Acordo com meus olhos úmidos e o sol quente fritando meu rosto como se eu fosse um pedaço de toucinho. Aos tapas, busco meu celular na cama, somente para encontrar ele sobre a minha barriga, e uso para checar as horas. Meio dia e cinquenta e dois - eu havia madrugado novamente. Checo minhas redes sociais - mais especificamente o twitter, minha janela para o mundo, onde todos vão ouvir minhas sábias opiniões, como discípulos em uma ágora ouvindo os ensinamentos de um grande mestre. Me deparo com uma surpresa, mais de mil notificações, todas dizendo a mesma coisa, todas trazendo a mesma mensagem buscando me pressionar para algo, todas exigindo minha presença no Flow Podcast. Meu inbox também tinha uma notificação, uma mensagem de Igor3K, dizendo que eu estava convidado e que iria ser muito bem tratado. Foi como se uma ferida antiga houvesse aberto em meu peito - um clarão de tristeza e ansiedade cegava meus olhos enquanto uma gota de suor escorria pelo meu rosto torrado pelo sol. Eu olhava, trêmulo, para o celular: será que eu iria conseguir responder? Era tudo o que eu me perguntava. Acontece que essa cicatriz que se abriu não partia do público, nem da exposição e muito menos de Igor, mas na verdade de um ferimento muito grave e antigo, um coração partido, deixado em pedaços pelo grande maconheiro Monark.
Decidi que o melhor que eu poderia fazer seria tomar um banho, me recompor antes de tomar qualquer decisão importante. Prontamente montei em meu carro de golf em minha mansão e ordenei que o chofer me levasse até o banheiro. No caminho eu segurava o celular com força, eu mal conseguia conter minha ansiedade e era visível. Zilda, uma de minhas faxineiras, me olhava com preocupação conforme eu chegava no banheiro. “O senhor está bem, Sr. Neto? Metade do seu rosto parece pálida e a outra metade vermelha, como se tivesse tomado sol”. Não tive culhões para responder, somente entrei em meu banheiro, liguei os holofotes e entrei em meu banho de hidromassagem de imersão. Sem que eu pedisse, Zilda me trouxe o café da manhã durante o banho, o que foi de bom grado e bem aceito, dado que estava sem comer a mais de 12 horas. Tudo ajudou para que eu relaxasse, mas não ajudou nem um pouco a tomar uma decisão. Decidi pedir a ajuda de alguém próximo, meu irmão Lucas.
Após me vestir atravessei a mansão. Lucas estava gravando um de seus vídeos. Rodeado de crianças e sua equipe de filmagem, ele rolava em uma poça de chocolate como um porco rola na lama, rindo histericamente. O chamei, e a psicopedagoga da equipe logo o levantou e lhe deu uma toalha. Fomos até outro cômodo isolado para conversarmos: “Lucas, não sei o que fazer. Me convidaram para o Flow, eu acho importante que eu vá expor ainda mais minhas ideias, mas eu não sei se conseguiria olhar para a cara dele e viver tudo aquilo de novo”. Ele abriu um sorriso imenso, de fora a fora, e arregalou os olhos. Calmamente, ele olhou fixamente para mim e proferiu “eu sou uma foca” enquanto batia palmas histericamente, espirrando chocolate para todos os lados. Naquele momento percebi que independente do que eu decidisse seria uma decisão que eu teria que tomar por conta própria.
Deitei em minha cama, ponderando qual rumo tomar. A ferida já estava aberta e meu coração sangrava. Meu cérebro já havia revivido a memória dos tempos bons e dos ruins que passamos juntos, da história que tivemos. De uma forma ou de outra, Monark havia deixado sua marca em meu coração, uma marca que eu jamais seria capaz de me livrar. A partir dali eu não tinha mais nada a perder. O sentimento que me motivou não estava claro, talvez fosse um pouco de mágoa, talvez fosse paixão, talvez fosse até mesmo um misto masoquista de ambos, mas o fato é que eu o fiz: eu respondi 3K e disse que seria uma honra participar do podcast. Ele rapidamente me respondeu, dizendo estar muito animado e que tinham um espaço vazio no último horário de hoje. Queriam que eu participasse. A ferida em meu peito ficou mais funda, mas, tremendo, respondi que sim. Eu tinha, agora, quatro horas para me preparar. Eu não sei o que poderia fazer, mas é certo que eu precisava encarar esse fantasma.
