Passado o choque, a adrenalina na mente de Iruka o faz ficar irritado e nada mais. É claro que todo mundo iria sumir na primeira oportunidade. Obviamente! Sério, ninguém mais percebe as coisas? Nunca, nunquinha mesmo, um carro que mal saiu da montadora iria parar do nada, nem se Obito fosse um motorista ainda pior do que já é. As coisas não funcionam assim. Não existe essa aleatoriedade cósmica, é só juntar as peças que a situação vai se mostrar por completo e é justamente isso o que ele está fazendo agora.
Seu olhar passeia pelo cenário, observando cada detalhezinho, e quando decidem parar, fazem isso no carro apagado, a razão de todo o problema inicial que resultou na sua parada dramática e muitos suspiros de tensão. As sobrancelhas castanhas se aproximam um pouco quando um novo detalhe é percebido. Tem uma poça estranha perto dele, toda lamacenta, recente, é claro, e vê-la só colabora com sua nova teoria muito bem embasada, digna de publicação.
Qual teoria? Vamos lá... Carro parado na frente de uma construção caindo aos pedaços, no meio de uma chuva ridícula que nem estava na previsão do tempo, justamente durante a noite de Halloween? Por favor, isso é óbvio. É influência do coisa ruim! Das bruxas queimadas, dos fantasmas, os não camaradas, dos malucos e tudo mais, e aqueles outros idiotas devem ter sido arrastados por isso, eles são fracos de juízo, sempre foram.
Ok, ainda não é oficialmente dia trinta e um, estamos na noite do dia trinta, mas, com certeza, em algum outro lugar do mundo já é, então... Só pode ser isso, porque, senão, nada mais faria sentido! Não tinha como Kakashi e Obito terem somente desistido de resolver o carro e dar um rolê, e Rin não iria desaparecer no meio de um corredor estranho, ela tem juízo o suficiente para não fazer uma palhaçada dessas a troco do nada.
Além do mais, o tempo passou de um jeito tão estranho desde sua saída do carro que nem daria para tentar aplicar alguma lógica nele. Iruka até conferiu duas vezes a hora no celular sem sinal antes de jogar ele, com seus últimos vinte por cento de bateria, no bolso. Passaram, pelo menos, meia-hora desde que a hora tinha sido vista antes, e não parece que se passou tempo todo. Tipo, só foi sair do carro, andar até aqui e entrar, ninguém seria tão lento, nem mesmo Rin com suas perninhas curtinhas.
Seria impossível ele ter parado tanto tempo parado dentro do motel, completamente assustado. Né? Impossível! Qual é, a vida não é um desenho animado, as coisas precisam de alguma razão. Fantasmas e demônios? Bem, tem histórias por aí, algumas devem ser verdadeiras, porém ficar paralisado como um frangote só porque deu uns passinhos para dentro de um lugar escuro e sujo? Não, isso não. Nem quando Kakashi decidiu lhe perseguir como um maníaco seu cérebro ficou derretido.
Suspirando, Iruka troca o peso de um pé para o outro e aperta as têmporas tensas, massageando-as enquanto pensa no que fazer. Seu cérebro é grande demais para só dar meia-volta e retornar lá para dentro, o que seria uma decisão digna da personagem loirinha burra que morre depois do cara gostoso nos filmes, mas não existe nenhum outro cenário bom. Ficar na chuva soa tão terrível quanto andar até o carro, percorrendo por conta própria o vazio escuro até ele.
Em teoria, carros são seguros. Fechados, com blindagem natural, banquinhos quentes e tem lanches por aí, mas Kakashi e Obito estavam lá e eles sumiram. Ou seja, o histórico não é lá muito bom... Do outro lado, temos a opção do ar livre. Ah, o bom e velho ar livre! Nuvens escuras, céu preto, chuva fria e ventos assustadores soprando nas árvores, quem não gosta disso?
Contudo, apesar do começo cheio de desvantagens, esse lugar na varanda é meio privilegiado. Dá para ver toda a frente, praticamente, então se alguém surgisse – desse plano de vida ou não – não o pegaria de surpresa, além do mais, o vento fresquinho contra a pele quente de tão nervosa cai bem.
Carro com sumiços repentinos ou lado de fora igual paisagens de filmes de terror? Essa sim é uma escolha difícil! Tão importante quanto escolher o seu sabor de sorvete no meio de milhares de opções, a diferença é que aqui escolher errado pode significar sumir para sempre, ou no mínimo estragar o seu cabelo com esse tanto de umidade e nenhum produtinho.
