Com o passar dos dias, o corvo de Giyuu repentinamente parou de trazê-lo cartas. As únicas novidades que tivera sobre o mago foram as que Urokodaki trazia ao visitá-lo para seus treinos. Em seu primeiro encontro, o mestre foi bastante direto ao admitir que já sabia da ordenação entre ele e o filho adotado, aprovando a ligação entre os dois e desejando parabéns a Tanjiro por finalmente ter seus esforços reconhecidos.
— Como tem passado, senhor? Não nos vemos há tempos.
— Infelizmente meus serviços no ducado de Kocho duraram mais tempo do que o previsto. As duas filhas mais velhas se engajaram em esgrima desde jovens e aproveitaram minha presença para treinar com alguém de fora, por isso acabei ficando algumas semanas por lá.
O sobrenome soou afiado para os ouvidos de Tanjiro. Kocho... Sentia-se mal por envolver senhorita Kanao em suas desavenças de família, a garota não merecia ser tão enganada.
Qualquer um com o mínimo de noção estaria agindo da maneira completa oposta a Tanjiro. A oportunidade de amarrar ainda mais os laços com o duque era irresistível para qualquer nobre, tendo em vista o quão próximo do rei e poderoso ele era. Temido por todos, o patriarca Kocho pouco se mostrava ao público, aparecendo em comemorações muito especificas onde o Rei solicitava sua presença. Imponente, era responsável pela liderança de toda a tropa mágica do reino, comandando expedições e selecionando futuros candidatos a magos reais.
Em seu estado, as filhas cuidavam de toda a parte burocrática e relações com a nobreza. Exceto, é claro, pela caçula, fruto de uma relação libidinosa entre o homem e uma concubina. Apesar de todos na casa rejeitarem a bastarda, Kanae e Shinobu amavam a irmã perdidamente, fazendo o possível e o impossível para que se sentisse amada no ambiente tão hostil.
O velho pós a mão no ombro do menino, que fitava a máscara sem poder ver os verdadeiros sentimentos do homem, num transe enquanto refletia sobre todos os eventos que acompanhavam aquela fase de sua vida.
— Vejo que está carregando uma borla em sua espada, suponho que seja um presente de Giyuu – comentou curioso.
— Sempre afiado, senhor Urokodaki. Sim, foi um presente de seu filho, desde então carrego sempre comigo. Como soube?
— Você pode não perceber por ter mana quase nula, mas existe um feitiço poderoso embutido nesse enfeite bobo. É meio difícil não perceber que foi feito por Giyuu – seu mestre parou, pensativo – Sou muito grato a você, Tanjiro. Obrigado por não deixar aquele garoto sozinho – declarou.
— Eu é que deveria agradecê-lo, mestre – sorriu, terno. Seu filho é muito importante para mim.
Urokodaki se virou para o aprendiz, dando dois tapinhas leves em suas costas.
— Recentemente a marquesa Kamado me enviou algumas cartas perguntando se Giyuu esteve em contato com você. Tome cuidado com sua mãe de agora em diante, ela já está ciente de que alguém aplicou um feitiço de camuflagem em você, apesar de ainda não imaginar o motivo e nem onde.
Assentiu, podando as possibilidades que brotavam em sua cabeça frutos da ansiedade. Além de sua irmã, ninguém havia visto a cena da noite em que reencontrou o mago. Sendo assim, enrolaria sua mãe por mais algum tempo, enquanto analisava as melhores saídas para o buraco onde o colocaram. Ter Urokodaki ao seu lado nessa situação dava forças ao garoto que não podia evitar sentir-se sozinho diante a imensidão de problemas que rondavam sua cabeça.
Rejeitar a oferta de noivado entre a família Kocho seria considerado uma clara afronta as boas vontades do duque, por mais que a garota não fosse lá a mais amada dentre suas filhas. A casa Kamado por mais prestigiada que fosse, ainda sim era apenas uma família inferior hierarquicamente em relação ao duque, sendo inferiores a eles e superiores aos condes. Todos os nobres ansiavam pela união entre os dois jovens, o que significaria uma abertura entre as fronteiras do marquesado dos Kamado, sempre tão fechado para as famílias da nobreza.
