Pesadelo:
1. Sonho aflitivo que produz sensação opressiva; Mau sonho.
2. Pessoa, situação ou algo que molesta, enfada, incomoda.
O jogo de verdade ou desafio não saiu tão mal quanto eu esperava. O medo de que algo fosse exposto e tudo fosse por água abaixo me deixou um pouco paranoico.
Quando Lucas admitiu em voz alta que é apaixonado pela Max, eu me joguei na água, literalmente falando. Afinal nunca achei que esse dia chegaria.
E também teve, - e agora é melhor desconsiderar qualquer coisa que eu disser, porque eu vou dar uma de bocó, - o que eu apelidei de “o episódio da folha”, que é algo que eu vou guardar para mim pois a minha narração seria constrangedora. Mas uma coisa que ficou na minha cabeça, foram as expressões dela. Passando de indecifrável para constrangida em questão de segundos. Cara, você é muito idiota. –diz a minha consciência enquanto paro para pensar nisso. Não posso deixar de concordar.
-Mike, Mike, Mike, MICHAEL! –chama Maxine.
Então eu percebo que me desconectei por um pequeno período de tempo. Ainda estão todos na mesma posição. Acabamos de terminar o jogo. Sinto o vento gelado bater nas minhas costas. Está entardecendo. E é sobre isso que estão conversando.
-O que foi? –respondo para a ruiva, que faz uma careta.
-A gente está te chamando há uns cinco minutos e você não responde! – a garota diz, exasperada.
-Deixa de ser exagerada Maxine!
-Mas é verdade! Não é, El? –ela busca confirmação da garota sentada ao meu lado, mas ela parece ter prestado tanta atenção quanto eu, se não menos.
-O que? – El pergunta, franzindo a testa.
-Pelo amor, são dois perdidos, isso sim! – retruca Max, deixando El mais confusa ainda. –Voltando ao assunto anterior, a gente estava falando que temos que voltar antes que fique escuro demais para andar na trilha sem escorregar na lama.
Há concordância coletiva e todos começamos a catar nossas coisas. Ninguém fala muito na volta pela trilha, todos meio molhados, temos que nos concentrar para não cair uns por cima dos outros. O que é comprovado quando Dustin tropeça e por pouco não cai de cara na terra, causando risos em todo mundo.
Chegando ao ponto em que podemos ir de bicicleta, paramos por um instante.
-Vai todo mundo pra casa do Wheeler mesmo? –questiona Lucas, se referindo ao fato de que normalmente, depois de dias como esse, acabavam todos dormindo na minha casa.
Com exceção de El, o pessoal concorda. Com uma explicação básica e um pequeno empurrão de Max, ela acaba concordando também. Montamos nas bicicletas. Will e Dustin vão um pouco a frente, por não terem o peso extra. Lucas e Max vão um pouco atrás de nós.
El parece mais confortável agora do que estava na ida. Ao invés de manter as mãos agarradas aos meus ombros, seus braços vão envolta da minha cintura, e ela não fica se movimentando tanto. A proximidade com ela ainda me causa um pouco de nervosismo. Dessa vez não há casaco nenhum nos separando. Consigo sentir o calor dos braços dela pela blusa. Começo a ficar ansioso, apesar de achar que disfarço muito bem, o que provavelmente não é verdade, levando em conta o meu histórico de fracassos nesse quesito.
Quando paramos novamente estamos em frente à minha casa. Vamos para direções opostas, mas com o mesmo objetivo: tomar um banho e nos trocar. El e Max vão para a casa dos Hall, enquanto eu e os meninos descemos para o porão.
Deixo eles lá embaixo e subo para o meu quarto. Fico pronto em menos de dez minutos. Coloco o celular para carregar e aproveito para checar o horário. Vinte para as sete. Combinamos com as meninas às sete em ponto. Preciso pedir a pizza.
Saio do meu quarto e dou uma olhada nos outros quartos. Não tem mais ninguém em casa fora a gente. Desço as escadas e peço a comida. Os garotos aparecem assim que desligo o telefone.
-É a nossa comida? – Dustin pergunta, apontando para o aparelho. Assinto.
Ficamos um pouco em silêncio. Então eles começam.
-Mas e aí Wheeler, sabe o que sua irmã mais nova aprontou hoje? –indaga Will.
Franzo a testa. A Holly?
-Ela queimou você pelas costas, cara. – expõe Dustin. Lucas concorda com um aceno.
-O que é que a criança fez dessa vez? – pergunto.
-Ah, ela nos perguntou quanto tempo que a gente acha que você vai demorar para convidar a El pro Snowball. – diz o garoto. Arregalo os olhos. – Mas isso seria de boa, se ela não tivesse perguntado na frente da própria El.
Meu queixo cai. Consigo ver a cena exata na qual minha irmã de oito anos me ferra.
-ELA FEZ O QUÊ? – grito, indignado. Aquela pirralha. Will, Dustin e Lucas me olham com cara de “pois é”, só que risonhos. A raiva borbulha dentro de mim. – E VOCÊS TÃO RINDO DO QUE, SEUS PALHAÇOS? –grito mais uma vez.
Eles tiram os sorrisinhos da cara num instante. Ouço a campainha.
-Eu vou lá! –Lucas diz e sai, antes que eu tenha tempo de protestar.
Passo a mão no rosto e começo a balbuciar coisas sem sentido para aliviar a raiva. Não funciona. Os dois paspalhos que continuam na cozinha estão olhando para lugares aleatórios e coçando a nuca, só para não terem que olhar para mim.