Discordando do ritmo dos pensamentos, que com certeza ia chegar em algum lugar, em algum momento, o céu faz um daqueles barulhões de trovão e, com o coração batendo muito rápido, Iruka não pensa duas vezes antes de somente correr. Mas suas passadas não levam a lugar algum e ele demora muito para entender que o problema não é sua falta de participação em atividades físicas, e sim porque tem alguém o segurando.
Assustados, os olhos dele vão na direção do toque novo e a garganta esticada treme na hora que vê uma mão pálida, com dedos ossudos, segurando seu ombro direito. Uma mão não vem sozinha, ao menos que você seja da família Addams, e por isso as pupilas esbugalhadas sabem para onde ir, mais atrás.
E, sinceramente? Iruka não sabe se preferiria estar vendo a pessoa ou não. A tal pessoa é um branco esquisito, carregando um guarda-chuva enorme, todo preto, e que está vestido como se só tivesse apenas pegado um monte de roupas e as empilhado no corpo.
Sério, quem mistura uma camisa de flanela – aquelas batidas, xadrez, vermelho e preto – com um casaco de couro, calça jeans com estampa militar, botas para a neve, altas e com solas grossas, e ainda usa um gorro velho? Com certeza não alguém normal! Se ele não for um assassino de pessoas, com certeza pelo menos gosta de matar a moda. Fato.
Mas sua garganta está ocupada demais gritando um logo e agudo grito para externalizar qualquer um desses comentários muito pertinentes. Tem um esquisito aqui. Tem um esquisito segurando o seu ombro. Tem um esquisito segurando o seu ombro enquanto carrega um guarda-chuva enorme, como se isso fosse normal. Nem se fazem mais desse tamanho, os atuais são bonitinhos e compactos, ideais para a vida sofredora da cidade grande.
Quando fica óbvio que gritar não vai levar a nada, porque o rosto do homem, cheio de rugas e linhas de expressão sombrias não mudou em nada, Iruka só passa a encará-lo. Claro, olhar para os olhos pretos envelhecidos não é nada legal, mas pelo menos assim vai parecer que existe um pouquinho de firmeza no seu ser. Só um pouquinho, porque claramente suas pernas estão tremendo...
— Você... — A voz do estranho é mais fria que o ambiente, causando arrepios que Iruka sente por todo lugar. Todo lugar. — Você vem comigo — ele continua e, ignorando todas as regras de bom comportamento, apenas começa a andar, soltando o ombro e dando meia-volta, rumo ao motel.
— Ah, com você pedindo assim! Com certeza vou! Que charmoso!
Iruka já decidiu: Ele vai ficar aqui, parado. Correr não faria sentido, tem muita lama e está frio, e se abrigar um carro parado seria tão seria tão seguro quando se proteger com uma folha de papel. Alguns podem chamar esse seu comportamento de birra, especialmente quando verem que sua postura é estar de braços cruzados e batendo um pé no chão constantemente, igual a uma das crianças que fedem do seu estágio.
Mas na realidade é um método de persuasão extremamente efetivo. Isso sempre deu certo, mesmo quando estavam decididos a agirem de tal jeito, era só se recusar a seguir o fluxo que cedia. Nem sempre precisa ser um protesto físico, uma vez foi só ficar sem responder Kakashi por uma hora que, magicamente, ele decidiu que queria sim ir para um evento de horas sobre as novidades do mundo cosmético. Simples assim!
Só que esse velho deve ser cego, porque ele continua dando seus passos duros e estranhos na direção da pousada horripilante, ignorando toda a mudança de postura. Quem ele pensa quem é? Além de bizarro, claro.
Iruka está pronto para gritar mais algumas coisas quando sente gotículas geladas batendo contra sua pele, causando arrepios terríveis por toda parte. A chuva! Quase tinha dado para esquecer dela, do seu frio, do jeito que ela consegue estragar todo o look e bagunçar um cabelo muito bem cuidado, coisas que, sinceramente, são bem piores do que ser tratado como uma coisa inútil e sem voz.
Sua firmeza só aguenta até a segunda onda gelada antes de correr para perto do velho. — Bem que eu queria dar um passeio, sabe? E, aliás, esteja avisado que meu pai é policial! — Iruka fala enquanto seu nariz arde, incomodado com o cheiro de naftalina e perfume barato. Ô, céus, que destino terrível! É bom mesmo que os outros estejam em situações piores. Bem piores. — E eu consigo morder! E minhas unhas são grandes! Grandes!
