto da adversária, aquele golpe era forte o bastante para nocautear um dragão, e se acertasse um humano diretamente com certeza o mataria. Dorothea não se moveu em uma tentativa de se esquivar da investida, simplesmente aparou o golpe com uma de suas mãos. Leone sentiu os ossos de seu punho estralarem, e era como se tivesse atingido uma parede de aço, ouviu-se um estrondo com o impacto, e Dorothea fechou seus dedos sobre o punho de Leone, para então aperta-lo com tanta força que Leone sentiu o punho se quebrar e gritou de dor, então Dorothea a ergueu segurando-a com força pelo braço e a atirou contra o chão. Uma pequena cratera se abriu onde Leone foi arremessada e com o pouco de força que ainda lhe restava, Leone tentou se levantar, mas foi atingida no rosto por um chute tão poderoso que a arremessou para o chão outra vez, Leone sentiu o corpo vacilar, e então uma dor aguda rasgou seu corpo quando Dorothea a cravou no chão com uma espada.
Dorothea suspirou, olhou para a sua bota. Estava manchada de sangue. Provou.
A mulher ainda estava em pé quando o primeiro guarda atacou, a espada avançou em um arco violento que atingiu o vazio, e então Dorothea revidou com um golpe no peito do homem, que partiu a armadura como se fosse feita de vidro, despedaçando as costelas. O homem caiu, morto, e antes que seu corpo tocasse o chão, Dorothea já havia se atirado sobre outro guarda, lhe rasgando a garganta com suas presas, o sangue jorrou como uma fonte, e antes que qualquer outro guarda pudesse se impor ao choque de ver uma cena dantesca como aquela, Dorothea assassinou um terceiro com um soco tão violento que a mandíbula foi arrancada pelo impacto.
Ela se ergueu, coberta de sangue, Leone tentava se erguer do chão, enquanto observava os guardas restantes serem despedaçados um a um pela adversária. Rápida, forte e violenta, Dorothea arremessou o último guarda ao chão e se aprumou para lhe ceifar a vida, quando a espada de Uthred a impediu.
Uthred se colocou entre ambos, empunhou o sabre e estocou, o golpe foi tão rápido que Dorothea não teve tempo de fazer mais nada além de parar a arma com sua própria mão antes dela atingir o seu rosto, era afiada, e um fino fio de sangue escorreu do punho fechado, e no momento seguinte os dedos de sua mão direita desapareceram no ar em uma espiral de sangue, Dorothea gritou e recuou, segurando a mão decepada. Ela olhou para o chão, a procura dos dedos arrancados, mas não havia coisa alguma. A lâmina da espada brilhava.
-Maldita espada- ela resmungou, e então sorriu, como se o ferimento não fosse sério, e aparentemente não era, pois ela ergueu a mão e lhes mostrou que as falanges decepadas já começavam a se curar- Por sorte, ainda tenho energia de sobra. Acabei de me alimentar.
-Desgraçada- Leone se colocou em pé outra vez, o rosto imundo de sangue- Vou acabar com você!
-Sou uma alquimista- respondeu ela, andando lentamente na direção da loira- Meu corpo é mais resistente do que os demais, então, por favor- Uthred a atacou novamente, mas foi atirado para o lado com apenas um chute, Dorothea havia se movido mais rápido do que deveria ser possível. Leone avançou para cima de Dorothea, aproveitando-se da oportunidade que Uthred lhe concedeu e atingiu-a com força no rosto, Dorothea cambaleou, mas então revidou com um golpe diretamente no estômago de Leone, Leone o aparou e revidou atingindo-a novamente no rosto, sentiu o nariz da adversária quebrar e explodir em sangue. Dorothea cuspiu um dente - Chega!- rugiu, e então ela sacou um pequeno frasco de vidro e o atirou em direção a Leone, quando o frasco se partiu, Leone foi banhada por um liquido pegajoso, e sentiu todos os músculos de seu corpo se enrijecerem- Paralisia- continuou Dorothea- Admito que você é bem forte. Mas a força física não é meu único triunfo. Por favor, não se enganem pela minha aparência frágil. Vão descobrir dolosamente que a verdade é o oposto, agora- Aproximou-se de Uthred, e o prendeu ao chão, Leone tentou se mover, mas seu corpo estava paralisado, e ela mal podia falar- Realeza.
