Eu me enrosco cama e fico o encarando.
Quase acabei. Só faltam mais alguns dias.
Pego o diário e o coloco no travesseiro a meu lado.
— Não vou ler você — sussurro.
Porém, se eu lesse o que falta, eu encerraria. Ter visto Atlas hoje, saber que ele tem uma namorada, um emprego e muito provavelmente uma casa é o ponto final de que eu precisava para esse capítulo. Se eu simplesmente acabar de ler o maldito diário, vou poder guardá-lo na caixa de sapatos e nunca mais abri-lo.
Finalmente o pego e me deito de costas.
— Ellen DeGeneres, você é a maior vaca.
Querida Ellen, “Continue a nadar”.
Reconhece a frase, Ellen? É o que Dory diz para Marlin em Procurando Nemo.
“Continue a nadar, nadar, nadar”.
Não sou muito fã de desenho animado, mas parabéns por esse. Gosto de desenhos animados que nos fazem rir, mas que também nos fazem sentir algo. Depois de hoje, acho que esse é meu desenho animado preferido. Porque ultimamente sinto como se eu fosse me afogar, e às vezes as pessoas precisam lembrar que só devem continuar a nadar.
Atlas ficou doente. Tipo, muito doente.
Ele tem entrado escondido pela janela e dormido no chão de meu quarto há algumas noites, mas ontem, assim que olhei para ele, percebi algo errado. Era domingo, então eu não o via desde a noite anterior, mas ele parecia péssimo. Seus olhos estavam vermelhos, sua pele, pálida, e, apesar do frio, seu cabelo pingava suor. Nem perguntei se ele se sentia bem, porque eu já sabia que não. Coloquei a mão em sua testa, e ele estava tão quente que quase gritei para chamar minha mãe.
— Vou ficar bem, Lily — disse ele.
E depois começou a arrumar sua cama no chão. Eu disse para ele esperar um pouco, fui até a cozinha e peguei um copo d’água. Achei remédio no armário. Era para gripe, e eu nem sabia o que ele tinha, mas o obriguei a tomar mesmo assim.
Ele ficou deitado no chão, em posição fetal, e meia hora depois disse:
— Lily? Acho que vou precisar de uma lixeira.
Pulei da cama, peguei a lixeira embaixo da escrivaninha e me ajoelhei na frente dele. Assim que a coloquei no chão, ele se inclinou e começou a vomitar.
Meu Deus, estou me sentindo mal por ele. Estar tão doente e não ter um banheiro, nem uma cama, nem uma casa, nem uma mãe. Atlas só tinha a mim, e eu nem sabia o que fazer.
Quando ele terminou, fiz ele tomar um pouco de água e disse para ele se deitar na cama. Ele se recusou, mas não aceitei. Coloquei a lixeira no chão ao lado da cama e o forcei a se deitar.
Ele estava tão quente e tremendo tanto que fiquei com medo de deixá-lo no chão. Eu me deitei a seu lado, e ele vomitou a cada hora nas próximas seis horas. Precisei ir ao banheiro várias vezes para esvaziar a lixeira. Não vou mentir, foi nojento. A noite mais nojenta de minha vida, porém o que mais eu podia fazer? Ele precisava de minha ajuda, e só tinha a mim.
Quando chegou a hora de ele sair de meu quarto hoje pela manhã, eu mandei ele voltar para casa e avisei que passaria lá antes do colégio para ver como ele estava. Fiquei surpresa ao notar que ele tinha energia para saltar minha janela. Deixei a lixeira ao lado da cama e esperei que minha mãe viesse me acordar. Quando ela chegou e viu a lixeira, tocou minha testa imediatamente.
— Lily, você está bem?
Gemi e balancei a cabeça.
— Não. Passei a noite mal. Acho que já estou melhor, mas não dormi.
Ela pegou a lixeira e me disse para ficar na cama; falou que avisaria ao colégio que eu não iria.
Depois que ela saiu para o trabalho, fui buscar Atlas e disse que ele poderia passar o dia inteiro em casa comigo. Ainda estava mal, então deixei ele dormir em meu quarto. A cada meia hora eu dava uma olhada nele, e finalmente no horário do almoço ele parou de vomitar. Tomou um banho, e eu fiz sopa para ele.
Atlas estava cansado demais até mesmo para tomá-la. Peguei um cobertor, nos sentamos no sofá e nos cobrimos juntos. Não sei quando foi que comecei a me sentir tão à vontade a ponto de me aconchegar a ele, mas simplesmente pareceu certo. Alguns minutos depois, ele se aproximou um pouco e encostou os lábios em minha clavícula, bem entre meu ombro e meu pescoço. Foi um beijo rápido, e acho que a intenção não foi romântica. Foi mais um gesto de agradecimento, sem o uso de palavras.