-Se eu soubesse que você ia ficar tão surtado, eu não tinha dito nada. –diz Dustin baixinho, achando que eu não ouviria.
A raiva se transforma em ódio contido. Por enquanto.
-Como é que é? –questiono, só para ele saber que eu ouvi.
O garoto me olha sem expressão. Apoio os cotovelos na bancada, o rosto entre as mãos. Holly vai ouvir tanto depois dessa.
-Está tudo bem aqui? –pergunta El, entrando na cozinha atrás de Lucas.
-É, a gente ouviu uns gritos. –Max comenta.
Fecho as mãos em punho.
-Ah, isso? É que o Mike teve um problema com a atendente da pizzaria e se exaltou um pouco. – inventa Dustin. Tento perfura-lo com o olhar.
-Na realidade o problema é que esses paspalhos, ficaram rindo enquanto eu tentava explicar para mulher que era calabresa, e não portuguesa. –contribuo para a história do outro, num tom mais agressivo do que eu pretendia, dando um jeito de brigar com eles de qualquer forma. Bato meu punho fechado na bancada. Dói.
-Tá bom, então... –diz Max, me olhando estranho.
Sinto alguém passar a mão nas minhas costas e viro já pronto para dar uma surtada, achando ser Lucas, mas me deparo com El, sorrindo para mim reconfortantemente. Esqueço a raiva por um segundo, e sorrio de volta.
{…}
Ainda não conseguimos escolher um filme quando a pizza chega. Deixo eles discutindo entre Star Wars e Caça Fantasmas (somos nerds, tá legal?), e vou pegar a comida. Dou um sorriso constrangido para o entregador quando um grito soa, vindo da sala. Fecho a porta com o pé e levo a pizza até a sala, a caixa esquentando nas minhas mãos. Largo a na mesa de centro e cada um pega um pedaço.
-E aí decidiram? – pergunto.
-Caça Fantasmas. –responde a ruiva, com a boca cheia.
Alguns minutos depois, estamos todos sentados em colchões (ou no sofá) no porão, vidrados no filme. No exato segundo em que este acaba, Maxine muda de posição, virando para nós.
-É agora que a gente conta para El que nós somos muito nerds e jogamos RPG uma vez por semana? –solta a ruiva.
Todos começam a ter um ataque de riso. Foi muito repentino. Max em meio as risadas ainda completa:
-É que é um fator decisivo para ela ver se quer mesmo andar com a gente.
As risadas só aumentam. Quando finalmente param, El resolve dar seu veredito.
-Se preocupa não, eu jogo também. –ela dá de ombros.
Eu não consigo respirar de tanto que eu rio.
-Você tá nos zoando, né?
Ela faz uma careta.
-Pior que não. – Os risos explodem novamente. –Só que eu jogava pela internet já que o pessoal da minha cidade não era muito ligado nessas coisas.
Max dá um sorriso.
-Então, vamos ter que te mostrar o que é RPG de verdade.
{…}
-E aí Maga, vai fazer o que? –pergunta Dustin, quando El está diante do exército de trogloditas.
-Eu não sei! – a garota está se desesperando.
Me seguro para não rir. Não posso estragar o jogo.
-Lança um feitiço de ataque! – sugere Max. Will a olha de rabo de olho.
-Não, lança um de proteção! É muito arriscado. –contraria o garoto.
-Ataque! – insiste a ruiva.
-Ela teria que rolar um treze ou mais, não vale a pena! – Dustin se intromete.
-Tá bem, tá bem! – El os interrompe. – Eu vou de ataque! – declara ela, e em seguida joga os dados.
Doze. Dou uma risada maligna.
-Sua mana está quase no fim, e seu ataque é frustrado pelo feiticeiro inimigo. Sua jornada pode chegar ao fim, tudo depende dos seus companheiros. – digo, olhando cada um deles, parando em um especificamente. – Lucas, sua vez! –prossigo.
-Eu vou lançar um projétil em chamas nesse feiticeiro imbecil! – anuncia ele.
Os dados rolam. Dou um peteleco na action figure do feiticeiro. Eles comemoram.
-O Arqueiro acerta o inimigo em cheio, deixando-o fora da jogada, mas acaba gastando sua última flecha. Agora é necessário lidar com o exército. O que vai fazer, Clérigo? – questiono o Will.
-Proteção! – proclama o garoto. Sete.
-Sua proteção surte efeito, mas não durará por muito tempo. É necessário fazer um próximo movimento, que vai decidir o rumo dessa batalha. – recomeço a narração. – Vai que é sua, Zoomer idiota! – Recebo uma almofada na cara pelo comentário. Torço o nariz.
-Vou levar uma poção de mana para minha colega Maga! – afirma Max. Com o número que ela tira, a jogada é extremamente bem calculada. Me seguro para não soltar um ruído de frustração. Ela foi no caminho certo. Eles estão um passo mais perto da vitória.
-Com sua supervelocidade você chega até a Maga e entrega a poção, mas o tempo não está ao seu favor. O Bardo e a Maga tem que se juntar antes que seja tarde. Antes que os trogloditas tomem conta da capital, e consequentemente do reino. – Dou uma pausa. – Dustin, qual seu próximo movimento? – dito isso, dou um gole no refrigerante à minha frente.