Politicamente, dar aos Kamado sua filha bastarda seria considerado um insulto, principalmente pelo fato de ser uma casa tão influente perante a hierarquia. Entretanto, o plano dos adultos era uma união apaixonada, que perante a sociedade fizesse parecer um amor ardente que ninguém poderia impedir. Por parte do duque, um plano bastante inteligente, deixando sua filha do meio livre para arranjar-se com alguma outra família influente e expandir ainda mais o poder dos Kocho.
Muitas coisas estavam em jogo naquela dança política na qual fora imposto. Qualquer atitude desnecessária custaria muito para sua família, sendo esse provavelmente o principal motivo que levou sua mãe a aceitar a proposta de Kocho. Além de estar colocando o filho numa sinuca de bico, era um teste claro de sua motivação e ambição.
Ele e Urokodaki trocaram mais algumas palavras, logo se despedindo. Na noite seguinte, sairia de carruagem numa viagem de um dia inteiro. Acompanharia Nezuko em um dos bailes anuais sediados pelo Visconde Rengoku, cujos filhos eram bastante chegados à família Kamado dada a forte amizade entre Tanjiro e Kyojuro. Além de que, seria uma excelente oportunidade para encontrar Kanao e explicar a ela sobre sua situação atual.
Nezuko dormira em seu quarto todas as noites desde sua ordenação, ansiosa ao pensar que o irmão poderia deixá-lo a qualquer momento para partir com Tomioka. Entre alguns empregados mais novos na casa, cujas experiências com os jovens mestres eram limitadas, rolava o boato de que os irmãos mantinham uma relação incestuosa. Falácia essa rapidamente controlada pelos subalternos mais antigos, conhecedores ávidos da proximidade inusitada entre os dois, os tesouros daquela casa.
À noite, pouco antes de se reunirem para jantar, convidados de sua mãe foram anunciados pelos guardar do portão principal. Devidamente vestido, Tanjiro desceu as escadas rumando em direção ao salão onde a mesa já estava perfeitamente preparada para recebê-los. Todo o jogo de louça utilizado naquele dia foi escolhido a dedo pela marquesa, taças de cristal delicadas e talheres de ouro adornavam os pratos de porcelana cujas iniciais da família decoravam suas bordas. Cobrindo a mesa, uma toalha de mesa em linho desfiado vermelho fechava o conjunto harmonioso o qual as empregadas se orgulharam tanto.
Dentro de alguns minutos, Giyuu e Urokodaki entraram pela porta da frente, sendo recebidos cordialmente pelos serventes da casa, que os acompanharam até a sala de jantar onde a família esperava. O coração de Tanjiro falhou, não esperava vê-lo tão cedo. Estranhou o fato de seu mestre não o ter comentado em seu encontro durante a tarde, não soube dizer o que trouxe os Urokodaki em sua casa com tanta urgência.
— É um prazer ser recebido tão docemente pela senhora, Sua Graça. Peço desculpas por não poder responder sua carta, já que me foi enviada de última hora, achei melhor que nos reuníssemos o mais rápido possível.
— Não se preocupe com as formalidades, senhor Urokodaki. Vejo que trouxe seu filho também, apesar de não o ter convidado – alfinetou – Nezuko e Tanjiro ficarão entretidos enquanto conversamos.
— Sempre bom revê-la, senhora Kamado – Giyuu depositou um beijo nas costas da mão da mulher, completamente ciente de que sua presença ali era indesejada.
— Vejo que continua cortês como sempre, meu querido. Sentem os dois, por favor, o jantar será servido em breve.
Nezuko se levantou num supetão, correndo com as pernas curtas até o colo de Urokodaki, ignorando totalmente o mago que estava ao lado dele. Abraçou o senhor pelo pescoço, sendo segurada e recebendo afagos no cabelo.
— Estive com tantas saudades, senhor Urokodaki! – falou doce, o mestre de Tanjiro era a única figura paterna que ainda possuíam.
— Sinto muito não a ter visitado hoje à tarde, querida, estive ocupado demais com o desajeitado do seu irmão.
Ela riu, Urokodaki a colocando de volta no chão cuidadosamente. Nezuko se virou para Tomioka, um sorriso triste escapando pelos lábios. O cumprimentou formalmente, curvando e levantando brevemente a saia do vestido casual.