Mas isso me fez sentir as mais diversas coisas. Foi algumas horas atrás, e continuo tocando os dedos no local porque ainda sinto seu beijo.
Sei que deve ter sido o pior dia da vida dele, Ellen. Mas foi um de meus preferidos.
E estou me sentindo péssima por isso.
Assistimos a Procurando Nemo, e quando chegou àquela parte em que Marlin está procurando Nemo e se sentindo muito derrotado, Dory disse para ele: “Quando a vida te desanimar sabe o que precisa fazer?... Continue a nadar. Continue a nadar. Continue a nadar, nadar, nadar”.
Atlas agarrou minha mão quando Dory disse isso. Ele não a segurou como um namorado segura a mão da namorada. Ele a apertou, como se estivesse dizendo que aqueles personagens eram nós dois.
Ele era Marlin, e eu, Dory, e eu o estava ajudando a nadar.
— Continue a nadar — sussurrei para ele.
Lily Querida Ellen, Estou com medo. Muito medo.
Gosto demais de Atlas. Só penso nele quando estamos juntos, e fico preocupada demais quando não estamos. Minha vida está começando a girar em torno dele, e sei que isso não é bom. Mas não consigo evitar, não sei o que fazer, e agora talvez ele vá embora.
Ele foi embora depois que vimos Procurando Nemo ontem, e quando meus pais foram dormir, ele entrou pela janela. Tinha dormido em minha cama na noite anterior porque estava doente, e sei que eu não devia ter feito isso, mas coloquei os cobertores na máquina de lavar logo antes de me deitar. Ele perguntou onde estava sua cama, e eu disse que ele teria de dormir de novo na minha, porque eu quis lavar os cobertores para que não ficasse doente de novo.
Por um instante, ele parecia prestes a sair pela janela. Mas depois ele a fechou, tirou os sapatos e se deitou na cama comigo.
Ele não estava mais doente, mas, quando se deitou, achei que eu estava doente, porque fiquei enjoada. Mas não era doença. É que me sinto meio enjoada toda vez que ele fica muito perto de mim.
Estávamos de frente um para o outro na cama, e ele perguntou:
— Quando você faz 16 anos?
— Daqui a dois meses — sussurrei. Nós continuamos nos encarando, e meu coração batia cada vez mais rápido. — Quando você faz 19 anos?
Eu só queria puxar assunto para que ele não ouvisse minha respiração acelerada.
— Só em outubro — respondeu.
Balancei a cabeça. Fiquei pensando... por que ele estava curioso a respeito de minha idade? E, ainda, o que ele achava de garotas de 15 anos? Será que ele me via apenas como uma criança? Uma irmã mais nova? Tenho quase 16 anos, e dois anos e meio de diferença não é tanto assim. Se um tem 15 e o outro, 18, talvez a diferença pareça muito grande. Mas depois que eu fizer 16 anos, aposto que ninguém se importaria com uma diferença de dois anos e meio.
— Preciso te contar uma coisa — disse ele.
Prendi a respiração, sem saber o que ele ia dizer.
— Hoje falei com meu tio. Minha mãe e eu morávamos com ele em Boston. Disse que posso ficar lá depois que ele voltar de uma viagem a trabalho.
Nesse momento eu deveria ter ficado muito feliz por ele. Deveria ter sorrido e dado parabéns.
Mas senti toda minha imaturidade quando fechei os olhos e senti pena de mim mesma.
— Você vai? — perguntei.
Ele deu de ombros.
— Não sei. Eu queria falar com você primeiro.
Ele estava tão perto de mim na cama que dava para sentir o sopro quente de sua respiração.
Também percebi que ele tinha cheiro de menta... Será que escovava os dentes com água de garrafa antes de vir para cá? Sempre dou muita água para ele levar para casa.
Coloquei a mão no travesseiro e comecei a puxar uma pena que estava para fora. Depois de soltá-la, eu a torci entre os dedos.
— Não sei o que dizer, Atlas. Fico feliz por você ter onde ficar. Mas e o colégio?
— Posso terminar o ano lá — disse ele.
Assenti. Pelo visto, ele já tinha se decidido.
— Quando você vai?
Qual seria a distância de Boston até aqui? Deve ficar a algumas horas, mas é um mundo inteiro de distância para quem não tem carro.
— Ainda não tenho certeza se vou.
Larguei a pena no travesseiro e coloquei a mão do lado do corpo.
— O que está te impedindo? Seu tio está te oferecendo um lugar para ficar. Isso é bom, não é?
Ele comprimiu os lábios e fez que sim. Depois pegou a pena que eu tinha largado e começou a mexê-la entre os dedos. Colocou-a de novo no travesseiro e depois fez algo que eu não esperava: levou os dedos até meus lábios e os tocou.