Uthred tentou se mover, mas não era possível. Dorothea era muito forte.
-Dorothea...
-Por favor, não me odeie- Dorothea pisou com força no braço de Uthred, e o som dos ossos se partindo se elevou junto aos gritos de dor do príncipe- Você é tão lindo, o cheiro de seu corpo... É tão... Inebriante. Imagino qual o sabor de seu sangue... Desespero melhora muito o gosto, sabia?- lhe dirigiu um sorriso sugestivo- Se vier comigo por livre vontade, posso lhe mostrar prazeres que jamais imaginou sentir.
-Jamais- disse Uthred, e apesar da dor, a encarava diretamente nos olhos- Seu demônio!
-Demônio?- Dorothea fez uma careta- Por que todos me chamam dessa forma? Maniqueísmo é uma coisa tão ultrapassada. Vilões e heróis, santos e pecadores, anjos e demônios... Em vez de blasfemar, poderia me perguntar o motivo de tudo isso, não é isso o que os heróis fazem?
-Por que está fazendo tudo isso?- disse Leone, não sabia se seria tão fácil conseguir informações daquela mulher, mas não custava tentar.
-Estou terminando uma pesquisa- Leone ficou surpresa ao vê-la responder a pergunta de forma tão natural.
-Você... - a pressão do corpo de Dorothea sobre o de Uthred o deixava sem ar- Está matando pessoas!
-Não me importo em pavimentar meu caminho com corpos- aproximou-se do ouvido de Uthred, a respiração de Dorothea era quente- A vida eterna que busco está acima de tais trivialidades.
Então Dorothea se levantou, deixando Uthred, quase esmagado, deitado no chão, Uthred se levantou, com o braço destroçado, mas mesmo assim sacou uma faca.
-Que corajoso- Dorothea sorriu- Devo quebrar o outro braço, também?
Leone tentava sair do lugar, mas era quase impossível de se respirar, quanto mais reagir de alguma forma, os músculos se contraíam de uma forma extremamente dolorosa, quase como se houvessem nós entre as fibras, e água quente correndo no lugar de seu sangue.
-Venha comigo- sugeriu Dorothea- Ouvi que a família real de Albion é formada por criaturas deformadas pelos experimentos genéticos de outrora... Talvez em seu sangue estejam as respostas que procuro. Venha comigo, e juro que a matança vai cessar.
-Eu juro que vou mata-la...- murmurou Uthred, olhando para a espada no chão.
-Vai, com certeza vai. Mas não hoje- com um salto, Dorothea ficou ao lado de Leone, e com apenas um movimento, cortou o pescoço da adversária, o sangue jorrou, pouco, porque Leone se esforçava ao máximo para frear o sangramento, mas com a paralisia, era quase impossível utilizar a Tengu com destreza.
-Leone!
- Lhe farei escolher, principe, entre me atacar com um punhal patético e me obrigar a parti-lo em dois, ou- apanhou um frasco- Salvar a vida de Leone. Veja, sei o poder daquela Tengu, e sei que se pegar aquela espada poderia me matar com facilidade, mas é capaz de fazer isso antes dela morrer pela perda de sangue? No momento ela precisa escolher entre deter a toxina, que está danificando cada órgão em seu corpo, ou curar o ferimento que acabei de fazer... Leonel é uma das Tengus com maior capacidade de regeneração, mas até ela tem limites- Dorothea cravou os dedos contra o abdêmem de Leone, e suas unhas se enterraram na carne, Leone grunhiu de dor e se encolheu.
Dorothea poderia ter simplesmente matado o principe ali, pensou Leone, mas em vez de ataca-lo ela decidiu usa-la como refém. Porque ela precisava de Uthred tão desesperadamente?
- Logo, o veneno irá fazer o coração dela parar.
Uthred rangeu os dentes, então respirou fundo, e o punhal simplesmente escorregou de seus dedos.
-Dê-me o frasco.
-Não dessa forma. De joelhos. Não me faça mata-la e então matar você, matar a realeza de Albion me daria problemas demais, entretanto, o faria com prazer.
-Porque está fazendo isso?- questionou Uthred.