O garoto coça o queixo, pensativo, todos os olhares do cômodo virados em sua direção. Ele retira um objeto de baixo da mesa. A flauta. Se Dustin fizesse o que eu estava pensando, e conhecendo-o bem, ele provavelmente o faria, e tirasse os números certos nos dados, bastaria um mínimo, e diga-se de passagem, extremamente simples, movimento acertado do próximo jogador e eles ganhariam a partida. E, bem, eu não posso deixar isso acontecer. Não facilmente.
-Pelo poder em mim investido por – ele respira fundo. – essa flauta, - Um riso fraco é ouvido no porão. – eu invoco as ondas sonoras que me permitem imobilizar a montaria inimiga. – ele declara.
E com essas palavras e os números que ele tira nos dados em seguida, Dustin dá um passo em direção a vitória. Minha mente trabalha a mil para pensar em algum jeito de virar o possível resultado da partida, mas não posso fazer nada antes da próxima jogada.
Olho diretamente para o bardo do lado direito da mesa.
-Você impede os avanços do exército inimigo, ao deixar os animais atordoados. Mas isso não durará muito tempo, eles logo deixarão as montarias para trás e avançarão para a fortaleza. Com o Arqueiro sem munição, a Zoomer esgotada, - Max me olha torto. - o Clérigo ainda tentando sustentar sua proteção e o bardo tendo usado sua última carta na manga, resta à Maga determinar o destino do reino. – Olho para ela. – El, vá em frente. – finalizo.
Um silêncio se instala. Todos direcionam-se para ela. Ninguém diz nada. El morde o lábio, pensando, e ao que parece resolve arriscar novamente. Agarro a borda da mesa por trás do “Escudo do mestre” com força, na expectativa. Tudo projetado para eles não conseguirem ver. As pontas dos meus dedos ficam brancas antes de ela falar alguma coisa.
-Eu vou ter que arriscar. – começa ela. – Ataque! –anuncia ela, jogando os dados, que até então a garota balançava na mão.
Eles rolam algumas vezes e caem pela borda da mesa do eu lado, me deixando com uma visão privilegiada e antecipada do resultado. A soma dos números é automática na minha cabeça, reflexo de anos de partidas extensas de D&D nesse mesmo porão. Eles me olham, ansiosos. Meus lábios se transformam e uma linha fina e eu inclino a cabeça levemente para o lado. Então eles entendem. Os gritos de comemoração explodem de suas gargantas, deixando uma El levemente confusa e um eu derrotado, mas feliz, recostado na cadeira.
Lucas e Max se abraçam de um lado, enquanto Will e Dustin pulam um apoiado no outro no lado oposto da mesa, fazendo com que El finalmente perceba. Eles tinham vencido, e ela tinha feito parte disso. El me lança um sorriso de “Foi mal” e eu dou de ombros, retribuindo o sorriso. Então Max a puxa para um abraço e ela se junta às comemorações.
Uns cinco minutos depois eles lembram da minha existência e começam a pular à minha volta. E eles pulam tanto que nem percebem quando a minha irmã mais velha entra no porão. Nancy, ao se deparar com a cena, parada alguns degraus da escada acima do chão do porão, dá um sorriso.
-Eu suponho que eles tenham vencido. – ela diz, acima dos gritos deles, indicando-os com o dedo. Olhando-a por cima das cabeças de meus amigos, dou de ombros pela segunda vez em menos de dez minutos, franzindo a testa com o barulho.
Dustin resolve parar de pular para encher a minha paciência.
-E olha que ele ainda nem começou com as desculpinhas! –diz o garoto.
Mantenho minha expressão neutra, apesar das minhas sobrancelhas se levantarem.
-Ai, é que uma vez pelo menos vocês tem que vencer. – Max faz um imitação exagerada da minha pessoa, ao que eu reviro os olhos e eles riem. Puxo o ar.
-Na realidade eu ia dizer que como não tinha nada planejado pra hoje, eu tive que pegar uma história pré-montada que eu tinha e ainda dar umas adaptadas para o número de jogadores. –finjo desdenhar, com uma vontade imensa de rir, mas me contendo.
Só a careta que Maxine faz, vale a pena a zoação que eu sei que vou receber. Eles mal começam a reclamar e eu já estou tendo ataque de risos. Cruzo meu olhar com o de El por uma fração de segundo e sinto uma pontada na base do meu crânio, que me recorda do dia anterior e suas esquisitices, e cessa meu ataque repentinamente, transformando-o numa crise de tosses.
-Olha lá, engasgou com o veneno. –Lucas aproveita a oportunidade.
Risos de todos os lados, inclusive do meu. Bem, mais ou menos, considerando o fato de que ainda estou tossindo quando tento rir, o que gera um ruído bizarro saído do fundo da minha garganta. Todos no cômodo me lançam um olhar estranho.
-Tudo bem, cara? – pergunta Will, esfregando minhas costas.
Levanto um braço, tentando mostrar que está tudo bem, enquanto pego o refrigerante com o outro. Quando finalmente consigo parar de tossir, eles ainda estão com uma cara estranha. Abro a boca para falar, mas meu cérebro não permite. Ele resolve que é uma boa hora para me relembrar de como são meus pesadelos, mesmo que eu não precise de ajuda para isso. É como o impacto da batida em um acidente de carro, as cenas me atingem com um baque e fecho os olhos pelo que parecem uns cinco minutos, mas que são no máximo segundos. Num movimento automático, minha mão livre se fecha e minhas unhas, que nem são tão grandes assim, se fincam na palma, numa tentativa de me acalmar.