Meu Deus, Ellen. Achei que ia morrer bem ali. Jamais tinha sentido algo tão intenso dentro de mim. Ele deixou os dedos parados por alguns segundos e disse:
— Obrigado, Lily. Por tudo.
Ele levou os dedos até meu cabelo, depois se inclinou para a frente e deu um beijo em minha testa. Eu estava com a respiração tão acelerada que precisei abrir a boca em busca de mais ar.
Percebi que ele arfava tanto quanto eu. Ele olhou para mim, e eu observei seus olhos se voltarem para minha boca.
— Você já foi beijada alguma vez, Lily?
Neguei com a cabeça e ergui o rosto na direção do dele, porque eu precisava que Atlas fizesse algo a respeito dessa situação bem naquele momento, caso contrário eu não conseguiria mais respirar.
Então — quase como se eu fosse tão delicada quanto uma casca de ovo — ele aproximou a boca da minha e parou bem ali. Eu não sabia o que fazer em seguida, mas não me importei. Eu não ligaria se a gente passasse a noite inteira daquele jeito, sem nunca sequer mover as bocas, de tão bom que era.
Seus lábios se fecharam em cima dos meus, e eu meio que senti sua mão tremendo. Fiz o mesmo que ele e comecei a imitar seus movimentos. Senti a ponta de sua língua roçar uma vez em meus lábios, e achei que meus olhos iam se virar para dentro de minha cabeça. Ele fez isso de novo, e depois uma terceira vez, então eu fiz o mesmo. Quando nossas línguas se encostaram pela primeira vez, dei um sorrisinho, porque eu já tinha imaginado muitas vezes meu primeiro beijo. Onde seria, com quem seria. Nunca em um milhão de anos imaginei que me sentiria assim.
Ele me deitou, pressionou a mão em minha bochecha e continuou me beijando. Tudo só melhorou à medida que fui relaxando. Meu momento preferido foi quando ele se afastou por um segundo e ficou me olhando, depois voltou com um beijo ainda mais intenso.
Não sei por quanto tempo nos beijamos. Foi muito tempo. Tanto que minha boca começou a doer e eu não conseguia mais manter os olhos abertos. Quando dormimos, tenho certeza de que a boca de Atlas ainda estava encostando na minha.
Não falamos mais sobre Boston.
Ainda não sei se ele vai se mudar.
Lily • • • Querida Ellen, Preciso te pedir desculpas.
Faz uma semana que não te escrevo, e uma semana que não vejo seu programa. Não se preocupe porque continuo gravando para você não perder a audiência, mas todo dia, quando descemos do ônibus, Atlas toma um banho rápido e a gente fica se agarrando.
Todo dia.
É o máximo.
Não sei exatamente o que ele tem, mas me sinto muito à vontade. Atlas é tão meigo e atencioso.
Nunca faz nada que me deixe constrangida, mas até agora ele não tentou fazer nada que poderia me deixar constrangida.
Não sei até que ponto devo revelar aqui, porque nós duas nunca nos conhecemos pessoalmente.
Mas vou apenas dizer que, se alguma vez ele se perguntou como seria tocar em meus seios...
Agora ele sabe a resposta.
Não faço a mínima ideia de como as pessoas conseguem cumprir as tarefas do cotidiano quando gostam tanto assim de alguém. Se dependesse de mim, a gente se beijaria o dia inteiro e a noite inteira, sem fazer nada além disso, talvez só conversar um pouco. Ele conta histórias engraçadas.
Adoro quando ele está mais tagarela, porque isso não acontece com frequência, mas ele gesticula muito. Também sorri bastante, e eu amo seu sorriso mais que seu beijo. E às vezes eu simplesmente preciso dizer para ele calar a boca e parar de sorrir, de me beijar ou de falar só para que eu possa ficar olhando para ele. Gosto de encará-lo. Seus olhos são tão azuis que se ele estivesse do outro lado do cômodo, uma pessoa perceberia a cor intensa. A única coisa de que não gosto é que ele fecha os olhos durante o beijo.
E não. Ainda não conversamos sobre Boston.
Lily Querida Ellen, Ontem à tarde, quando estávamos no ônibus, Atlas me beijou. Não foi nada novo para nós dois, afinal já nos beijamos muito, mas foi a primeira vez que ele fez isso em público. Quando estamos juntos parece que todo o resto some, então acho que ele nem pensou nas outras pessoas nos vendo.
Mas Katie viu. Ela estava sentada bem atrás de nós, e assim que ele se inclinou e me beijou, escutei ela dizer:
— Que nojo.
Ela estava falando com a menina a seu lado e acrescentou:
— Não acredito que Lily o deixa encostar nela. Ele usa a mesma roupa quase todo dia.