— Grandes...? — O esquisito repete, preso no seu próprio mundo. Eles já estão perto da porta que há pouco tempo foi o lugar de fuga. — Vou te levar para ela. Ela está te esperando.
— Ela?
Para variar, ninguém responde sua pergunta. Não que Iruka precisasse de uma resposta dessa vez, ele sabe muito bem qual ela ele está se referindo. Somente uma pessoa estaria o esperando dentro desse lugar escuro, velho e largado pelo tempo: A Morte. Ela é a única certeza para todos! E qual lugar parece mais adequado para isso que esse aqui?
Morrer em um motel velho meio que parece certo a julgar sua jornada de vida, cheia de altos e baixos, mas com certeza não agora, está cedo demais. Seria preciso mais alguns anos para seus seguidores nas redes sociais serem o bastante para gerar alguma comoção de verdade, o suficiente para lembrarem da sua vida como lembram daquela diva, a princesa Diana. E sua família? O que ela seria na ausência? Especialmente o Obito, ele precisa do seu irmãozinho para ser um homem decente.
Sem sua presença, Obito mudaria e aí a coitada da Rin iria sofrer por tabela. Isso é, se ela ainda estiver por aqui, porque ela estava dentro desse abatedouro antes e não voltou. Talvez esse homem tenha levado ela para lá? Oferecendo um apoio silencioso antes dos segundos finais.
E... Meu deus, o Kakashi! Kakashi não pode ficar solteiro agora. Foi tão difícil se encaixar com esse homem, aprender a não surtar com o jeito dele, com seus hobbies idiotas, com seu gosto musical terrível e isso tudo para quê? Não ser nem pedido em casamento em uma praia luxuosa e privada, que porventura vai ser sua, como um presente?
Iruka não quer morrer. A verdade é essa. Os outros são importantes, do seu jeito, mas sua maior vontade é apenas continuar aqui, feito de carne e osso.
Se o coração dele, dolorosamente agitado dentro do peito não bastar para provar isso, o fato de que suas coxas estão tremendo ainda mais e os ouvidos zunindo, recusando-se a ouvir o mundo de verdade, devem servir.
Nunca se dá para pensar nisso no dia a dia, mas viver é bom! Apesar de ter coisas terríveis como dia de limpar o apartamento ou dietas, é algo extremamente agradável e olha que nem deu tempo de experimentar a vida de verdade ainda.
Qual é, até pouco tempo atrás Iruka era apenas um adolescente sonhador que queria fazer tudo ao mesmo tempo, ele mal se acostumou com ter um apartamento inteiro à sua disposição e fazer o que bem desejar. Essa é a hora de lutar pela vida! Pelo direito de continuar aqui, curtindo cada dia e nada mais. Há esse fogo nas suas veias, queimando junto do seu pulmão sem ar.
Porém, por algum motivo, seu corpo se recusa a fazer qualquer outra coisa além de andar, seguindo o ritmo do homem, e é assim que ele se vê mais uma vez dentro da recepção do motel. Uma versão muito mais detalhada dela porque agora todas as lâmpadas disponíveis foram acessas, iluminando os detalhes antiquados com um tom quente alaranjado.
— Que tal você pedir para ela vir me encontrar do lado de fora? — a pergunta é sussurrada e depois o jovem estrega as mãos suadas na roupa. Ele engole em seco e segura o choro, pela primeira vez desejando tudo, menos conseguir entender o que está acontecendo. — Juro que não fujo!
Disposto a fazer qualquer coisa para sobreviver, Iruka olha na direção do homem e seus lábios fazem um biquinho adorável, enquanto os olhos castanhos se fixam em uma mudança nada agradável. A porta que o trouxe está fechada e a julgar por todo o contexto, não deve dar para voltar por ela. Não que seus joelhos moles conseguiriam correr até lá, porém achar que conseguiria serviria para levantar um pouco a moral...
Não é preciso pensar mais para saber que não tem mais volta. A vida funciona assim mesmo, uma vez decidida a hora da morte, nada, nem ninguém, consegue vencê-la. Seu coração, contrariando as expectativas, agora está batendo muito devagar, flertando com a exaustão, o seu estômago está cruelmente gelado enquanto sua boca, aquela sempre lambuzada de brilho labial, está seca, tão seca que sentir o ar sendo expelido e puxado através dela incomoda.