Sinto vontade de vomitar toda vez que lembro dos pesadelos em si. Desenvolvi um mínimo de autocontrole ao longo dos anos, e às vezes me pergunto se é o suficiente, e se um dia eu vou acabar louco em um hospício por causa desses pesadelos. Uma voz no fundo da minha mente sempre insiste nessa possibilidade.
O tempo que levo para controlar minha respiração é muito maior do que eu queria. Isso porque dá tempo para as pessoas à minha volta começarem a se preocupar. No meio tempo que demorei para voltar a realidade, as expressões deles já mudaram de estranheza para preocupação, inclusive a da Max, o que me faz pensar que o tempo foi realmente de cinco minutos. O primeiro a se manifestar é Will, que repete a pergunta:
-Tudo bem, cara? – Apenas a entonação muda.
-Tudo. – respondo, tentando parecer que não estou à beira de um ataque de nervos.
-Sério? Porque não parece. – Max entra na conversa com seu típico tom sarcástico.
Me fazer de desentendido é minha melhor opção.
-O que?
-Mike, primeiro que você quase expeliu suas tripas para fora com essas tosses e segundo... – começa Lucas.
-Segundo, você ficou um minuto de olhos fechados como se tivesse sendo possuído por um ser de um universo paralelo. –interrompe Dustin.
Olho para Nancy em um pedido de socorro silencioso, que não tenho ideia se ela percebe. Eu preciso de ar. Meu olhar, então se volta na pior direção possível. El me observa preocupada com aqueles olhos não intencionalmente penetrantes. Outra pontada, que dessa vez desce até meu estômago para aumentar a ânsia. Me curvo para frente por causa da dor e aproveito o impulso para levantar. Apenas ficar de pé já é um esforço gigantesco. Sinto algo molhar minha mão. As unhas já foram fundo demais.
-Eu preciso de água. –murmuro, enquanto passo por eles com dois passos largos.
Chego na cozinha ofegante, me sinto como se meus pulmões estivessem pegando fogo. Encontro um copo em cima da bancada e encho com água. Ela desce rasgando minha garganta, mas pelo menos consigo respirar novamente e não sinto mais vontade de vomitar, apesar da sensação ainda permanecer incômoda.
Largo o copo e vejo a mancha de sangue inexplicavelmente grande na lateral. Não é possível que as unhas tenham ido tão fundo assim. Não deveria ter tanto sangue. Abro a mão, uma marca parecida com a do copo se destacando na palma. Engulo em seco.
Ouço passos. Enfio a mão e o copo debaixo da torneira, a água levando embora o vermelho antes que alguém, que não eu, tenha a oportunidade de ver. Os passos param e eu me viro. Ao contrário do que eu imaginava, apenas Nancy e Will estão parados na entrada da cozinha. A preocupação deles é visível. Tem um lado de mim que torce para eles apenas deixarem para lá, e outro, menor, que deseja uma explicação mais do que tudo. O primeiro é consideravelmente maior no momento.
-O que foi aquilo, Mike? – questiona Nancy.
Balanço a cabeça. Minhas mãos atingem o gelado da bancada. Uso a mesma de apoio.
-Eu não sei. –solto, minha voz rouca como nunca antes esteve.
Sinto meus olhos lacrimejarem. As testas de ambos se franzem.
-Cara, você tá muito pálido, senta aí. – constata William, indicando o banco ao meu lado.
Cada segundo parece uma eternidade. Sento, os dois parados à minha frente.
-Do que você se lembra? –indaga minha irmã.
Ambos me encaram.
-As cenas do pesadelo vieram na minha mente bem na hora que eu senti uma pontada de dor no crânio, e de repente, eu não conseguia respirar. – falo num tom meio debochado, tentando tirar a seriedade da situação. Eles não desviam o olhar. - É só isso. – termino, agora num tom normal.
-Só isso, de verdade? –insiste Will. Assinto. – Tem alguma coisa que possa ter começado com essas lembranças descontroladas?
Me encolho no meu lugar. Em algum momento eu ia ter que falar. Conto para Will o que contei para Nancy no dia anterior. O garoto nem responde e agarra meu pulso. Apesar de ser pequeno, ele tem força. Will vira minha mão e abre meus dedos, em um único movimento. Tento puxar o braço, mas ele me impede, intercalando o olhar entre meu rosto e os sulcos na palma da minha mão, ainda meio avermelhados do sangue.
-Isso foi agora? – Will pergunta. Ele sabe a resposta apenas de olhar para mim.
Todos meus amigos sabem dos pesadelos. Mas Will sabe de todos os detalhes. Porque ele entende. De algum jeito ele entende. Ele sempre entendeu.
-Precisa colocar um curativo nesse negócio. – O garoto solta meu pulso.
Não sei se ele se refere as mãos ou ao buraco na minha sanidade mental. Provavelmente às mãos.
Não poderia ter respondido nem se quisesse. Aqueles que tinham permanecido no porão até agora entram na cozinha. Inclusive ela. Fico com um pressentimento horrível de que eles ouviram cada palavra que eu disse nos últimos minutos. Puxo as mãos para o colo, longe do olhar dos meus amigos. Me forço a respirar fundo.
-Você tá melhor? – Lucas questiona, parecendo receoso.
-Tô. Eu só acabei engasgando com o refrigerante que eu tomei pra aliviar a tosse. – digo, o que não é totalmente mentira.
Eles assentem, mas continuam me olhando com expressões estranhas. Se isso não acabar nos próximos minutos, vai se transformar num pesadelo. El não me olha em momento algum, muito concentrada em algo na própria mão.