Ellen, fiquei com tanta raiva! E também me senti péssima por Atlas. Ele se afastou de mim, e percebi que ficou incomodado com o que ela disse. Eu estava prestes a me virar e gritar com ela por ter julgado alguém que nem conhece, mas ele agarrou minha mão e balançou a cabeça.
— Não, Lily — disse ele.
Então não fiz nada.
Mas fiquei morrendo de raiva durante o restante do trajeto. Fiquei com raiva por Katie ter digo algo tão ignorante só para magoar alguém que considerava inferior. Também fiquei magoada por ver que Atlas parecia acostumado a ouvir comentários assim.
Eu não queria que ele achasse que fiquei envergonhada por alguém tê-lo visto me beijar.
Conheço Atlas melhor que todas as outras pessoas, e sei que ele é uma pessoa boa, independentemente das roupas que usa ou do cheiro que tinha antes de passar a tomar banho lá em casa.
Eu me aproximei, dei um beijo em sua bochecha e apoiei a cabeça em seu ombro.
— Sabe de uma coisa? — perguntei.
Ele deslizou os dedos entre os meus e apertou minha mão.
— O quê?
— Você é minha pessoa preferida.
Senti ele rir um pouco, o que me fez sorrir.
— Entre quantas pessoas? — perguntou ele.
— Todas.
Ele beijou minha cabeça e disse:
— Você também é minha pessoa preferida, Lily. De longe.
Quando o ônibus parou na minha rua, ele não soltou minha mão enquanto descíamos. Ele foi andando a minha frente pelo corredor, e eu o segui, então ele não viu quando me virei e mostrei o dedo do meio para Katie.
Eu provavelmente não deveria ter feito isso, mas valeu a pena só pelo olhar dela.
Quando chegamos a minha casa, ele pegou a chave de minha mão e destrancou a porta. Foi estranho perceber como ele fica à vontade em minha casa agora. Trancou a porta depois de entrarmos. E então notamos que a casa estava sem luz. Olhei pela janela e reparei que havia um carro da companhia de eletricidade na rua e homens mexendo nos cabos, então a gente não poderia assistir a seu programa. Não fiquei muito chateada, porque assim a gente provavelmente ficaria se beijando por uma hora e meia.
— Seu fogão é elétrico ou a gás? — indagou ele.
— A gás — respondi, um pouco confusa com essa pergunta.
Ele tirou os sapatos (que eram na verdade sapatos velhos de meu pai) e saiu em direção à cozinha.
— Vou preparar uma coisa para você — disse ele.
— Sabe cozinhar?
Ele abriu a geladeira e começou a mexer nas coisas.
— Sei. Provavelmente gosto de cozinhar tanto quanto você gosta de plantar.
Ele tirou algumas coisas da geladeira e pré-aqueceu o forno. Eu me encostei no balcão e fiquei olhando. Ele nem verificou alguma receita. Simplesmente colocava ingredientes nas tigelas e mexia sem nem ao menos usar um copo medidor.
Nunca vi meu pai erguer um dedo na cozinha. Tenho certeza de que ele nem saberia pré-aquecer o forno. Eu meio que achava que todos os homens eram assim, mas ver Atlas fazendo várias coisas na cozinha provou que eu estava errada.
— O que você está preparando? — perguntei.
Apoiei as mãos na ilha e me sentei ali.
— Cookies — respondeu.
Ele me trouxe a tigela e enfiou uma colher na mistura. Depois levou a colher até minha boca, e eu provei. Um de meus pontos fracos é massa de cookie, e a dele foi a melhor que já provei.
— Ah, nossa! — exclamei, lambendo os lábios.
Ele pôs a tigela a meu lado, se inclinou para a frente e me beijou. A massa de cookies com a boca de Atlas é o paraíso, caso esteja se perguntando. Fiz um barulho no fundo da garganta, demonstrando como gostei da combinação, e ele riu. Mas não parou de me beijar. Ele riu enquanto me beijava, o que derreteu completamente meu coração. Um Atlas feliz era quase incrível. Fiquei com vontade de descobrir do que ele gosta, depois oferecer tudo a ele.
Enquanto Atlas me beijava, fiquei questionando se eu o amava. Nunca namorei ninguém, então não tenho como comparar o que sinto. Na verdade, antes de Atlas jamais quis um namorado ou um relacionamento. Não estou crescendo em uma casa com um bom exemplo de como um homem deve tratar alguém que ama, então sempre tive uma desconfiança enorme sobre relacionamentos e outras pessoas.
Em alguns momentos, até me perguntei se algum dia eu conseguiria confiar num rapaz. Por boa parte do tempo, odeio os homens, porque o único exemplo que tenho é meu pai. Mas ficar tanto com Atlas tem me mudado. Não de uma maneira significativa, acho que não. Ainda desconfio da maioria das pessoas. Mas Atlas me mudou a ponto de me fazer acreditar que talvez ele seja uma exceção à regra.