Bem, uma coisa é certa: Todo esse desespero não importa em nada para o acompanhante misterioso, que agora será chamado de carrasco. Se importasse, ele não estaria tranquilamente balançando seu guarda-chuva, agora fechado, e olhando as gotas pouco a pouco se acumulando no chão empoeirado, cheio dos desenhos de pegadas recentes. Três tipos diferentes.
Será mesmo que não daria para ganhar essa situação agindo como um brutamontes? Socar essa cara enrugada, chutar a porta e correr rumo a liberdade? Ou pelo menos correr! Correr é seu ponto forte, toda vez que a situação aperta suas pernas dão um jeito de lhe levarem para longe, isso sem perder o rebolado.
Os olhos de Iruka, lentamente, encontram o caminho à frente, o corredor longo e desconhecido. As paredes claramente foram decoradas no século retrasado porque nunca nesse mundo alguém usaria papel de parede floral tão brega, com tons de verde, e ainda manteria um rodapé alto marrom. Do ponde onde ele está, não dá para ver o fundo desse corredor porque as sombras estão sendo muito eficientes em manter a aura de mistério, apesar de ter várias lâmpadas acessas daqui para lá.
Não parece ter nenhuma porta aberta, nenhuma mobília no meio, apenas algumas coisas perdidas penduradas nas paredes e talvez nem tenha algum desvio. Pode ser que tudo seja uma interminável linha reta, sua própria versão do inferno baseada na sua falta de apreço por caminhadas casuais.
Ao fundo, o carrasco tosse, uma tosse seca e estranha, e todos os pelos de Iruka se arrepiam. O tempo está passando, cada segundo perdido é, bem, um desperdício e não dá para só aceitar isso aqui. Sério, não dá. Não dá! Já passou da hora de tomar uma decisão, qualquer uma.
— Faz muito tempo que não recebo visitas... — A voz ecoa pelo espaço, envolvendo cada mobília antiga com ainda mais melancólica. Ela tem até um sotaque, do tipo que não se costuma ouvir nas cidades, porém não dá para saber de onde. — Nem estávamos sabendo como proceder, mas demos um jeito. Ah, os jovens, sempre tão barulhentos e exagerados! Você é o mais quietinho!
Demos um jeito? Os jovens?! Iruka agora tem todas as respostas que estava procurando, tem mais de um esquisito à solta e os outros foram pegos por eles, um a um. Ele deve ser o último. Claro, o último a ser pego pelos esquisitos sempre é o personagem com o maior potencial só que não tão valorizado porque o falta brações como os de Kakashi. Isso aqui pode até ser um daqueles filmes que são gravados com cenas reais, igual a vários segundo o Reddit.
Sabendo de tudo isso, Iruka então faz a única coisa que conseguiria: Corre. Ele sente o piso abaixo dos seus pés afundar a cada passada e consegue ouvir o rangido chato o acompanhando, tudo enquanto seu corpo molhado vai esquentando e seu coração volta ao estado de agitado, disposto a participar dessa ideia estranha.
Tomado pelo desespero, ele segura na primeira maçaneta que alcança, bem gelada. Sua mão balança ela uma, duas, três vezes e nada acontece. Outra maçaneta é escolhida, da porta ao lado, e mesmo usando o dobro de força, mais uma vez nenhum sinal de abertura. Não é possível que todas estejam fechadas. Se estiverem, do que adiantaria tentar fazer alguma coisa?
Tremendo, sentindo cada músculo no lugar erado, ele olha para trás e sente vontade de vomitar na hora que encara o velho se aproximando, dando aquelas passadas estúpidas e lentas enquanto mantém o guarda-chuva baixo, se arrastando no chão. A ponta metálica está arranhando o piso, empurrando para longe a sujeira acumulada pelo muito tempo sem limpeza.
Não é uma visão nada agradável, nenhum pouco e por isso Iruka tenta ir para mais outra porta, uma do lado oposto. Quando a maçaneta se mostra igual as outras, lacrada, ele tenta outra coisa, usar o próprio corpo como ferramenta, jogando-o contra a porta, e a única coisa que isso o oferece é dor. Seus olhos voltam para encarar o velho, as pupilas enormes, cheias de medo, e elas ficam ainda maiores quando não encontram o dito cujo.