Me aprontei uma hora antes e me dirigi até o endereço que me forneceram. meu corpo estava frio, o motorista, preocupado não dizia nada. Ficamos parados por cerca de 15 minutos na porta da grande casa enquanto eu tomava coragem para entrar, meus músculos estavam tensos e eu não conseguia nem piscar. Antes que eu pudesse tomar qualquer atitude, a porta se abriu. Igor e Jeanzão saíram e começaram a me chamar, olhando para minha limousine. Não tive escolha, o melhor que eu podia fazer naquele momento era manter minha aparência. Coloquei meus antigos óculos escuros - uma relíquia de um passado do qual eu faço parte, mas que compreendo que se foi com a idade, mas que hoje me ajudariam a esconder a ansiedade. Os cumprimentei educadamente, mas antes que eu pudesse falar mais alguma coisa ouvi um sonoro e contínuo “Caraaaaaaaaaaalho” vindo de 3K, com seu carregado sotaque carioca. Congelei no lugar. Será que fiz algo de errado? Será que ele sabe de meu passado com Monark? Tudo corria na minha mente naquele momento. “Parece que tu dormiu na praia parceiro, alá, toscão, tua cara tá toda queimada, parece um salmão”. Eu respirei aliviado e dei um leve sorriso. Igor, com seus trejeitos cariocas, somente brincava um pouco comigo.
Fui guiado por dentro da casa e Monark já estava no estúdio. Igor abriu a porta e uma densa névoa não permitia que eu enxergasse um palmo em minha frente. Quando ela se dissipou, meu coração gelou de vez. Ele estava lá, hoje muito mais velho. Seus trejeitos delicados agora haviam sido substituídos por uma feição mais desleixada e simples, quase que escondida atrás de seu cabelo encaracolado e desarrumado. Monark continuava atraente, como o conheci, mas hoje havia nele um ar diferente de maturidade, como se aquele garoto de nosso passado houvesse crescido com os anos. Em sua mão direita ele segurava um cachimbo recheado com o seu conhecido “tabaco orgânico”. O primeiro pensamento que correu em minha mente foi de quanto eu teria brigado com ele por isso no passado distante em que nós convivemos, o que me trouxe um pouco de paz, me deixando em um lapso de uns cinco segundos, que foi quebrado pela estridente voz de Monark, pedindo calmamente para que eu me sentasse. Igor me explicava, alí, que antes do podcast era costumeiro que houvesse uma conversa com os convidados antes, mas eu não conseguia prestar atenção em nada que ele dizia. Meu olhar estava fixo em Monark e o olhar dele estava fixo em mim. Sua expressão se fechava cada vez mais, junto com a minha. Era como se nossos olhares mutuamente se perfurassem, e meu peito se enchia de dor. É desumano submeter alguém a tamanho sofrimento. Nosso passado nos encheu de feridas, e agora essas se abriam todas, derramando todo o sentimento que guardávamos. Enquanto eu me preocupava no quanto eu iria sofrer ao ver Monark novamente, talvez eu não tivesse imaginado que Monark estivesse também sofrendo ao me rever. Uma lágrima escorreu de seu olho direito até seu lábio, e ele sucumbiu ao choro. Monark se levantou, dando um soco na mesa e se encostou na parede, ofegante. Igor colocou a mão em seu ombro, tentando acalmar seu amigo e colega de trabalho. Eu levantei, em um ímpeto causado por aquela sobrecarga de sentimentos. Eu não suportava o ver sofrer. Deixei meus óculos em cima da mesa e me aproximei dele. Igor se afastou lentamente. Eu virei Monark para mim e o abracei com força, também em prantos. “Eu também senti saudade”. Seus braços tensos logo se relaxaram e me apertaram forte. Seu rosto, úmido de lágrimas, repousou em meu peito. Monark não disse sequer uma palavra, somente soluçava e ofegava, mas o mero ato de seu abraço preencheu meu corpo de calor. Ele se recompôs e olhou para meu rosto. Seus olhos brilhavam, mas ele me largou. “Não pense que vou pegar leve por causa disso”.
Conversamos um pouco sobre como funcionaria o programa. 3K parecia não entender a cena que havia presenciado, prova de que ele não tinha a menor idéia de meu passado com Monark. Jeanzão terminava de montar os equipamentos e configurar a live, que estava pronta para começar. Agora era hora de me tornar Felipe Neto, o youtuber, e não Felipe Neto, a pessoa. Tive que imaginar que nessa cadeira se sentaram grandes inimigos da humanidade, como Eduardo Bolsonaro, Nego Di, Kim Kataguiri e Rafinha Bastos. Eu não podia pegar leve. Não, nem mesmo com Ele.
Um clima até um pouco hostil se criava antes do programa. Monark também tinha uma imagem para zelar, e ele, assim como eu, não estaria disposto a deixar sua máscara cair. Ele bebia e fumava constantemente, quase que, de seu lado, também criando coragem para me confrontar. Tudo se quebrou com o anúncio que estávamos ao vivo. O “Salve salve família” de Igor e o anúncio de minha participação deram a entonação para o programa, que, assim que começou, já contava com mais de cem mil pessoas assistindo. Eu sabia o que buscavam. Eram como populares romanos assistindo a dois gladiadores em um coliseu, torcendo para que ambos se destruíssem mutuamente, uns de um lado, ovacionando e torcendo por Monark, aquele que iria derrotar o politicamente correto e a cultura do cancelamento, enquanto do outro lado estavam os intelectuais e os sábios, aqueles que torciam pelo meu triunfo, minha legião de fãs. Nossa conversa começa normalmente, mas Monark fica cada vez mais bêbado. A primeira polêmica, o primeiro golpe de seu gládio, foi o boato de que eu teria removido os patrocinadores do Flow Podcast. Conversamos, em comum acordo, e esse atrito foi resolvido, e as polêmicas foram ficando cada vez mais brandas até que começamos a entrar em pontos em comum, como a legalização da maconha. O público ficou enfurecido. Meus seguidores acreditavam que eu estava sendo conivente com muitas das práticas do maconheiro de direita anarcocapitalsta Monark, enquanto o público do Flow Podcast acreditava que Monark estava se rendendo à cultura do cancelamento. Meu coração voltava a bater calorosamente, como se fosse a primeira vez que eu estivesse o vendo, tudo outra vez, como se fosse novo.