Ele parou de me beijar e pegou a tigela de novo. Levou-a ao balcão do outro lado e começou a espalhar a massa em duas folhas de papel manteiga para assar.
— Quer saber o truque para cozinhar com um fogão a gás?
Nunca liguei para a cozinha, mas Atlas me dá vontade de aprender tudo o que ele sabe. Deve ter sido por causa de como ele estava feliz enquanto falava sobre o assunto.
— Os fogões a gás têm zonas de calor — explicou, enquanto abria a porta do forno e colocava as folhas de papel manteiga ali dentro. — Precisa checar isso e girar os tabuleiros para que cozinhem igualmente. — Ele fechou a porta, tirou a luva de cozinha da mão e jogou-a no balcão. — Uma pedra para pizza também ajuda. Deixá-la no forno, mesmo quando não estiver assando uma pizza, ajuda a eliminar as zonas de calor.
Ele se aproximou e colocou uma mão em cada lado de meu corpo. A eletricidade voltou bem no instante que ele puxava a gola de minha camisa para baixo. Atlas beijou o ponto de meu ombro que sempre ama beijar, e suas mãos subiram lentamente por minhas costas. Juro que, às vezes, mesmo quando ele não está aqui, sinto seus lábios no meu ombro.
Ele estava prestes a me beijar na boca quando escutamos um carro parar na frente de casa e o portão da garagem se abrir. Desci num pulo da ilha e olhei ao redor freneticamente. Atlas levou as mãos até minhas bochechas e me fez olhar para ele.
— Fique de olhos nos cookies. Vão ficar prontos daqui a uns vinte minutos.
Ele pressionou os lábios nos meus e me soltou, correndo até a sala para pegar sua mochila. Saiu pela porta dos fundos enquanto eu escutava o motor do carro de meu pai desligar.
Comecei a juntar todos os ingredientes, e meu pai entrou na cozinha vindo da garagem. Ele olhou ao redor e notou a luz do forno acesa.
— Está cozinhando? — perguntou.
Fiz que sim porque meu coração estava tão acelerado que tive medo de que ele percebesse minha voz trêmula caso eu respondesse em voz alta. Esfreguei uma parte do balcão que já estava perfeitamente limpa. Então pigarreei e disse:
— Cookies. Estou fazendo cookies.
Ele deixou a maleta na mesa da cozinha, foi até a geladeira e pegou uma cerveja.
— Estávamos sem luz — comentei. — Fiquei entediada, então decidi cozinhar enquanto esperava a eletricidade voltar.
Meu pai se sentou à mesa e passou os seguintes dez minutos perguntando sobre meu colégio e se eu pensava em fazer uma faculdade. De vez em quando, quando nós dois ficávamos sozinhos, eu tinha uma noção de como seria ter um relacionamento normal com um pai. Ficar sentada na cozinha com ele, conversando sobre faculdade, escolhas de carreira e colégio. Por mais que eu o odiasse durante a maior parte do tempo, eu ainda aguardava, ansiosa, por mais momentos assim com ele. Se conseguisse ser sempre o homem que era capaz de ser nesses momentos, as coisas seriam muito diferentes. Para todos nós.
Girei os cookies como Atlas tinha me avisado para fazer, e os tirei do forno quando ficaram prontos. Peguei um da folha e o entreguei para meu pai. Eu odiava ser gentil com ele. Quase parecia que eu estava desperdiçando um dos cookies de Atlas.
— Uau! — exclamou meu pai. — Está muito bom, Lily.
Eu me forcei a agradecer, apesar de não ter feito os cookies. Mas claro que eu não poderia revelar isso.
— São para o colégio, então você só pode comer um — menti.
Esperei o resto esfriar, guardei tudo em um pote e levei para o quarto. Não quis provar sem Atlas, então deixei para fazer isso mais tarde, quando ele viesse para cá.
— Você devia ter provado enquanto estava quente — disse ele. — É quando fica melhor.
— Não quis comer sem você — respondi.
Estávamos sentados na cama, encostados na parede, e comemos metade da tigela de cookies. Eu disse que eram deliciosos, mas não falei que eram de longe os melhores cookies que já tinha comido.
Não queria que ele ficasse metido. Eu meio que gostava de como ele era modesto.
Tentei pegar outro, mas ele puxou a tigela e a tampou.
— Se comer demais, vai passar mal e não vai mais gostar de meus cookies.
Eu ri.
— Impossível.
Ele tomou um gole de água e se levantou, virado para a cama.
— Fiz uma coisa para você — disse ele, enfiando a mão no bolso.
— Mais cookies? — perguntei.