-Quero lhe dar um aviso, não... Uma sentença, sei que logo as forças militares da cidade virão atrás de vocês, mas lhes digo que, se voltarem a me procurar, eu o mato- e ao dizer isso, falava justamente para Leone- E eu virei atrás da irmã dele e a capturarei, deixarei os dois na mesma sala e deixarei a pobre Astra Huron ver o corpo dele apodrecer dia após dia. Então, de joelhos, ou sua amiga ali morrerá.
Uthred caiu sobre um joelho, o ódio que havia em seus olhos poderia queimar Dorothea viva, se isso fosse possível.
-Dorothea...
-Senhora Dorothea- repreendeu- E inicie a frase com ‘’Por favor’’.
-Por favor... Senhora Dorothea... Dê-me o antidoto.
-Uthred aos meus pés- Dorothea sorriu- Confesso que isso me excita mais do que deveria. Conheci uma mulher outrora, uma general imperial, e ela tinha uma mania estranha de fazer os inimigos lamberem suas botas. Lamba minha bota, e eu lhe darei o frasco.
Uthred olhou para Leone, os olhos da guerreira estavam arregalados.
-Apresse-se. Sua dignidade pela vida de sua amiga, não é uma troca justa?
Uthred respirou fundo e se moveu, rápido como um lince. Mesmo ferido e com um braço a menos, ainda era um experiente guerreiro. Havia aturado aquelas palavras hostis até estar perto o suficiente de sua espada, e com a mão que lhe restava a apanhou do chão e se atirou na direção de Dorothea. Assustada, a vampira apenas teve tempo de erguer os braços para se proteger, e o frasco de antídoto caiu de seus dedos, a lâmina de Cortana brilhou como um relâmpago, mas antes que fosse capaz de atingir o alvo, Uthred desapareceu no ar em meio a um clarão de luz, e Dorothea desapareceu da mesma forma logo em seguida.
A lança a atingiu na cabeça com força.
As lembranças do passado eram turvas em sua mente, lembrava-se de alguns dias da infância, mas as memórias mais recentes eram como fumaça. Tudo o que se lembrava era de um cavaleiro de armadura cinzenta, uma lança cor de sangue, e então do vazio. Seu corpo havia sido arremessado com força, mas, de alguma forma, Cosmina ainda mantinha-se agarrada a vida.
Até que ela a encontrou.
Era uma jovem mulher, de cabelos cor de ouro e olhos azuis, ela a levou até uma cabana, a limpou, e curou seus ferimentos – até os mais sérios- Com artes que Cosmina sequer era capaz de entender.
''Seja o que for que a atingiu, praticamente esfarelou o crânio. Posso dar um jeito, mas o dano pode ter sido irreversível''- disse a mulher.
''Meu pai gostava muito dela''- disse outra voz- ''É uma pena que ela esteja perdida.''
''Eu nunca disse que estava. Mas o que resta de nós quando nossas memórias vão embora?''
Cosmina despertou completamente alguns dias depois. Acordou sozinha na cabana, e o som de sua voz se elevando em um grito doloroso foi a primeira coisa que ouviu naquele dia. Ela levou a mão até as têmporas, sentindo o relevo de uma cicatriz. A cabeça girava, o peito doía, e ela era incapaz de se lembrar de qualquer coisa dizia respeito a sua identidade.
Um homem entrou correndo na cabana, e parou assim que a viu em pé.
-Você acordou!- ele vestia-se com um manto vermelho. Cosmina sabia o que aquilo significava, mas não era capaz de formular qualquer pensamento sobre aquilo.
-Quem sou eu?- ela murmurou, e sua voz soou baixo, um degrau acima de um sussurro, mas o homem a ouviu- Diga-me...
-É Cosmina... A diplomata de Honest...
-O que é uma diplomata?- tocou a própria testa- É estranho... Eu me lembro das palavras, mas não me lembro do que significam... A maioria delas, pelo menos... Onde eu estou?
O homem se aproximou dela.
-Você se feriu bastante... É melhor se deitar.
-Me tire desse lugar...
-Vamos esperar a senhora Dorothea chegar e...
-Agora!- ela gritou. E o homem simplesmente obedeceu sem questionar.