-Mas enfim... – Preciso mudar de assunto. – Nancy, por que você tinha decido lá?
Minha irmã parece despertar de um transe.
-Ah, verdade! Eu tinha ido avisar que a mãe foi com a Holly para a casa da vó, e eu vou sair com o Jonathan, então vocês vão ficar sozinhos pelo resto da noite. –ela explica. – E inclusive, ele deve estar chegando aí. – Ela olha o relógio no pulso. Minha cara se contorce numa careta, assim como a de Will. Ainda não tínhamos nos acostumado com o fato de nossos irmãos estarem juntos. Mas não é nossa vida, eles fazem o que quiserem. Uma buzina soa no exterior da casa. – Falando nele. Eu vou indo. Tchau meninos, - ela para – e meninas. – Risadas fracas. – E qualquer coisa liguem. – finaliza Nancy olhando diretamente para mim e saindo da cozinha em seguida.
Ouço a porta da frente bater. O silêncio que se segue é ensurdecedor. Quem resolve quebra-lo é Will.
-E aí, agora que a gente detonou os planos do Wheeler, vamos fazer o quê?
As risadas voltam e o clima fica mais leve.
{…}
São por volta de duas da manhã quando finalmente nos acalmamos. Passamos desde às dez até agora num campeonato de jogos, sejam vídeo games ou de tabuleiro. Ninguém ganhou, porque afinal, quem deveria estar marcando os pontos não marcou.
Mesmo que eu tenha oferecido para dormirem no quarto no andar de cima, todos acabaram indo dormir nos colchões no porão. Joguei um travesseiro e um cobertor para cada um e subi as escadas, dando a desculpa de que ia me trocar. Não que eu não fosse, mas não era só isso. Precisava pensar, ficar sozinho por alguns minutos. Nem minha mãe nem Nancy e muito menos meu pai, voltariam hoje de qualquer forma – ligaram me avisando – então não me preocupei em encontrar alguém no andar de cima.
Nesse momento, estou sentado na sala, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto entre as mãos, me preparando psicologicamente para o que a noite – ou melhor, madrugada – vai me trazer, seja o pesadelo ou a ausência dele.
Desço depois de uns dez minutos para ninguém acabar vindo atrás de mim. Responder perguntas sobre os pesadelos é quase tão ruim quanto os próprios.
Me deparo com eles jogados cada um em um canto. Dustin já num dos colchões no canto, dormindo. Will parado ao lado da porta do banheiro, esperando sua vez. Max e Lucas sentados no sofá, de mãos dadas, a cabeça da ruiva no ombro do garoto. Seguro o impulso repentino de rir, a perspectiva ainda não me é familiar.
Arrumo o colchão mais perto da porta do porão que dá para o exterior da casa, afinal duvido que vá conseguir dormir à noite inteira, isso se eu conseguir dormir, e não quero ter que passar por cima de ninguém para chegar até a saída.
Sou acordado dos meus devaneios com a porta do banheiro se abrindo e se fechando novamente logo em seguida. El saiu e Will entrou. Ela caminha até o colchão com sua mochila em cima, coincidentemente o mais próximo do meu, – sinto cheiro de armação dos nossos amigos no ar - e se senta, olhando pra frente, como se estivesse considerando dormir sentada mesmo. De repente ela parece despertar. Estamos sentados um de frente para o outro, nossos pés quase se tocando. Me sinto repentinamente ansioso. Esfrego as mãos no lençol, causando uma leve ardência na mão direita, consequência do episódio de mais cedo. Ainda não sei como ninguém além de Will percebeu. Engulo em seco. El se inclina para frente.
-Não é por nada não, mas eu acho que o Dustin parou de contar os pontos porque viu que ia perder pra gente. – ela diz como se fosse um segredo. Desato a rir.
-Não tenha dúvidas. – falo.
Ela dá um sorriso e eu retribuo. Tínhamos ficado como uma dupla no “campeonato”, contra Will e Dustin, e Lucas e Max.
-Notou os dois pombinhos no sofá? – pergunta El, uma de suas sobrancelhas se erguendo.
-Ainda não me acostumei. – confesso. El ri. – Apesar de que provavelmente vai ser mais fácil do que me acostumar com minha irmã namorando o irmão do Will então... – dou de ombros.
-Como? – ela me olha com os olhos semicerrados. – Então o tal Jonathan de que ela falou mais cedo, é o Jonathan irmão do Will?
El parece estar processando a informação, me olhando fixo por alguns segundos. Assinto com uma leve careta. Ela balança a cabeça.
-E sim, às vezes é mais constrangedor do que parece ser. – digo. El dá uma risada leve e boceja em seguida. – Tá com sono? –
-Um pouco. E você? – questiona.
Faço um sinal de ‘mais ou menos’ com a mão. A verdade é que sono eu tenho, eu só não quero dormir. Minha atenção é atraída para o lado oposto do cômodo, uma vez que o Byers sai do banheiro e – literalmente - cai na superfície macia mais próxima. Solto um riso sufocado ao mesmo tempo que a garota à minha frente quando nos entreolhamos. A mão dela está sobre a boca, o olhar de divertimento e o cabelo se soltando do coque, caindo na lateral do rosto. Sustentamos o olhar um do outro por um longo tempo, os dois paralisados na mesma posição.
-Boa noite, casal! – diz Maxine, chegando perto de onde estamos sentados.
