Pip cutucava o seu almoço na bandeja com o garfo, distraidamente, enquanto sua mente estava em outro lugar. Pensando de novo e de novo no que tinha feito naquele mesmo dia, um pouco mais cedo e sabendo que não tinha sido honesto consigo mesmo. Era impossível não se arrepender de ter se negado a almoçar com Damien, especialmente quando não se lembrava de algo assim ter acontecido antes em toda a sua vida. Claro que Pip gostaria de não passar o almoço completamente sozinho, ele era bem mais sociável do que parecia e o isolamento era especialmente desagradável, mas não faria isso com Damien não importava o quanto quisesse um amigo. O loiro era um fracassado que todo mundo odiava e esse tipo de impopularidade deveria ser contagiosa.
De fato esse era o melhor desfecho, não seria justo se Damien passasse por situações ruins e fosse odiado apenas por andar com a pessoa errada.
Quando olhou através de algumas mesas, quase do outro lado do refeitório, conseguiu ver o moreno sentado em uma mesa com Stan Marsh, Kyle Broflovski, Eric Cartman e Kenneth McCormick. Era meio esquisito por ele ser um novato, aqueles garotos não eram exatamente legais com quem era novo, mas parecia tudo bem. Não conseguia escutar ou ter certeza de muita coisa de onde estava, mas os quatro agiam como se já conhecessem Damien.
O loiro levou o garfo com a almôndega até a boca e mastigou poucas vezes antes de engolir. Tinha gosto de um molho que nunca havia provado antes, meio suspeito, mas suspirou silenciosamente sem se importar realmente com isso.
Era melhor assim, se Damien andasse com eles quatro teria uma vida social escolar garantida, estaria bem longe de ser odiado e desprezado como Pip sempre foi. Havia algum motivo em particular para isso? Não tinha como ter certeza, ninguém nunca pensou em lhe explicar exatamente o que o loiro fazia de errado, não quando tudo que ele fazia estava sempre errado.
Não era francês, mas a pessoas ali tinham algo contra franceses e acreditavam veementemente que essa era a nacionalidade de Pip, por mais que nem sequer soasse parecido. Damien foi a única pessoa que percebeu as diferenças óbvias.
Mas e se começasse a se opor ao bullying, teria alguma chance? Honestamente, sabia que não e não iria arriscar mesmo se houvesse alguma vaga chance de isso ser diferente. Simplesmente não podia se colocar em risco, não quando a sua falta de sorte era constante e cotidiana. Certamente Pip seria espancado se tentasse se defender.
Não é como se eu pudesse mudar alguma coisa, pensou tristemente, mas conformado até demais. Quando olhou para Damien mais uma vez ele estava perto da lata de lixo, esvaziando a bandeja, até que subitamente virou o rosto na sua direção. No mesmo instante Pip abaixou a cabeça e voltou a atenção para a própria comida e em como poderia comer o mais rápido possível. Se ele tivesse mesmo visto o loiro olhando naquela direção, poderia não gostar muito disso e, se fosse adivinhar, o mais provável é que ele chamasse os novos amigos para intimidar Pip.
Não ousou erguer o rosto pelos próximos segundos, quase um minuto inteiro, tentando fazer parecer que não tinha olhado para lugar nenhum antes, que estava concentrado na comida desde o começo. Damien não poderia ir até ali apenas porque estava olhando para ele, poderia?
Claro que poderia. Tomou um susto quando ele sentou na sua frente, no banco do outro lado da mesa, mesmo assim não encontrou coragem para o encarar:
— Ei Pip, cadê os seus amigos que você disse que eu não ia gostar? — Damien perguntou não muito casualmente, apoiando os cotovelos na mesa e Pip deu a ele apenas uma resposta baixa e incompreensível. — O que?
— Eu falei que, os amigos que você não gostaria de ter estão a nossa volta, nesse exato momento. — Ele repetiu um pouco mais alto, mas ainda sem levantar o rosto e fingindo interesse nas almôndegas.
— Você meio que bateu a cabeça, certo? — Damien retrucou. — Não tem mais ninguém aqui.
— Exatamente! — Exclamou um pouco mais alto do que pretendia no início, até levantou a cabeça para olhar diretamente para o moreno. — Você ainda não percebeu que eu não tenho nenhum amigo!?
No início recebeu apenas silêncio e um olhar duro como resposta, mas ele não tardou a falar:
— Você é realmente idiota pra caralho, Pip…
— Vai embora! — Insistiu mais uma vez, olhando feio para Damien. — Eu não te quero aqui!
— Sim, você quer. — Ele respondeu com indiferença, ao mesmo tempo de um jeito que soou sério até demais. — Sem ofensas, mas tá bem óbvio que você quer um amigo.