Alguns dias depois.
A taverna estava quieta naquele momento, e todos fingiam não olhar para a cena se desenrolava no centro do salão.
Dois homens, devidamente trajados com a armadura dos exércitos rebeldes, estavam rindo ao lado de uma mulher acorrentada pelas mãos e pelos pés, haviam pedido uma cerveja, e então a despejaram sobre a mesa, para enfim obrigarem a mulher à limpar a mesa com a língua. A mulher se recusou, e por isso foi atirada ao chão com violência por um soco, o sangue escorreu pelo canto da boca, e um dos guardas a pisou com a bota.
-Sua bruxa desgraçada- disse um deles, tocando a ponta cinzenta da espada no rosto da mulher- Quem disse que você tinha alguma escolha?
-Eu... Eu... Não...
-Não diga nenhuma palavra- disse o guarda, e a ponta da espada riscou o rosto da mulher, fazendo um pequeno fio de sangue escorrer. Um único homem se levantou para tentar argumentar com aqueles dois homens, mas a resposta que recebeu foi um soco no nariz, que o fez explodir em sangue. O guarda se virou para o homem, ergueu a espada e se preparou para estoca-lo.
Todos se calaram, esperaram pelo pior.
Um homem encapuzado estava sentado próximo ao balcão, mas ao contrario dos demais, não estava alheio à cena, fez menção a se erguer, mas o dono do estabelecimento o aconselhou a ficar onde estava.
-São homens do exército revolucionário- disse ele- Ouvi dizer que aceitam todo tipo de gente em suas fileiras... Esses homens não são boas pessoas.
O homem encapuzado se ergueu do mesmo jeito, e lhe atirou uma bolsa cheia de moedas.
-Vou sujar o seu bar, me perdoe.
-O que vai fazer?- perguntou o dono do estabelecimento, contando as moedas.
-Eu já lhe disse- disse o homem encapuzado, e se virou em direção aos homens -Se afastem dela- ordenou- Seus animais.
Um dos guardas o encarou com incredulidade, e não parecia ser do tipo de pessoa que fosse acostumada a ser contrariada. Toda a taverna se calou por alguns momentos que pareceram séculos e naquele momento, o homem rastejou para fora do lugar, com as mãos no nariz.
-Por acaso são surdos?- disse o encapuzado, ao ver que o homem já havia escapado.
-Vá embora daqui- disse o homem, a sorrir por baixo do elmo- Você deve estar bêbado demais, mas acredite em mim quando eu digo que essa não é a hora para querer ser o herói- cuspiu em direção à mulher- Como se essa puta valesse a pena.
O homem encapuzado manteve-se no lugar, e seus olhos encontraram os olhos da mulher que brilhavam com esperança. Ignorando os dois guardas, ele aproximou-se dela e a levantou com gentileza, limpando o cuspe do guarda do rosto dela com um lenço.
-O bêbado apaixonou-se pela puta- disse o guarda, e várias pessoas no salão riram- Meu pai sempre dizia que...
-Vocês dois- disse o encapuzado, se virando e os encarando com profundos olhos azuis- Estão aqui sob ordem de quem?
-E lhe interessa?- disse um dos guardas- A bruxa não lhe disse uma única palavra, e ainda sim o encantou tanto a ponto de você simplesmente se colocar em perigo para protege-la? Ora, que bonito. É a sua ultima chance, seu louco. Vá embora.
O encapuzado se afastou da mulher e levou a mão ao punho da espada, mas não chegou a saca-la.
-Deem meia volta, e eu os deixarei ir- disse aos dois.
Aquele era um claro desafio aos dois guardas, e quando o encapuzado lhes apontou a espada, ambos rosnaram, ofendidos.
- Gostam de dar ordens?- a sombra de um sorriso se formou por baixo do capuz- É sua última chance.
Um dos guardas fez uma careta.
-Bêbado ou não, sua falta de senso me irrita.
O guarda sacou a espada e estocou o encapuzado, mas a ponta da espada perfurou o nada, porque o encapuzado se esquivou como um dançarino. Naquele momento o capuz caiu de seu rosto, e profundos olhos azuis encararam os do guarda. Ao perceber a falha, o guarda se recompôs, equilibrou o peso nas pernas e desferiu um golpe violento, mas o adversário esquivou-se com um salto majestoso para trás.