Ele estava aqui agora! Não existem dúvidas disso, nenhum pouco. Às vezes têm aqueles momentos estranhos onde coisas acontecem e você tenta incessantemente arrumar razão para justificá-lo, contudo dessa vez não dá. A coisa que estava vindo, arrastando a ponta da guarda-chuva no chão, e então evaporou.
Contudo, ao invés de se ocupar com procurar uma razão, Iruka somente volta a correr, decidido a ignorar as estúpidas portas Seu único objetivo é seguir em frente, o corredor tem que terminar em algum lugar e chegar em algum canto é melhor do que ficar no meio do nada.
Ao invés de se perder de vez, calando-se no meio do perigo, a mente agitada decide prestar atenção no mundo ao redor, seus mínimos detalhes irritando. O cheiro de mofo está mais forte, a poeira faz seu nariz coçar, e a umidade do seu corpo misturado com tudo isso não soa bem. Sua nuca está suada, tem cabelo grudado por todo o rosto e seus lábios não param de doer, exaustos de serem responsáveis pela respiração.
Nunca teve um momento em que seu corpo se sentiu tão frágil quanto esse. Parece que cada passada é resultado de uma luta longa, suas pernas sempre tremendo antes de, sob o som de rangidos, assumirem novas posições.
Quando chega bem no meio do corredor, no ponto em que as luzes da recepção não servem para muita coisa, o foco naturalmente vai para um interruptor perto, com duas chavezinhas. E não é preciso um segundo pensamento para a mão esquerda dele decidir ir até lá, ligando as duas partes.
As lâmpadas presas no teto, redondas, com o vidro protetor embaçado, se acedem em sequência, um de cada vez, e no fim, ao invés de ajudarem de verdade, elas começam a oscilar, piscando em um ritmo diferente das piscadas dos olhos. Observar isso por muito tempo é quase alucinógeno, mas Iruka sabe que é melhor assim do que preso nas trevas.
Buscando alguma estabilidade, os olhos castanhos vão para frente, rumo ao fundo do corredor. Com as novas luzes, dá para ver o que antes estava escondido: Um espelho, no formato de um quadrado perfeito, com bordas em douradas e um vidro que, mesmo embaçado, consegue mostrar o reflexo de Iruka. Um reflexo estranho, que não se equipara ao que existe nas lembranças, sempre tão belo e radiante.
Ninguém deve gostar de ser ver todo destruído, descabelado, cansado e completamente assustado, mas com certeza Iruka sente mais fundo. Seu brilho se perdeu nesse lugar, dando lugar a algo que combina bem mais com a aura escura, apertada e largada pelo tempo. Ô céus, nem seus pais o reconheceriam desse jeito! Parece que sua vida está sendo sugada antes mesmo da hora de conhecer a Morte.
Encarando a si mesmo, Iruka se aproxima mais e mais até chegar no ponto em que suas mãos, suadas e trêmulas, encontram a superfície fria e plana. A respiração ofegante mancha a imagem refletida, extremamente próxima, e logo fica impossível reconhecer detalhes. Tudo parece apenas um borrão, algo sem forma ou importância.
Iruka ainda não acredita no que está acontecendo. Nenhum pouco. Há uma voz racional e mandona, que soa muito parecida com a dele, dizendo que é preciso olhar a situação de verdade, para além dos pensamentos. Só que tal voz não basta para cessar as outras vozes que estão discutindo para saber qual versão do inferno que acreditam é a real.
Ele deveria ter vindo junto da Rin ou ter chamado para Kakashi para fazer sua escolta. Na verdade, era para nunca ter saído do carro e apenas visto seu irmão mais velho resolver as coisas. Obito sempre cuidou da sua segurança, do seu conforto, de absolutamente tudo. Do que adiantou ser tão independente ou decidido? Nada! Olha só essa situação.
A garganta esticada treme, mostrando o pequeno pomo de Adão, e então as pontas roliças dos dedos limpam o embaço do vidro, exibindo mais uma vez o rosto suado e assustado a centímetros de distância. O seu rosto não passa do de um garotinho assustado e, sinceramente, isso é o que resta.
Sentindo o passar dos segundos graças a cada batida do coração, Iruka mordisca o lábio e fica ereto. Não tem ninguém no fundo do corredor, o velho continua sumido, e agora existe um caminho para se escolher. Sim, caminhos. O corredor se divide em dois, um para esquerda, outro para direita.