El a encara, as duas trocam um olhar que não tenho ideia do significado. Às vezes a conexão entre elas me assusta. Resolvo retrucar.
-A gente é que deveria dizer isso, né, Maxine? – A ruiva muda seu foco para mim, lentamente. – Afinal, são vocês dois – faço um sinal indicando Lucas parado um pouco mais longe – que estão de melação. – finalizo, erguendo as sobrancelhas.
-É, não sei como ninguém ainda desenvolveu diabetes com todo esse doce. –completa El, claramente provocando-a.
Levanto uma mão em cumprimento à ela. O soquinho é correspondido. Max revira os olhos.
-Ah, vão à merda vocês dois também! – diz e começa a se afastar.
-Dá boa noite pro seu namorado por mim! – solto.
Ela me perfura com o olhar, mas não comenta nada. Conseguimos deixa-la irritada.
-E pensar que dois dias atrás ela teria gritado “Ele não é meu namorado!” na minha cara e eu teria levado um tapa. – Volto a olhar para El. – Já é um progresso! – finalizo.
El dá uma risada, me fazendo rir também.
-Você é uma figura, Michael Wheeler. –constata ela, entrando debaixo da coberta e deitando.
Faço uma reverência desajeitada. Bato no interruptor na parede atrás de mim antes de deitar também. Apesar das luzes apagadas, ainda consigo ver as coisas ao meu redor, a luz da lua entrando parcialmente pela janela. Sei que vou acabar dormindo de qualquer jeito.
Coloco as mão atrás da cabeça. Olho para o lado e El está observando meus movimentos, as mãos dela juntas na lateral da cabeça, o corpo de lado. Sorrio.
-Boa noite, El.
-Boa noite, Mike.
El retribui o sorriso.
{…}
As cordas apertam meus pulsos. Sinto sangue escorrendo pelas minhas mãos e ouço-o pingar no chão com um barulho ritmado. Meus braços doem. Não consigo ver nada ao meu redor, a escuridão é intensa, de jeito que minha visão não se acostuma a ela, não importa quanto tempo passe. Um arrepio percorre a minha espinha. A cadeira machuca minhas costas.
Uma pontada surge na base do meu crânio, mas ao contrário do que acontece normalmente, ela não some. A dor continua lá, reincidindo de tempos em tempos, cada vez mais forte, cada vez mais frequente, até que se torna contínua.
E então eu ouço gritos. Vindos de todos os lados, de quem quer que seja que está gritando. Passos de centenas de seres, ou ao menos é o que parece ser, ecoam de algum ponto atrás de mim. Ele. Eu tenho certeza de que os passos são dele. Não tenho ideia de como eu sei, mas é uma certeza inquestionável na minha mente. Assim como a certeza de que ele se aproxima cada vez mais, e de que não há nada que eu possa fazer. Estou imobilizado, desorientado e apavorado.
Começo a me desesperar. Grito. Peço ajuda, ajuda de qualquer um, de qualquer coisa. Não há nada que possa ser pior do que ele. Grito mais uma vez. Nada. Ele se aproxima mais ainda. Me sinto enjoado, o cheiro de enxofre misturado à coisa podre invade minha narinas. O pânico toma conta de mim. Respirar se torna difícil, tenho que puxar o ar com muita força.
O som característico de uma tranca sendo destravada e uma porta sendo aberta atinge meus ouvidos. As células do meu corpo paralisam uma por uma. O sangue cai em maior quantidade, os respingos atingem o chão com mais frequência, as unhas afundando cada vez mais na palma da minha mão.
Puxo os braços com força, na tentativa inútil de me libertar, já que cada vez que eu puxo, mais apertado o nó fica.
As lágrimas escorrem pelo meu rosto quentes, embaçando a minha visão e aumentando meu desespero. Grito mais uma vez. Imploro por ajuda. Eu não aguento mais.
Eu só quero que isso acabe, eu só quero que isso acabe, eu só quero que isso acabe, eu só quero que isso acabe, EU SÓ QUERO QUE ISSO ACABE!
Não consigo respirar direito. Começo a ver pontos escuros na minha visão. Não posso fazer nada. Nem mesmo me virar em outra direção. Não que isso fosse adiantar de alguma coisa. Tenho certeza de que tem algo atrás de mim. Sinto o algo tocar no meu ombro. Paraliso de uma vez por todas.
O grito sai mais como uma tosse rouca. Continuo com dificuldade para respirar, mas estou no porão novamente. Puxo a gola da camiseta como se fosse essa a razão de eu não poder respirar. Vasculho à minha volta às cegas com uma das mãos em busca da garrafa de água que eu tinha deixado ali mais cedo, enquanto agarro o tecido desesperadamente com a outra. Quando finalmente esbarro com a maldita garrafa eu já estou tremendo, em pânico. É como se uma placa de metal estivesse esmagando meu peito.
Inspira, expira. Inspira, expira.
Você nunca se dá conta do quanto gosta de respirar até não conseguir mais.
A sensação incômoda nos pulsos e nas costas continua, apesar de não haver nada lá realmente. As únicas coisas reais disso tudo são a dor de cabeça absurda, e o sangue nas minhas mãos. Abri de vez as feridas na palma da mão direita e novos sulcos na palma da mão esquerda. Há sangue no lençol também.
Olho em volta. O alívio parcial me domina ao perceber que ninguém acordou. Nem mesmo El, que se encontra deitada a menos de um metro de distância.
