O quarto era iluminado pela escuridão da noite. Um guarda-roupa se localizava no canto esquerdo do quarto, perto da porta, enquanto a cama estava na frente da janela. Onde, por essa, era possível ver a Lua brilhando em seu auge, devia ser por volta da meia noite. Do lado da janela estava uma estante abarrotada de livros diversos, desde histórias infantis até romances clássicos como “Crime e Castigo” de Dostoiévski. Em um canto escuro do quarto, uma criança entre seus sete a oito anos, abraçava seus joelhos com a cara enfiada entre os braços. O garoto possuía belas madeixas castanhas com leves ondulações como as ondas do mar em um dia tranquilo. Seu rosto com traços finos era agraciado com adoráveis olhos marrons, ou para ser exato, olhos cor de açaí. Seu corpo, já maculado desde cedo, era coberto por bandagens sujas pelo sangue que escorria dos machucados causados por ele mesmo.
O garoto tentava ao máximo abafar o seu choro para não acordar os seus pais no quarto ao lado. Ele, novamente, estava se afundando em um abismo sem fim, onde o vazio que ele guardava no peito era sua única companhia. Pobre criança. Ninguém o iria compreender, e ele sabia muito bem disso. Tão novo e já havia descoberto o quanto o mundo pode ser cruel com aqueles que não se encaixam.
Ele se deixou viver uma eterna farsa. De dia era o filho perfeito, nunca causava problemas. O número um em tudo que fazia. De noite seus medos afloram, ninguém iria vê-lo mesmo. Ninguém nunca o viu. Não importava o quanto ele gritasse por ajuda. Ninguém nunca o escutou. O que é uma pena, já que eles não iriam ver como essa criança nasceu com uma inteligência fora do comum. Essa mesma inteligência foi o motivo de sua ruína. Ele a culpava. Se não fosse por ela talvez ele não tivesse percebido. Não tivesse percebido que nunca tinha sido amado. Que seus pais só se importavam com as aparências. Que seus irmãos estavam sempre ocupados demais para ele. Que as crianças o evitavam por seu jeito estranho de agir, um jeito que não condizia com a sua idade. E mais uma vez ele a culpava. Talvez ele pudesse ter um amigo se agisse como elas. Mas isso seria impossível. Ele sabia que heróis não existem, se existissem o que ele estava fazendo de tão importante que não podia salvá-lo de si mesmo? Salvá-lo de seu fim cada vez mais iminente?
Ele olhou em volta e notou que por alguma razão às sombras de seu quarto possuíam formas assustadoras para uma criança normal. Mas Osamu nunca foi uma criança normal. Ele sabia que os monstros não moravam embaixo de sua cama ou em seu armário. Os seres humanos que eram os verdadeiros monstros, eles apenas se disfarçavam com um falso sorriso gentil, mas uma hora ou outra sua face demoníaca sempre aparecia para o assombrar em seus sonhos mais frequentes.
Ele estava cansado. Cansado de estar sempre sozinho. Cansado do vazio que cada vez mais o consumia. Cansado de sua família que não dava a mínima para ele. Cansado daquelas crianças que riam do seu jeito de ser. Cansado de si mesmo. Cansado da sua fraqueza. Osamu Dazai estava cansado da vida.
Mas que culpa tinha ele? Era só uma criança. Tão pequeno e já sabia de tantas coisas que muitos morriam sem saber, pois estavam ocupados demais com suas vidas para se importar com o outro. Ocupados demais para olhar ao seu redor e perceber o que estava em sua frente.
Todavia, ele estava mais cansado ainda de sempre desistir de si mesmo, mas era justamente o que ele pretendia fazer…
O garoto levanta de seu cantinho escuro, o único lugar do mundo em que ele se sentia seguro, e vai em direção à saída de seu quarto. De lá ele caminha pelo extenso corredor, totalmente, na penumbra da noite. Com a chegada do fim do corredor ele se vê obrigado a descer o longo lance de escadas em espiral. Quando ele chega no último andar da casa ele se depara com a sala de visitas, sendo que essa possuía um enorme sofá na parede da porta de entrada tendo em frente a este uma televisão. No teto um descomunal lustre de cristal parecido com os dos castelos medievais. Uma mesa de centro entre a televisão e o sofá, no canto esquerdo um pequeno bar cheio de bebidas alcóolicas. Do outro lado se encontrava duas portas, a de correr mais próxima da escada levava para a sala de jantar, a outra de madeira de carvalho com uma vidraça branca no meio levava para a cozinha, e foi nessa que ele entrou.
A cozinha possuía uma bancada central que quase a dividia em dois, do lado esquerdo uma pia de três partes com uma mangueira “móvel”. Nesse mesmo lado também estava uma geladeira, prateada, com duas portas, sendo que em uma das portas tinha um filtro de água e gelo. Do outro lado, o direito, estava um fogão com seis bocas e em cima desse tinha uma coifa, ambos da cor preta. Mais ao lado um microondas que chegava a brilhar de tão limpo que estava, aparentemente era novo, pois o garoto não se lembrava dele lá antes. Na bancada central estava o que ele queria. Ao lado da tábua de cortar carne, estava o faqueiro com as mais diversas facas, desde pequenas e serrilhadas à grandes e afiadas, e foi a dita cuja que ele escolheu.
O garoto colocou a faca bem em frente a seu pescoço, ele pretendia se afogar no próprio sangue, e lentamente foi cortando, seu sangue escorria pelo corte de forma serena, sem pressa, como se tivesse o tempo do mundo inteiro para isso. Mas ele para.
Ele se lembra de um pequeno trecho de um poema lido a muito tempo de Gregório de Matos, e passa a refletir se isso realmente vai o livrar de toda a dor que mora em seu coração já machucado. No poema é comentado sobre as coisas efêmeras da vida, e talvez, um dia, ele seja feliz. E ele realmente quer acreditar nisso. Será que um dia esse vazio há de ser preenchido? Algo vai mudar em sua vida já tão sem graça? Um dia ele poderá, finalmente, ser feliz? Ele não sabe. O futuro sempre foi algo incerto, até mesmo para ele que segue a mesma rotina há anos.
Lágrimas escorrem em seu rosto, e dessa vez não é de tristeza, e sim pela esperança de um dia as coisas finalmente melhorarem. Ele joga a faca previamente manchada pelo vermelho, de qualquer jeito na bancada e sobe de volta para seu quarto. Com o pensamento de um dia sua tristeza acabar.
E essa foi a melhor escolha que ele poderia ter feito.
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