O da esquerda aponta para o que parece ser a parte dos quartos, é uma área aberta, com andares, escadas e muitas portas, enquanto o outro é uma continuação desse ambiente escuro e sombrio. Não é difícil saber para onde ir, sinceramente, e quanto mais pensa nisso, mais Iruka sente que realmente procurar ar puro vai fazer bem.
Pela primeira vez depois de muito tempo, os pés dele se movem com certeza, apontando para o lado esquerdo. Nunca ele se sentiu tão grato pela arquitetura dos motéis decadentes e sua tremenda falta de apreço pela privacidade.
Um passo é dado, depois outros e na hora do terceiro, algo impede Iruka. Uma coisa tão primitiva que ele não entende de cara, mas que se repete quando um som quebra a presença da sua respiração ofegante. É a Rin. Não dá para entender o que ela está fazendo, quais sons estão emitindo, mas é ela!
Passado o choque, o rosto cansado vai na direção do som e sinceramente nem é uma surpresa quando o queixo arredondado termina apontando na direção do caminho sombrio. É claro que sua cunhada estaria lá, sofrendo na mão da coisa bizarra que decidiu fazer morada dentro disso aqui.
Iruka engole em seco e aperta as mãos, sentindo suas unhas afundarem nas palmas. A liberdade está tão perto, dá para sentir seu aroma doce – chuvoso e carregado de floresta -, e a brisa está soprando seu cabelo, sussurrando palavras muito tentadoras, mas isso não basta. Deveria, seu instinto de sobrevivência está repetidamente dizendo isso, só que não basta e é essa a verdade, tudo porque Rin está no lado oposto.
Claro, seria preciso só dar alguns passos rumo à segurança para poder esperar a noite passar e depois seguir em frente, porém e ela? Se ela ainda está por aqui é porque não pôde voltar, ninguém em sã consciência escolheria ficar nesse lugar! Faz tanto tempo que eles estão separados que qualquer coisa pode ter acontecido, imagine só estar sozinho, sem qualquer expectativa de sair por conta própria...
É uma situação desesperadora! Ninguém deveria sentir que não vai receber ajuda de ninguém, como se não tivesse valor. E logo Rin, alguém que sempre gostou de colocar o outro a frente.
Iruka, diferente dela, nunca se considerou uma pessoa extremamente empática, embora sempre tenha chorado vendo filmes bonitos, e por isso fica surpreso consigo mesmo ao ver seu corpo indo na direção do perigo. Correndo, na verdade. Marchando com pressa na direção da voz de Rin, assistindo os detalhes da parede como borrões confusos.
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A sensação da xícara morna na ponta dos dedos é agradável, mas não melhor que a sensação de estar bebendo o chá fresco, feito diante dos seus olhos por uma senhora simpática. Seu cabelo ainda está molhado, mas a água gelada que escorre deles parou de incomodar desde que conseguiram uma toalha felpuda para ficar nos seus ombros.
Com toda sinceridade do mundo, aqui nem parece fazer parte do restante do mundo. Enquanto a paisagem de fora é escura, fria e desolada, e a pousada é velha e vazia, aqui é quentinho e parece ter alguma vida. Muita vida, como se fosse um pedaço de uma casinha qualquer transportado para outro lugar.
Algumas fotos foram penduradas na parede cor de creme e elas revelam várias paisagens, algumas até repetidas, porém em estações diferentes, e observar elas por tempo demais alimentam uma certa curiosidade. Por que alguns lugares mereçam mais visitas e outros não? Qual o critério? Além, tem um relógio perto de uma das portas, a que dá para o corredor, e ele faz um barulhão sempre que os ponteiros pesados se movem.
— Está quente demais? — A senhora pergunta, cheia de cautela. Ela tem um rosto muito agradável, com bochechas um pouco caídas, olhos azuis bem clarinhos, sobrancelhas ralas e um cabelo branco curto. O esposo dela está largado na cadeira de balanço, completamente ensopado, e um guarda-chuva tão molhado quanto está largado nos pés dele.
— Ah, não... — Rin endireita os pés, deixando o direito, descalço, tocar no piso de madeira um pouco frio. Mas isso não a incomoda de verdade, tudo porque o restinho de líquido na chaleira está servindo com um excelente aromatizador que acalma até seu espírito irritadiço. — Tá tudo bem, muito obrigada. Adoro chá.
— E por que está com essa cara tão séria?