Ele começou a falar sobre vários assuntos e minha paixão só se confirmava cada vez mais, até que Monark tocou no assunto de meu tweet que começa com “O homem hetero branco”, sobre o quanto isso é autorreferencial. “Talvez eu tenha deixado uma dica de algo aí”. Tapei minha boca. Minha mente não queria dizer isso, mas disse mesmo assim. Monark se sentiu um pouco ameaçado. Ele devia sentir medo que as outras pessoas descobrissem de nosso passado, isso seria um grande baque para nossas duas audiências. “Como assim, Felipe?”. Era tarde demais para voltar atrás. “Talvez eu não seja hetero, Monark, você sabe disso”. Ele se levantou, completamente embriagado. “Então você tá me dizendo que toda essa conversa de apoiar minorias não é só parte do seu jogo?”. Eu também me levantei, e olhei bem no fundo dos seus olhos conforme nos aproximávamos. “No começo, sim. Mas aí eu percebi uma coisa, Monark, algo que eu devia ter percebido há muito tempo”. O público ficou eufórico e o chat não parava. Agora eram quinhentas mil pessoas nos assistindo, eles acreditavam que íamos sair no soco ou algo assim. Igor também tinha se levantado, esticando a mão para Monark, pronto para apartar se alguma briga acontecesse. “Ah é, Felipe? E o que você percebeu?”. Monark a esse ponto já estava muito bêbado e muita coisa estava em jogo. Nesse momento eu percebi que ele já havia deixado de ser aquele garoto de outrora que produzia conteúdo para crianças e se tornado um homem com atitude. Eu decidi naquele momento que eu não queria mais viver aquela mentira. Era hora de tirarmos nossas máscaras, era hora do público conhecer quem éramos de verdade. “Eu percebi que eu também tava lutando pela gente, pelo quê a gente viveu. Eu nunca te esqueci, Monark, e eu me cansei de viver essa mentira.” Antes mesmo que eu pudesse reagir e para a confusão do público, ele me beijou. A única coisa que pude ouvir no fundo foi Igor dizendo “Caraaaaaaaaaaaaalho”, e logo minha mente ficou em branco. Em pânico, a transmissão foi desligada momentâneamente. No twitter, prints e clipes surgiam como se fossem uma infestação. Nosso amor confundiu o país inteiro.
Nesse pequeno intervalo, decidi conversar com Monark. Ele também sofria muito com a minha ausência, mas compreendia que nós seguimos caminhos distintos e que não iríamos voltar a nos encontrar. Aquilo estava longe da verdade, e eu sugeri que deveríamos abrir o jogo para toda a nação. Quando a transmissão voltou ao normal, já eram mais de um milhão de pessoas assistindo simultaneamente. De mãos dadas com Monark, fizemos o encerramento, nenhuma consequência poderia estar na frente de nosso amor, nem fãs, nem política, nem patrocinadores. Naquele momento éramos somente duas almas que se amavam. Discordamos, sim, mas mas meu coração pertence a ele, e o dele a mim. E foi isso que o Brasil ouviu, que o amor venceu o ódio, que a paixão superou a dor.
Hoje fazem 16 anos desde aquele programa. Não posso dizer que todas aprovaram nossa atitude, algumas nos odeiam até hoje, mas nossos respectivos públicos vieram a perceber, eventualmente, que tudo o que fazíamos era um pelo outro, seja para esquecer, seja para atrair, mas que no fim tudo o que fizemos foi aceitar o sentimento que sempre tivemos um pelo outro, ao vivo, diante de todo o Brasil. Monark e eu hoje vivemos juntos. Com minha ajuda, conseguimos elevar nossa marca, Flow Products, ao nível global. Sem o ódio que todos sentiam e vivendo em plenitude, conseguimos conquistar a mudança na sociedade que sempre sonhamos. Não gosto de me gabar, mas as coisas melhoraram muito depois disso. A polarização basicamente acabou. Irmãos que se distanciaram voltaram a se ver, pessoas passaram a conversar entre si. É possível que eles tenham visto que a única coisa capaz de vencer o ódio é o amor. O amor quebra qualquer barreira.
O amor quebra qualquer barreira.
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