Me levanto devagar, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Sei que não vou conseguir dormir de novo, e nem quero, inclusive. Sinto um arrepio ao pensar na possibilidade de sentir aquilo novamente. Toda vez que pisco, acho que estou lá mais uma vez, só para recobrar a noção menos de um segundo depois.
Destranco a porta e a abro lentamente. O vento frio da madrugada atinge meu rosto, mas não me é incômodo, é familiar, e agradeço mentalmente por isso. Fecho a porta.
Me encosto na parede, a uma pequena distância da soleira da mesma. Deslizo até sentar no chão. Olho para baixo. Minhas mãos estão encharcadas de sangue. Limpo-as na calça, darei um jeito nisso depois. Respiro fundo. O ar entra e sai do meu pulmão diversas vezes, tento aliviar a dor no crânio, mas nada surte efeito.
Busco não pensar sobre o pesadelo, mas é inevitável. Trechos invadem minha mente sem que eu faça nada. Começo a tremer, não de frio, mas de desespero. É um dos piores que eu já tive. Coloco a cabeça entre os joelhos, os olhos abertos, a dor aumenta cada vez mais rápido. Então eu escuto. O som de uma porta se abrindo. Viro a cabeça rápido demais, me causando uma onda ainda mais forte de dor, que me força a fechar os olhos por alguns segundos. Minhas pálpebras se desgrudam. Estou em algo entre assustado, surpreso, nervoso e desesperado.
El acaba de sair pela porta. Engulo em seco. Ela ainda não parece ter notado a minha presença. A garota está um pouco ofegante, como se tivesse corrido para chegar até ali. Não consigo me conter:
-El? O que você tá fazendo aqui fora a essa hora?
Acabo assustando ela.
-Mike! –ela exclama ao olhar na minha direção – Que susto! – ela puxa uma mecha de cabelo para trás da orelha, a outra mão espalmada no peito, próximo ao pescoço.
-Foi mal. –respondo, ainda meio em choque de ela estar ali. –Tá tudo bem, aconteceu alguma coisa? – questiono, afinal tem de ter algum motivo para El ter acordado e vindo para fora, ainda mais a essa hora.
Abraço minhas pernas desajeitadamente.
-Tá... Eu só... – começa El, se sentando contra a parede ao meu lado. – Eu sei lá, me senti meio enjoada e vim tomar um ar. – termina. Me parece inventado, mas não vou cutucar quem tá quieto. Não quero que a pergunta vire para mim. Mas é claro que vira. – Eu é que devia te perguntar, Mike. – Ela franze a testa por uma fração de segundo. – Você tá pálido. – constata.
A mão dela se ergue e sinto seus dedos gelados em meu rosto. Esqueço a dor por um instante. Os olhos dela me prendem por um tempo.
-Deve ser só a luz da lua. –digo, apesar de saber que devo estar mais branco do que nunca. Ainda não desviamos o olhar. A mão dela continua na minha bochecha. Ela nega com a cabeça.
-Não, não acho que seja a luz, Mike. Conseguiria ver suas sardas a metros de distância se eu tentasse. Tenho certeza. – retruca, num tom de voz extremamente suave.
Engulo em seco mais uma vez. As pontas dos dedos dela deslizam pela minha bochecha e a mão volta para o colo dela no momento que uma rajada de vento gelado chega até nós, coincidindo com outra onda de dor que atravessa meu crânio. Encosto a cabeça na parede atrás de mim e fecho os olhos por um segundo. Tenho a leve consciência de que estou tremendo. Espero que ela ache que é por causa do frio. Por que ela também está tremendo.
El permanece com o rosto entre as mãos por um tempo, e então abraça os próprios joelhos para se proteger do vento. A garota morde o lábio.
-Na realidade, eu acordei por um outro motivo. –começa, depois de ficar um tempo em silêncio. Sinto meu lábio inferior tremer. Travo a mandíbula. – Eu vim pra fora porque sabia que não ia conseguir dormir de novo, pelo menos não por enquanto.
Franzo a testa. Um arrepio percorre minha espinha. É muita coincidência. Me viro melhor para ela. Tenho que admitir que começo a ficar preocupado.
-Você não tem que se justificar pra mim, El. – digo.
Ela balança a cabeça.
-Não, tudo bem. Quero dizer... – El para por um segundo. Sua expressão muda. Ela morde o lábio inferior e se vira na minha direção definitivamente. – Somos amigos, certo?
Outro arrepio.
-Claro. Mas por que a pergunta? – respondo.
El dá um sorriso fraco.
-É, que eu não costumo falar muito sobre. – Assinto. Ela olha para as próprias mãos. – Eu tive um pesadelo. – diz ela, num tom um pouco baixo.
Não sei se escutei certo. Meu coração bate tão rápido que acho que até os garotos poderiam ouvir lá de dentro.
-Desculpa o que?
-Um pesadelo. – repete, então olha para mim, como se querendo ver como eu vou reagir.
Paraliso. Não é possível. Não é possível. Me encosto na parede de novo e volto a respirar, O que eu não estava fazendo desde que ela disse da primeira vez. Abro a boca e tento falar alguma coisa, mas nenhum som sai. É tão surreal que parece um sonho, um pesadelo, na realidade. O pesadelo do mundo real. Tem que ser. É impossível. Realmente começo a acreditar nessa possibilidade. É um pesadelo. Um novo, desenvolvido pela minha mente para tentar me enlouquecer.
-Acorda, acorda, acorda, acorda... –murmuro para mim mesmo.