Aquilo só podia ser uma piada.
— "Ofensas"... — Murmurou sombriamente e soltou o garfo. — Me deixa em paz. Eu não estou com muita vontade de ser feito de palhaço agora.
— Isso não é nenhum tipo de brincadeira. — Damien retrucou, sem mudar sua expressão ou o tom da voz. — Eu estou falando sério.
— Sai daqui! Eu não quero ser seu amigo!
— Mas por que não?!
— Você não entendeu mesmo? — A crescente irritação fez com que levantasse mais a voz. — Se você falar comigo todo mundo também vai te odiar!
Pip estava muito ciente que por gritar com Damien era quase certo que algumas coisas ruins iriam lhe acontecer, se não fosse agora não iria demorar muito tempo. Talvez fosse ser espancado, parecia uma suposição razoável e iria doer, como sempre, mas não era como se o loiro já não estivesse acostumado com isso.
— Bem, mas talvez eu não de a mínima para o que esses babacas pensam de mim. — A resposta veio calmamente apesar de a ponta de ironia, como se Damien não falasse nada além de o óbvio. — Já parou para pensar nisso?
No momento que segurou a bandeja com as duas mãos, apertando o plástico desnecessariamente, Pip não estava pensando muito bem. Quando, em um impulso que não soube dizer de onde veio, jogou por cima da cabeça de Damien, o loiro ainda não estava exatamente com a cabeça no lugar. Escutar o outro garoto falando daquele jeito realmente lhe tirou do serio de um jeito que o britânico não esperava que fosse acontecer.
O refeitório inteiro subitamente ficou em completo silêncio, todos os pares de olhos presentes voltados naquela direção e Pip não precisou nem mesmo de um segundo completo para se arrepender. Toda a raiva de antes foi rapidamente substituída por completo desespero.
— Meu Deus, o que eu fiz!? — Imediatamente se levantou e deu a volta na mesa, se aproximando do outro garoto. — Mil perdões! Eu não sei o que deu em mim! — Tirou a bandeja de cima da cabeça de Damien, ainda sem ter certeza do que fazer, e passou a recolher os pedaços de carne, alface e outros alimentos dos cabelos negros, sentindo a culpa e o medo pesar sobre os ombros. — Eu realmente sinto muito…
Damien parecia, antes de tudo, chocado e não moveu um músculo, mas antes que ele pudesse considerar ficar zangado com o pequeno britânico, algumas outras pessoas decidiram que era uma boa ideia bater no loiro por ele.
— Pip, por que diabos você fez isso com Damien?!
Não sabia dizer o exato momento em que Stan chegou ali, pois ficou ciente da sua presença só depois que ele lhe puxou pelo colarinho do blazer vermelho e Kyle, Cartman e Kenny estava logo atrás dele. Cartman estava com os braços cruzados e Kyle mantinha as mãos no quadril, ambos claramente irritados, já Kenny não olhava para o loiro com qualquer sentimento semelhante, na verdade ele parecia estar se divertindo com Pip prestes a ser atacado.
— Eu não quis fazer isso Stan… Realmente não sei o que deu em mim! — Justificou-se e tentou se afastar, mas, como o esperado, não conseguiu.
— Você é idiota, por acaso!? — Kyle falou alto, com aquela voz estridente e intimidante que apenas ele tinha, se colocando perto de Stan e apontando o dedo perto do rosto do loiro. — Damien é legal, qual é o seu problema Pip!? Quer levar uma surra ou o que?
— O judeu está certo. — Cartman bufou meio irritado, voltando a falar logo depois. — Sinto muito pelo que eu vou fazer agora, mas você meio que pediu por isso… — Ele afastou tanto Stan quanto Kyle de Pip e despejou uma caixa inteira de leite sobre a cabeça do britânico, sorrindo quando viu o estranho. — Na verdade não sinto.
O local inteiro permanecia em silêncio e ninguém parecia disposto a interromper, não quando claramente quem levava a pior era o francês – quer dizer, o britânico.
— Oh meu… Esse desperdício de comida vindo logo de você, bundão? Eu não tava esperando por isso. — A voz era de Damien, que soava ligeiramente entediada. — Sabe, eu realmente não ligo se vocês forem mesmo bater no Pip, mas façam isso por algo que ele fez para vocês, não para mim.
– Hhpp, hnnhp hmmnp hhmph hupmhg.
Aquelas palavras abafadas poderia ser traduzidas aproximadamente como: Mas ele nunca fez nada demais para a gente. Damien levantou uma sobrancelha, transmitindo certa descrença, ao ouvir aquela nova informação vinda de Kenny.
— Então por que isso se ele nunca fez nada para vocês?