-Bêbado desgraçado!- disse o guarda, apontando a espada em direção à ele- Me chama para um combate, e depois recua dessa forma?
O outro guarda sacou sua espada, a lâmina sibilou para fora da bainha.
-Vão ignorar a chance de fugir?- perguntou- E meu nome é Wave.
-Esta é a sua resposta, Wave- disse o guarda, avançando outra vez.
Atacaram em uníssono, e ambos erraram o alvo, Wave empunhou a espada em um arco que foi capaz de defletir ambos os golpes com maestria, e foi como se tivessem acertado uma grande barra de metal, porque as duas espadas foram atiradas para trás, com dentes nos fios quase perfeitos.
-Desgraçado!- rugiu um dos guardas, aprumando-se para tentar outro golpe.
Wave avançou com ambas as mãos no punho da espada, e então atacou, a espada rugiu em direção ao guarda em um golpe tão poderoso que poderia desbancar até o mais altivo dos deuses. O guarda ergueu sua espada em defesa, mas de nada adiantou. A arma de Wave atingiu a espada do guarda e a partiu em dois, mas a lâmina não terminou seu curso, continuou, e se enterrou profundamente no ombro do homem, a espada o partiu em dois, sangue e tripas escorreram das metades decepadas do guarda, e o cheiro da morte tomou conta do lugar. No fundo da taverna, um homem vomitou. Wave ergueu a espada, encharcada de sangue.
Em um surto de ódio, o segundo atacou, mas escorregou na poça de sangue, caiu de costas no chão e bateu a cabeça. Bastou a Wave simplesmente apontar para ele a ponta de sua espada.
-Desgraçado... Não tem ideia de com quem está mexendo!
-Diga a seu comandante que Wave, braço direito de Esdeath, fez isso- a menção ao nome fez o guarda arregalar os olhos, então olhou para o dono da taverna- Não causarão mais problemas.
-W-Wave?- o guarda parecia atônito- O homem de Esdeath?
Wave o calou com um movimento de mãos.
-É a ultima chance que lhe dou de partir com vida.
O guarda se levantou com o máximo de dignidade que podia, depois guardou a espada e saiu da taverna sem dizer uma só palavra. Wave aproximou-se da mulher e a ergueu.
-Quer uma bebida?
A mulher balançou a cabeça negativamente, mas ergueu seus grilhões em direção ao Jaeguer, parecia tê-los usado por tempo o suficiente para que o metal machucasse seu pulso. Wave notou uma mordaça sob a mesa dos guardas e imaginou o quanto ela deveria ter sofrido nas mãos daqueles homens.
-Qual é o seu nome?
-Cosmina.
Wave franziu o cenho. Sob toda a sujeira e maus tratos estava a mulher que ele veio buscar, tão ferida que ele mal a havia reconhecido. Era verdade que Wave nunca havia visto Cosmina pessoalmente, mas havia sido uma tarefa fácil encontra-la. Ele lhe estendeu a mão.
-Vamos embora, Cosmina...
Wave vagou pelas ruas da cidade e estavam estranhamente vazias naquele dia. Então ouviu relatos sobre um massacre que havia acontecido há algum tempo atrás, e percebeu, com pesar, que as descrições do assassino batiam com o que ele conhecia de Kurome, o assustava que ela havia ido até tão longe apenas para destilar sua fúria. Mas havia algo naqueles relatos que o encheu de insegurança, pois foi um trabalho cruel, os corpos estavam praticamente esquartejados quando foram encontrados na manhã seguinte.
-Horrível- disse uma mulher na rua- Minhas crianças não puderam sair de casa antes que os corpos fossem retirados, havia tanto... Tanto sangue...
Cosmina acompanhou Wave. O Jaeger simplesmente não se importou em perguntar o motivo dela estar presa, ou, só ódio que os guardas tinham por aquela mulher, provavelmente sabiam de quem se tratava.