— Só estou preocupada com meus amigos, eles são... Complicados. Muito complicados.
Tanto Rin, com seus olhos redondos de cílios longos, quando o casal, olham ao mesmo tempo na direção dos passos pesados, e os três concordam com a situação, porque possuem a mesma expressão de surpresa misturada com bom humor. A essa altura do campeonato, todos sabem com o tipo de pessoa que estão lidando, infelizmente. Não deve ser todo dia que é preciso lidar com um grupo totalmente desajustado de jovens, boa sorte aos envolvidos...
Mesmo assim, foi impossível para eles não se encolherem um pouco na cadeira na hora que a porta de madeira foi aberta com um chute. E o coração de Rin acelerou um pouco no momento em que viu Iruka, ofegante e molhado, surgir no meio da nuvem de poeira. Os olhos dele, selvagens, logo encaram seu rosto e eles provavelmente não viram a realidade, porque não perderam em nada o fogo.
— Soltem a minha amiga! — Ele enfia a mão no bolso e levanta, imponente, um pequeno borrifador preto. Presente de Madara, com certeza. — Tenho um... — Seu polegar aperta a válvula várias vezes, borrifando no ar, como se servisse de algo, o líquido. — ISSO AQUI! DE PIMENTA!
— Pimenta? — O pobre senhor, que antes tinha ido tentar trazer Iruka para cá, ao seu pedido, finalmente se pronuncia. — Você quer pimenta? Amor, ele quer pimenta!
— Iruka...
— Rin! Rin Nohara!
— Iruka! — Rin repete e então suspira, igual faz quando Obito está enchendo a paciência com suas bobagens. É difícil lidar com essa família, especialmente se você tem um pouco mais de visão de mundo. Porém ela gosta, porque senão, não teria deixado a xícara na mesa pela metade e se levantado, pronta para resolver a situação de uma vez por todas, usando algo em falta no mundo: bom-senso. — Relaxa ai, está tudo bem. Tem chá, quer?
— Eu vim te salvar. Alô? — Iruka balança o frasco. — Vamos sair correndo, eles estão chocados com a minha presença!
— Me salvar? Está tudo bem! Vamos lá, senta aqui...
Dá para ver as engrenagens na mente do irmãozinho do seu namorado funcionando conforme os olhos dele vão e voltam pelo cômodo, vasculhando os detalhes e formando uma história só. Uma história típica dele, claro, seguindo suas próprias conclusões que com certeza não podem ser menos dramáticas que uma daquelas séries asiáticas que aparentemente todas as suas amigas gostam.
Um segundo passa, depois outro e então mais um, e nada acontece. Os dois senhores estão impacientes agora, trocando olhares nada discretos entre si que devem significar “O que a gente faz com esse estranho?’, e é mais fácil se ocupar com o movimento do relógio que com a postura desconfortável de Iruka enquanto ele pensa no que dizer ou o que acha. Não dá para ser tão difícil assim aceitar a verdade, é só engolir que nada estava acontecendo e pronto.
— Quer alguma coisa para comer?
Até Rin é pega de surpresa quando outro baque quebra o clima do cômodo. Ela arregala os olhos e tampa a boca na hora sente o vento gelado entrar pelos fundos, e se vira na direção da porta dos fundos a tempo de ver Kakashi e Obito entrando por ela, desajeitados. Os dois se endireitam logo depois, um claramente evitando olhar para o outro, e eles juntos obviamente só possuem olhos para Iruka. Sempre! Nem quando estão pingando como cachorros molhados conseguem pensar em outra coisa.
— Iruka? Está tudo bem? — É tudo o que Obito diz antes de começar a andar na direção de quem não tem olhos para ele.
Ah, não, Iruka só consegue encarar Kakashi agora, e por isso não é surpresa quando os dois se reencontram primeiro e se abraçam, as mãos brancas e fortes apertando costelas que devem ser bem delicadas. Naturalmente, logo depois eles se beijam, um querendo engolir o outro enquanto sussurram coisas que Rin prefere não ouvir.
— E você — Obito começa e Rin já sabe o que está vindo, tanto que sorri na hora que encara os olhos escuros do namorado. Ele também sorri, embora tenha um pouco de desgosto nisso. O motivo, bem, provavelmente o barulho de beijo no fundo. — Como você está, minha gatinha?
— Nunca estive melhor, sabe? Foi uma noite tão divertida!
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