— Porque ele jogou uma bandeja de comida na sua cara! — Exclamou Stan, parecendo certo de que aquilo era mais que o suficiente.
— Eu não me importo com isso. E vocês são uns idiotas.
Nesse momento Stan se afastou mais de Pip, apenas alguns passos para trás, murmurando algo sobre o quanto Damien estava sendo ingrato.
— Por que você tá defendendo ele? Olha o que ele fez com você! — Stan falou um pouco alto demais, praticamente gritou, e Kyle imediatamente concordou com a cabeça. — O Pip é só um francês de merda!
Ao terminar de escutar tudo Damien balançou a cabeça negativamente algumas vezes, rindo daquele jeito discreto e com uma maldade não dita, como se Stan tivesse acabado de falar algo muito estúpido. Mas de repente ele ficou sério, cruzou os braços e lançou um olhar mortal para o Marsh.
— Pip é britânico, — Comentou com uma raiva pouco velada no tom da voz. — não francês.
E Pip? Ele ficou apenas sem acreditar no que estava acontecendo, feliz demais para colocar em palavras. Mesmo assim não ousou sorrir.
~ DIP ~
Agora Damien e Pip estavam no banheiro masculino, com o loiro ajudando o outro garoto a tirar os restos de comida do cabelo. Não parecia que ninguém iria entrar ali tão cedo. Cinco minutos mais cedo ele havia defendido Pip quando lhe chamaram de francês e tentaram agredi-lo, uma atitude bem inesperada, especialmente vindo daquela pessoa em particular naquela situação específica.
O fato era: Havia jogado uma bandeja de comida na cabeça daquele garoto, e mesmo assim ele ficou do seu lado. Não podia negar que estava feliz, porém não conseguia deixar de se questionar do motivo que havia levado Damien a defendê-lo, não quando toda a situação apontava exatamente para o contrário.
— V-você não precisava ter me ajudado, Damien. — Gaguejou um pouco, depois de vários minutos em que ambos estavam quietos. –- Quero dizer, olha o que eu fiz com você-
— Eu realmente não me importo com isso. Só fiquei com um pouco de raiva porque eles te confundiram com um francês, não dá para acreditar. Parece que é de propósito. — Ele deu os ombros, tirando o último pedaço de carne do cabelo. — São uns babacas mesmo…
— Na verdade isso sempre acontece, todo mundo acha que eu sou francês desde que cheguei em South Park.
— Eu ainda acho que é de propósito, deveria ser proibido ser tão burro assim. — O garoto de preto olhou por alguns segundos para Pip, intrigado. — Mas você não faz nada?
— Não é como se eu não tentasse, mas ninguém nunca me escuta…
— Entendi. — Damien puxou a boina encharcada de leite da sua cabeça, entregando para o dono. — Acho melhor tentar secar isso.
— Provavelmente… — Pip também aproveitou para tirar aquele blazer bastante molhado na área dos ombros e das costas, olhando infeliz para todo o trabalho que teria mais tarde. Tinha colocado as roupas para lavar ontem.
Pip torceu a boina na pia, observando o líquido branco descer pelo ralo e logo em seguida fez o mesmo com a outra peça de roupa. O loiro não conseguiu não ficar nervoso naquele momento, não quando Damien estava bem ali do seu lado e só Deus saberia o que se passava na cabeça dele. Se ele não tivesse perdoado Pip? Ele lhe bateria? Por que ele ainda não havia feito isso, mas sim, apesar de tudo, estava sendo tão gentil…?
Mas é se Damien estivesse apenas a espera do momento certo para bater em Pip? Por Deus, aquele era o momento perfeito ! Eles estavam sozinhos e não haveria uma única testemunha, mesmo que houvesse, o mais certo era que a pessoa não fosse se importar. O que deveria fazer agora? Fugir? Correr? Se esconder?
— Porque você tá com medo?
Isso lhe pegou de surpresa, definitivamente, então olhou para ele enquanto tentava procurar por algumas palavras.
— Eu n-não estou... — Respondeu um pouco mais baixo do que pretendia e gaguejando sem perceber, mas não ficou encarando Damien por tanto tempo assim e logo voltou a olhar para a pia. — Por que você acha isso?
— O seu olhar não mente. — Ele suspirou impacientemente de um jeito que fez Pip querer se encolher. — Eu não vou bater em você Pip.
— Como eu posso ter certeza? — Retrucou imediatamente, enquanto torcia o tecido vermelho com força e mais leite escorria pelo ralo.
Silêncio por tempo demais e nesse instante Pip teve certeza que Damien tinha perdido a paciência com ele, mas, impressionantemente, estava errado:
— Não pode, mas eu não estou mentindo.
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