A noite caiu, e com ela, as ruas da cidade se enchiam de escuridão, eram naquelas ruas que as batalhas entre os rebeldes e o império aconteciam, eram naqueles becos escuros, onde ocorriam estupros, assassinatos e roubos. Wave nunca se acostumaria com a solidão daquele lugar, nem com a neblina das ruas, que caia como um pesado manto sob a realidade. O mundo parecia estar completamente imerso na violência naqueles ultimos tempos.
Enfim chegaram a uma estalagem, e como Wave já era conhecido pelo dono ele humildemente os ofereceu um lugar para passar a noite.
-Mestre Wave!- disse Goto, o dono da estalagem, com um largo sorriso no rosto- Como é bom revê-lo.
-É bom revê-lo também, Goto- disse Wave, retribuindo o sorriso com um abraço. As roupas de Goto fediam a cigarro.
Goto era um homem de riso fácil, tinha em torno de quarenta anos e era corpulento como um barril. Mantinha uma longa barba cinzenta, manchada pelo tabaco e que lhe descia até a cintura em uma grande trança. Goto era um senhor de estalagem, mas mais do que isso, era um informante. Sua estalagem era o lugar aonde uma infinidade de pessoas se encontravam, trocavam informações, e iam embora, e outrora foi uma sede de uma guilda de assassinos. Goto fez uma fortuna naquela época, e talvez ainda tivesse muito dinheiro, porque os anéis que usava nos dedos gordos- quase todos os dez- eram de ouro, cravejados com pequenos diamantes.
-Achei que nunca mais o veria- encarou Wave por alguns instantes com olhos azuis como gelo- Você não costuma vir para cá, ainda mais depois daquela guerra no norte. Para ser sincero, nunca mais o vi.
-Muito trabalho na Capital- disse Wave, com um sorriso triste- A guerra é trabalho para mim, e nos ultimos anos, ela parece não ter fim.
-Eu soube do Norte, e aquilo foi mal para os negócios, ah se foi, juro que se eu tivesse a sua idade, enfrentaria aquele tal príncipe e o mataria com minhas próprias mãos- Sorriu- Sua senhora Esdeath está com você?- só naquele momento Goto notou a presença de Cosmina- Mais do que isso, qual é o nome dessa bela senhorita?
-Cosmina- respondeu ela, em tom gentil.
-É a sua amante agora?- perguntou, com um sorriso sugestivo no rosto- Largou daquela Kurome?
A menção ao nome da companheira fez o sorriso no rosto de Wave desaparecer.
-Cosmina é uma amiga que eu encontrei no caminho- suspirou- Na verdade, queria saber se você tem alguma informação sobre Kurome...
-Sempre foi bom em fazer amigos- ele encarava Cosmina incisivamente- Ela esteve aqui há alguns dias, parecia mais tensa do que o habitual, lhe ofereci agua, ela me ofereceu um sorriso forçado. Soube depois que ela executou um bando há poucos metros daqui. Que os deuses me perdoem, mas aquela mulher me dá arrepios, ao contrário do acompanhante dela- Goto coçou a barba- Um homem loiro, meio afeminado, quase o confundi com uma mulher. Mas, se o conheço bem, você está no rastro dela, não está? Não apareceria aqui e agora por uma mera coincidência.
-Gostaria de saber para onde ela foi.
-Ela fugiu de você?- perguntou Goto.
-...Talvez.
Goto suspirou.
-Ela me parecia perdida. Na verdade, ela sempre me pareceu perdida, eu a conheci quando ela era uma assassina, antes dela ir para o norte e fazer nome. Ela tinha muito ódio naquele coração, esse ódio que foi aplacado quando soube que vocês dois estavam bem... Me entende, não? Ela me veio aqui uma vez, com um sorriso sincero no rosto, e agora ela voltou, e acho que aquela assassina sem piedade está retornando- Goto se levantou com a única perna boa que lhe restava- O que é triste, pelo menos para mim. Disse que você sempre foi bom em fazer amigos, mas dessa vez, você está se metendo com um pessoal realmente perigoso- Wave imaginou se Goto falava de Kurome, mas percebeu que o olhar do homem estava preso aos olhos de Cosmina, e que a companheira parecia incomodada- Lhe ofereço um conselho, mestre Wave. A jovem mestra Kurome precisa de amor- as palavras soaram engraçadas no tom de voz rude de Goto- Não o amor infantil, me entende? Amor, atenção, ela precisa de alguém que a entenda e a aceite, ou ela se encherá de ódio. Ir atrás dela é a prova de que a ama de verdade. Agora ouça, porque esse é um conselho de um homem velho e que já conheceu todo o tipo de pessoa: O ódio é onde se escondem todos àqueles que não foram capazes de suportar a dor. Todos nós procuramos uma mão para nos guiar na escuridão, mas o ódio nos distancia de nossos guias.