Ouço o sangue correndo nos meus ouvidos. Tenho certeza de que estou enlouquecendo. Então eu escuto. O sussurro. Dela.
-Mike...
Levanto a cabeça. El me olha no que parece um misto de preocupação e medo. Agarro as mãos da garota. O desespero já tomou conta de mim.
-Me ajuda. Me diz que é mentira. – estou praticamente implorando. Quase consigo ignorar a dor.
-O que? Do que é que você tá falando? Mike, eu não... – começa ela, extremamente confusa.
-Me diz que é piada, que os garotos te contaram e tão fazendo isso pra me assustar. –digo isso na esperança de que essa seja a verdade. De que não passa de uma pegadinha dos meus amigos. Mas eu já sei, no fundo, eu já sei que não é. E é por isso que eu tremo igual alguém que acabou de receber uma sentença de morte sem ter como provar a inocência. Basicamente o que corre pelos meus vasos sanguíneos nesse momento é desespero líquido.
O pânico já tomou conta das minhas células, eu mal consigo respirar. E meus olhos continuam focados nos dela, implorando para que ela me ajude. De qualquer forma. Nem que só um pouco.
Outra onda de dor. E só porque sou impelido a olhar para baixo por causa dessa dor é que eu percebo.
As unhas de El estão fincadas na minha mão, na parte superior, e isso, só porque a minha mão, é o que está impedindo que ela dobre completamente os dedos e o faça na própria mão. Olho para o rosto dela. Os olhos dela refletem medo puro. Pavor, pânico, desespero e mais um monte de sentimentos negativos que eu causei. Vejo o brilho das lágrimas se formando no canto dos olhos dela. E que são culpa minha. Da minha reação, da minha loucura. Eu só quero que isso acabe.
Solto as mãos da garota e lentamente volto a minha posição anterior, as costas na parede e os joelhos junto ao peito. Me forço a respirar mais devagar.
-Me perdoa. –balbucio. El continua com aquele olhar. – Eu não sei o que tá acontecendo comigo. Eu... Me perdoa. – Minha voz, apesar de rouca, sai mais alta dessa vez. Ela continua paralisada, do mesmo jeito desde que eu comecei a surtar. – El...
-É você. – diz ela, em um sussurro que eu com certeza não deveria ter ouvido.
-O que? – Eu realmente não sei do que ela está falando.
-É você. – Franzo a testa. – É impossível, mas é você.
Não entendo definitivamente.
-Eu, o que? Do que é que você tá falando?
Maravilha, adoro inversão de papéis. Agora é ela quem está surtando. E eu que estou ficando com medo.
-Eu acho que eu tô ficando louca. Tipo, não faz sentido algum, mas é você. – Então a expressão dela muda, é como se algo tivesse “clicado”. Uma chave que é girada na mente dela. – Aquele maldito desenho... – El passa a mão no rosto. Não ouso me mexer. Não faço a mínima ideia do que ela está falando. – Eu fiquei com medo de que a Max visse e achasse que eu era uma louca obcecada. – diz a garota.
-A Mayfield? O que ela tem a ver com isso?
Agora eu estou confuso de verdade.
-O caderno tava em cima da mesa e ela pegou e eu... – ela se interrompe no meio da frase, finalmente olhando para mim. – Você não sabe do que eu tô falando, né?
Eu balanço a cabeça ainda meio em choque. Agora é ela que agarra minha mão. El olha para nossas mãos fixamente por alguns segundos. O dedo dela percorre os sulcos na minha mão um por um, tanto na palma quanto na parte de cima, os que eu não sabia que existiam. El volta o olhar para o meu rosto. Eu ainda não me mexo.
-Mike... Por que você tá aqui fora? –questiona ela, aparentemente recordando que eu não tinha dito nada sobre.
-Eu... – Não sei como explicar, é surreal demais para ela acreditar. Isso se tudo não for coisa da minha cabeça. El não desvia o olhar. Quer saber, ela já deve achar que eu sou maluco mesmo, o que pode dar errado? Afinal, se for um pesadelo, eu vou estar falando sozinho mesmo.
-Olha, vai parecer piada, que eu tô zoando com a sua cara, ou sei lá o que, mas... – paro, não sabendo como continuar.
-Mas, oque, Mike?
Dane-se.
-Eu tô aqui, pelo mesmo motivo que você. Eu também tive um pesadelo. –solto. A garota paralisa. Decido continuar. – Na verdade, eu tenho pesadelos constantes. Todos os dias, sempre o mesmo pesadelo. Há três anos. E é por isso que dizem que “eu não durmo”. Porque depois que o pesadelo acaba e eu acordo, eu não consigo dormir de novo. – revelo, falando tudo de uma vez, sem parar para respirar.
El começa a rir. Sinto outra onda de dor e um arrepio subindo pela minha coluna. Ela me encara.
-É mentira, né?
Tenho uma pequena dificuldade para responder, é como se algo travasse a minha garganta. Começo a pensar que vou ter outro ataque.
-É verdade. – digo em um sussurro.
A risada nervosa dela para subitamente.
-É que não faz sentido, Mike.
Levanto as mãos em um sinal de “eu não sei”. Elas ainda tremem, assim como o resto do meu corpo. Admito que tenho a impressão de que isso pode acabar mal.
-Não, é que... – Olho para ela, impelindo-a a continuar falando. –Esses pesadelos constantes e... – ela para por um segundo, respirando pesado. – E repetidos... Eu... – Ela me encara mais uma vez. – Eu também tenho.
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