Ele sorriu, balançou a cabeça e estendeu o punho cerrado. Ergui a mão, e ele soltou algo duro em minha palma. Era um contorno pequeno de coração, com cerca de 5 centímetros, feito de madeira.
Passei o dedão, tentando não exagerar no sorriso. Não era um coração anatomicamente correto, mas também não parecia um coração desenhado à mão. Era irregular e oco no meio.
— Você fez isso? — perguntei, olhando para ele.
Atlas confirmou com a cabeça.
— Fiz com uma faca para entalhe antiga que achei na casa.
As pontas do coração não se encontravam. Apenas se encurvavam um pouco para dentro, deixando um pequeno espaço no topo. Eu nem sabia o que dizer. Eu o senti sentar de novo na cama, mas eu não conseguia parar de olhar para o coração nem para agradecer a ele.
— Entalhei em um galho — sussurrou ele. — Do carvalho do quintal.
Eu juro, Ellen. Nunca achei que poderia amar tanto alguma coisa. Ou talvez eu não estivesse sentindo algo pelo presente, mas por ele. Cerrei o punho com o coração dentro, me inclinei e o beijei tão intensamente que ele caiu de novo na cama. Joguei a perna por cima de seu corpo e o montei.
Atlas agarrou minha cintura e sorriu com os lábios encostados aos meus.
— Assim vou entalhar uma casa inteira naquele carvalho se minha recompensa for essa — sussurrou ele.
Eu ri.
— Você tem de parar de ser tão perfeito — respondi. — Já é minha pessoa preferida, mas agora está ficando injusto com todos os outros seres humanos, porque ninguém nunca vai conseguir te alcançar.
Ele colocou a mão em minha nuca e me rolou até que ficasse por cima.
— Então meu plano está dando certo — disse ele, logo antes de me beijar de novo.
Segurei o coração enquanto a gente se beijava, querendo acreditar que era um presente sem qualquer motivação oculta. Mas parte de mim tinha medo de que fosse um presente para que eu me lembrasse dele depois que fosse para Boston.
Não queria me lembrar dele. Se eu tivesse de me lembrar de Atlas, isso significaria que ele não faz mais parte de minha vida.
Não quero que ele se mude para Boston, Ellen. Sei que estou sendo egoísta, porque ele não pode continuar morando naquela casa. Não sei qual meu maior medo. Ver ele partir ou implorar para ele não ir; bem egoísta.
Sei que a gente precisa conversar sobre isso. Depois vou perguntar a ele sobre Boston, quando vier para cá. Só não quis perguntar ontem porque foi mesmo um dia perfeito.
Lily Querida Ellen, Continue a nadar. Continue a nadar.
Ele vai se mudar para Boston.
Não estou muito a fim de falar sobre isso.
Lily Querida Ellen, Dessa vez, vai ser difícil para minha mãe disfarçar.
Meu pai normalmente não a acerta onde pode deixar marcas visíveis. A última coisa que deve querer é que as pessoas da cidade descubram que bate na mulher. Já o vi chutá-la algumas vezes, estrangulá-la, golpear suas costas, sua barriga, puxar seu cabelo. Sempre que ele bateu no rosto de minha mãe, foi sempre um tapa, acredito que para minimizar as marcas.
Mas eu jamais o vira fazer o que fez ontem.
Era bem tarde quando eles chegaram. Era fim de semana, então os dois foram a algum evento da comunidade. Meu pai tem uma imobiliária e também é prefeito, então eles têm muitas coisas para fazer em público, como ir a jantares de caridade. O que é irônico, porque meu pai odeia instituições de caridade. Mas acho que ele tinha uma reputação a zelar.
Atlas já estava no quarto quando eles chegaram. Escutei a briga assim que entraram pela porta.
Grande parte da conversa estava abafada, mas parecia que meu pai acusava minha mãe de dar em cima de outro homem.
Mas eu conheço minha mãe, Ellen. Ela nunca faria uma coisa dessas. Se tiver acontecido algo, deve ter sido algum homem que olhou para ela e deixou meu pai enciumado. Afinal, minha mãe é muito bonita.
Eu o escutei chamá-la de puta, depois ouvi o primeiro golpe. Comecei a sair da cama, mas Atlas me segurou e me disse para não ir, que eu me machucaria. Argumentei que na verdade isso ajuda.
Quando eu entro, meu pai se afasta.
Atlas tentou me convencer, mas acabei me levantando e indo até a sala.
Ellen.
Eu simplesmente...
Ele estava em cima de minha mãe.
Os dois estavam no sofá, e ele estava com a mão em volta de seu pescoço, enquanto a outra mão puxava seu vestido para cima. Ela se debatia para se livrar, e eu fiquei paralisada. Minha mãe continuou implorando para que ele saísse de cima dela, e então ele bateu em seu rosto e a mandou calar a boca. Nunca vou esquecer suas palavras:
— Quer atenção? Eu te dou um pouco de atenção, porra.