-Por que a prenderam?- quis saber Wave. Estavam em um quarto pequeno, com apenas uma cama, que Wave gentilmente cedeu a aquela mulher, não era um lugar confortável, mas para Wave, um teto para dormir e uma palha consideravelmente livre de pulgas era o bastante, e Cosmina não parecia se incomodar com aquelas instalações.
-Por que acharam que eu matei um homem- respondeu Cosmina, mas sua face estava extremamente calma.
-E você matou?
-Não- respondeu ela- Fui acusada de fazê-lo, mas não fiz- arregalou os olhos- Na verdade, eles se mataram, sim, e para ser sincera, os soldados vinham me almejando faz tempo. Homens são assim.
Wave a encarou por alguns momentos, e percebeu o quanto ela parecia inocente, mas existia alguma coisa nos olhos daquela mulher que denunciava o contrário, e cada palavra que saia de sua boca lhe parecia o pedaço de uma canção.
-Acredita em mim?- perguntou ela- Ou vai me prender também?
-Você enviou uma carta, lembra-se?- Wave não parecia se importar- Pedindo ajuda. Eu vou leva-la em segurança para a Capital.
Wave sabia agora que Kurome havia passado por alí, e a vontade de largar tudo e ir atrás dela consumia seu coração, mas não podia simplesmente largar Cosmina ali.
-Lembro sim, mesmo que eu não me lembre de muita coisa- respondeu ela- Mas me resgatar não parece ser o seu desejo...
-E o que acha que eu desejo?- perguntou.
-Quer ir atrás daquela mulher... Eu quero acompanha-lo.
- Por que motivos?
-Porque eu quero, simplesmente isso. Desejos- Cosmina se levantou- Eu não vivo apenas porque nasci, eu vivo porque eu tenho desejos, porque eu tenho sonhos- encarou Wave com alegria- Sonhos esses que quase foram perdidos em uma cela escura em um calabouço qualquer, mas você me salvou.
Wave suspirou, fechou os olhos para dormir, mas estava sem sono.
-E qual é o seu sonho?
-Desejo entender qual é a minha função nesse mundo, e satisfazer todos os meus desejos enquanto isso- sorriu- Acredito que todo homem nasceu para uma função, um destino atribuído pelos deuses, e que existem pessoas que nasceram para mudar o mundo- Wave não teve como não pensar em Esdeath, e em como ela havia ascendido entre os imperiais- Para bem ou para mal, Essas pessoas que são capazes de mudar o mundo são as pessoas mais interessantes. Meu sonho é entender qual é a minha função nesse mundo e o que eu sou capaz de fazer. Qual é o seu sonho?
- O que disse foi bonito- disse Wave, com um sorriso no rosto- Meu sonho, se posso chama-lo assim, é envelhecer ao lado da mulher que eu amo, em uma casa afastada da sociedade, na beira do mar, talvez.
-Kurome- disse Cosmina- Esse é o nome da mulher que diz amar?
-Sim.
-Oh- Cosmina arregalou os olhos- Mas se ela o ama de verdade, porque o deixou?- ao ver a expressão de Wave, percebeu que talvez não fossem assim tão próximos para aquele tipo de conversa- Estou sendo invasiva demais?
-Sinceramente, está- Wave fechou os olhos- Tente dormir, amanhã eu parto quando o sol raiar- virou-se para o lado- Tente descansar.
Tudo caiu no mais profundo silencio, entretanto, uma voz o quebrou. Cosmina começou a cantar, era uma canção sobre um antigo herói, que lutou contra seu próprio destino pela mão da mulher que amava. Wave pensou em pedir para que ela fizesse silencio, mas a voz de Cosmina embalou seu sono. Aquela era a mais bela voz que Wave já havia ouvido cantar.
E Wave descansou.
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