Já Tanjiro suava frio, imóvel com a imagem do amigo diante de si tão repentinamente, processando a informação, os neurônios trabalhando ao máximo. Naquela noite, viu Tomioka trajando roupas formais pela primeira vez desde que haviam se despedido há anos atrás. Na noite de seu reencontro, o rapaz vestia apenas seu quimono tradicional com roupas casuais em baixo.
Diferente daquela ocasião, estava sendo privilegiado com a visão do outro utilizando tecidos finos de corte extremamente bem feito. O tom verde escuro da camisa social, cujos botões de ouro traziam a inicial dos Urokodaki, ornamentava a pele alva e delicada do mago. Quanto as calças, muito bem alinhadas, tingidas de preto sem falha alguma, casava muito bem com os sapatos oxford que também compartilhavam da tonalidade escura.
Cruzando os olhares, os dois coraram bem de leve, deixando claro o constrangimento em terem se reencontrado numa situação como aquela. Não fosse pela magia de Giyuu, todos estariam gritando em prantos naquela sala agora ao tentar segurar sua mãe, visto que quanto mais próximos, mais intensa ficava a impressão cravada em suas mãos. Se cumprimentaram como sempre, num aperto de mão calado o suficiente para atrair a atenção da marquesa que observava a situação peculiar. Tanjiro agradeceu calado por terem ao menos mostrado surpresa ao se encontrarem, caso contrário poderiam atrair suspeitas de que o reencontro entre eles já houvesse acontecido.
Sentada a ponta da mesa, a marquesa indicou para os empregados para servirem a comida. Durante o jantar, Nezuko falava pelos cotovelos, contando aos dois convidados tudo que havia acontecido no tempo em que esteve trabalhando para o palácio como uma medica farmacêutica. Urokodaki dispensou a comida, enquanto o filho adotivo participou de alguns cursos da degustação, sem chegar ao final. Do lado um do outro, os dois amigos mantiveram-se parcialmente calados ao decorrer da refeição, olhares curtos falavam o quanto desejavam privacidade entre si, ansiosos para que os mais velhos se reunissem logo no escritório de sua mãe.
— Gostaria de conversar com Tanjiro a sós, Sua Graça. Peço perdão de antemão pela minha rudeza, mas é a primeira vez que o vejo depois de tantos anos.
— Já estava me perguntando o motivo dos dois estarem tão reservados numa situação como essa, geralmente meu filho é tão animado com você, senhor Tomioka – ela riu – Estarei com Urokodaki em meu escritório, estaremos falando a respeito do caos que tomou o condado dos Agatsuma desde a invasão dos demônios, gostaria que pudesse se reunir assim que terminasse de tratar o que quer que seja com meu filho. Tenho certeza que terão muito mais situações oportunas onde possam matar as saudades um do outro.
Junto a sua filha, a mulher saiu porta a fora, seguida de Urokodaki a acompanhando em passos lentos. Presumiu que, por envolver a família de Zenitsu, o assunto também seria de interesse da irmã. Na sala, sozinhos, os dois se levantaram, Tanjiro indicando para irem até a recepção do segundo andar, para que tivessem mais privacidade, ao que somente alguns poucos empregados circulavam por lá.
Rumaram, degrau por degrau a sanidade do espadachim se esvaindo e a compreensão da situação tornando-se anuviada. Segurou as maçanetas de ouro da porta de madeira ipê, dando no cômodo bastante arrumado que, honestamente, Kamado usara poucas vezes na vida. As paredes repletas de estantes de livros davam espaços apenas para as janelas que iam do início ao fim da altura da dependência. Apesar de não ser um espaço tão amplo quanto os salões do primeiro andar, ainda sim os sofás e poltronas confortáveis eram o suficiente para receber o mago querido.
Os dois sentaram-se calados, um ao lado do outro, o silêncio torturando-os da forma mais inumada possível.
— Estou feliz em vê-lo tão cedo – Tomioka admitiu.
— Também estou contente em estarmos juntos novamente, Tomioka – sorriu, as palavras do amigo sendo o suficiente para tirá-lo daquele clima enfadonho que criara na própria cabeça.
Ainda eram os mesmos de sempre. Tanjiro, cego pelos sentimentos dos quais se apercebia cada vez mais e mais, se encontrava inábil para manter a relação como sempre fora. Desde então, tudo parecia embaraçoso ao que se pegava pensando em Giyuu.