Então, ela ficou muito quieta e parou de se debater. Escutei seu choro, quando disse:
— Por favor, faça silêncio. Lily está aqui.
Ela disse: “Por favor, faça silêncio”.
“Por favor, faça silêncio enquanto me estupra, querido”.
Ellen, eu não sabia que um ser humano era capaz de sentir tanto ódio no coração. E não estou falando de meu pai. Estou falando de mim mesma.
Fui direto para a cozinha e abri uma gaveta. Peguei a maior faca que achei e... não sei explicar.
Foi como se eu estivesse fora de mim. Eu me vi andar pela cozinha com a faca na mão, por mais que soubesse que não ia usá-la. Eu só queria estar com alguma coisa que fosse maior que eu, que o assustasse e o fizesse se afastar dela. Mas, antes que eu pudesse sair da cozinha, dois braços envolveram minha cintura e me agarraram por trás. Soltei a faca, e meu pai nem escutou, mas minha mãe sim. Nós nos olhamos enquanto Atlas me carregava de volta para o quarto. Quando estávamos no quarto, comecei a bater no peito dele, tentando voltar para a sala. Eu estava chorando e fazendo de tudo para que Atlas saísse de minha frente, mas ele não se mexeu.
Ele apenas me abraçou e disse:
— Lily, se acalme.
Ele continuou repetindo isso, e me abraçou por bastante tempo até eu aceitar que ele não ia me deixar voltar. Ele não ia me deixar pegar aquela faca.
Ele foi até a cama, pegou o casaco e começou a calçar os sapatos.
— Vamos à casa do vizinho — sugeriu ele. — Vamos chamar a polícia.
A polícia.
Minha mãe já havia me avisado para nunca chamar a polícia. Disse que a carreira de meu pai correria risco. Porém, para ser totalmente sincera, naquele momento eu não ligava para isso. Não ligava se ele era prefeito ou se todos os amigos não conheciam esse seu lado terrível. Eu só queria ajudar minha mãe, então vesti o casaco e fui até o closet pegar um sapato. Quando saí do closet, Atlas estava encarando a porta de meu quarto.
Que estava se abrindo.
Minha mãe entrou e rapidamente fechou a porta, trancando-a. Jamais vou me esquecer de como ela estava. O lábio sangrando. O olho já começando a inchar, e um tufo do cabelo caído sobre o ombro. Ela olhou para Atlas e depois para mim.
Nem parei para sentir medo por ela ter visto um garoto em meu quarto. Não me importei com isso. Eu estava preocupada com ela, nada mais. Eu me aproximei, agarrei suas mãos e a levei até minha cama. Afastei o cabelo de seu ombro e de sua testa.
— Ele vai chamar a polícia, tá bom, mãe?
Seus olhos se arregalaram de forma exagerada, e ela começou a balançar a cabeça.
— Não — respondeu, olhando para Atlas. — Não pode fazer isso. Não.
Ele já estava na janela, prestes a ir embora, então parou e se virou para mim.
— Ele está bêbado, Lily — argumentou minha mãe. — Ele escutou sua porta se fechando, então foi para nosso quarto. Ele parou. Se chamar a polícia, as coisas só vão piorar, acredite em mim. Deixe ele dormir, e isso vai passar, amanhã vai estar melhor.
Balancei a cabeça e senti as lágrimas ardendo nos olhos.
— Mãe, ele estava tentando te estuprar!
Ela negou com a cabeça e se contraiu quando eu disse isso. Balançou a cabeça de novo e disse:
— Não é assim, Lily. Nós somos casados, e às vezes o casamento é simplesmente... Você é nova demais para entender.
Fiquei completamente quieta por um instante e depois disse:
— Nossa, espero nunca entender.
Ela começou a chorar. Apoiou a cabeça nas mãos, começou a soluçar e não pude fazer nada além de abraçá-la e chorar com ela. Jamais havia visto minha mãe tão abalada. Tão magoada. Ou tão assustada. Fiquei de coração partido, Ellen.
Fiquei arrasada.
Quando ela parou de chorar, dei uma olhada no quarto e Atlas já tinha ido embora. Fomos até a cozinha, e eu a ajudei a limpar o lábio e o olho. Ela nunca fez nenhum comentário sobre ele estar em meu quarto. Nem uma palavra. Fiquei esperando ela me botar de castigo, mas isso não aconteceu.
Percebi que deve ter sido porque ela é assim: varre para baixo do tapete tudo o que a magoa, e nunca mais toca no assunto.
Lily Querida Ellen, Acho que estou pronta para falar sobre Boston.
Atlas foi embora hoje.
Embaralhei minhas cartas tantas vezes que estou com as mãos doendo. Tenho medo de enlouquecer se não escrever e colocar para fora o que estou sentindo.
Ontem à noite não foi tão bom! A gente se beijou muito no início, mas estávamos tristes demais para nos importar. Pela segunda vez em dois dias, ele me disse que tinha mudado de ideia e não ia mais embora. Falou que não queria me deixar sozinha aqui em casa. Mas moro com meus pais há quase 16 anos. Era besteira ele recusar uma casa para ficar só por minha causa. Nós dois sabíamos disso, mas doeu mesmo assim.
Tentei não ficar muito triste, então, enquanto estávamos deitados, pedi para ele me contar sobre Boston. Falei que talvez um dia, quando me formasse, poderia ir para lá.
Seu olhar mudou quando começou a falar sobre a cidade. Com um brilho que eu nunca havia visto. Parecia até que ele estava falando do paraíso. Ele me disse que todo mundo lá tem um sotaque lindo. Em vez de “par”, eles dizem “pah”. Atlas jamais deve ter percebido que ele mesmo às vezes pronuncia o “r” assim. Disse que morou lá dos 9 aos 14 anos, então acho que pegou um pouco do sotaque.
Contou que o tio mora em um prédio com uma área de lazer incrível no telhado.
— Muitos apartamentos têm isso — disse ele. — Alguns têm até piscina.
Plethora, no Maine, não devia ter nenhum prédio alto o suficiente para ter um telhado com área de lazer. Fiquei imaginando como deveria ser... morar tão alto. Perguntei se ele já tinha subido lá, e ele disse que sim. Quando era mais novo, às vezes ia ao telhado e ficava sentado, pensando enquanto observava a cidade.
Ele me contou sobre a comida. Eu já sabia que ele gostava de cozinhar, mas não fazia ideia de como era apaixonado por gastronomia. Deve ser porque ele não tem fogão nem cozinha, então tirando os cookies que fez para mim, ele nunca falou sobre culinária.
Contou sobre o porto onde, antes de se casar de novo, sua mãe o levava para pescar.
— Quero dizer, acho que Boston não é diferente das outras cidades grandes — disse ele. — Não se destaca por nada. É que... não sei. Lá tem uma energia. Uma energia muito boa. Quando as pessoas dizem que moram em Boston, elas têm orgulho. Às vezes sinto falta disso.
Passei os dedos em seu cabelo e falei:
— Bem, assim fica parecendo que é o melhor lugar do mundo. Que tudo é melhor em Boston.
Ele olhou para mim, e seus olhos estavam tristes quando disse:
— Quase tudo é melhor em Boston. Menos as garotas. Boston não tem você.
Isso me fez corar. Ele me deu um beijo muito meigo, e eu respondi:
— Boston não me tem ainda. Um dia vou me mudar para lá e te encontrar.
Ele me fez prometer. Disse que, se eu me mudasse para Boston, tudo seria realmente melhor lá, e então se tornaria a melhor cidade do mundo.
Nós nos beijamos mais um pouco. E fizemos outras coisas, mas não quero entediar você falando sobre isso. Mas isso não quer dizer que as coisas que fizemos foram entediantes.
Porque não foram.
Mas hoje de manhã precisei me despedir. Atlas me abraçou e me beijou tanto que achei que morreria se ele me soltasse.
Mas não morri. Porque ele me soltou e eu ainda estou aqui. Ainda estou viva. Ainda respiro.
Mas bem pouco.
Lily Viro mais uma página e, então, fecho o diário. Só tem mais um texto, e não sei se estou a fim de ler agora. Talvez nunca esteja. Guardo o diário no armário, sabendo que meu capítulo com Atlas acabou.
Agora ele está feliz.
Agora eu estou feliz.
O tempo definitivamente cura todas as feridas.
Ou pelo menos a maioria.
Apago o abajur e pego o celular para carregá-lo. Tem duas mensagens de Ryle e uma de minha mãe.
Ryle: Oi. V erdade Nua e Crua começando em 3... 2...
Ryle: Eu tinha medo de que um relacionamento fosse aumentar minhas responsabilidades. Por isso os evitei a vida inteira. Já tenho preocupações demais, e ver o estresse que o casamento de meus pais causou para os dois, e os casamentos que deram errado de alguns amigos... eu não queria nenhuma dessas coisas. Mas depois de hoje, percebi que talvez tenha muita gente fazendo tudo errado. Porque o que está acontecendo entre nós dois não parece uma responsabilidade. Parece uma recompensa. E vou dormir pensando no que foi que fiz para merecer isso.
Coloco o celular no peito e sorrio. Depois tiro print da mensagem porque vou guardá-la para sempre. Abro a terceira mensagem.
Mãe: Um médico, Lily? E TAMBÉM o próprio negócio? Quero ser você quando crescer.
Também tiro print dessa.
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