— Como tem se sentido? É a primeira vez que tem magia circulando pelo seu corpo.
— Até agora, nenhum incomodo. Sabe me dizer por quanto tempo essa camuflagem irá durar – apontou para a própria mão.
— Sem que eu retoque o feitiço, mais duas semanas. Quando perceber que está prestes a desaparecer, basta me chamar.
— Com certeza o farei – exprimiu, confiante.
Tomioka inclinou seu corpo, movimentos fugazes o levaram as mãos até as de Kamado. A tintura vermelha correu diretamente para o rosto do garoto, lançando-o um olhar estupefato. Os dedos de Giyuu correram pelos do outro, encaixando-se perfeitamente entre eles.
— Não precisa ficar nervoso assim quando estivermos um ao lado do outro. Nosso contrato permite que sintamos as emoções um do outro, mesmo que em pouca intensidade.
Os dígitos de Giyuu apertaram ainda mais os seus, tomando a mão marcada de Tanjiro e levando-a até seus lábios, um beijo tênue. Quase rarefeito, o ar faltava-lhe imensamente. Reorientou seu olhar para Tomioka, dando com a visão perfeita do embaraço do amigo.
— Para você que não sente magia, pode parecer besteira – continuou – mas pense um pouco em mim numa hora dessas. Estive o jantar inteiro tentando lidar com a sua inquietação. Está deixando mais difícil a tarefa de me controlar perto de você.
Kamado não respondeu, permanecendo calado, saliva descendo pelo canal seco de sua garganta. Vocábulos fugindo ao pé de sua racionalidade mesclavam-se com os macacos batendo pratos em sua mente, totalmente incapaz de manifestar algo minimamente inteligível. Os dois encaravam um ao outro, próximos, tão próximos que chegava a ser um crime num cenário como aquele. Com o esbarrar dos ombros, as respirações se aproximaram, a chama no peito dos rapazes ardia.
— Devo confessar também que parei de enviar cartas a você pensando que o faria sentir minha falta – sussurrou ao pé do ouvido do outro – Se estava tão ansioso assim, por que não me chamou? Pretende me fazer esperar até quando? Está tão confiante assim de que não vou deixar de desejar você?
— E-Eu... Eu quis, todos os dias pensei em chamá-lo, só que fui incapaz. Toda vez que pensava em fazê-lo soava tão intimido que simplesmente não pude fazer – descarregou os sentimentos de seu peito, falando corrido o suficiente para ser ininteligível.
— Não se contenha nunca mais, chame-me quando quiser.
Deslizando pelo braço de Tanjiro, os dedos do mago correram até sua nuca, emaranhando-se nos fios de cabelo avermelhados. À proporção que Tomioka se inclinava para alcançar o espadachim, Kamado encostava-se ainda mais nas costas sofá, sendo encurralado pelo outro.
— Tanjiro, eu...
Posso te beijar? Era o que o rapaz queria dizer, antes de serem interrompidos pelo servente que abriu a porta, assustando-se com a cena tão intima, os dois quase se beijando. Fora o suficiente para estalar a consciência de Tanjiro e retirá-lo do transe. Fitou Giyuu, constrangido.
O serviçal anunciou a requisição da presença de Tomioka pela marquesa, fechando as portas duplas deixando apenas o barulho apressados da sola de seus sapatos. Trazendo o amigo mais para perto, o mago roubou-lhe um beijo apressado, um carimbo breve entre as duas bocas.
— Por hoje paramos por aqui – ele disse – Sinto muito pelo constrangimento, mas não iria ser pego e continuar sem fazer nada.
Desacreditado, observou Tomioka sair da sala afobado. Seu sangue formigava nas bochechas tão vermelhas quanto tomates, as pupilas não podiam impedir a dilatação que seguiu junto ao sorriso doce dos lábios do menino. Deitou-se confortavelmente no estofado, girando de um lado para o outro sem saber por onde deixar escapar a alegria que sentia.
De repente, todos os pensamentos infames acerca de uma possível rejeição foram iminentemente eliminados das faculdades mentais de Tanjiro. Sua insegurança escorrendo por entre os dedos, esvaindo-se completamente do corpo quase purificado pelo beijo tão terno que acabou de receber. Desejava com todas as forças demitir o funcionário mal-educado que nem ao menos soube bater na porta e anunciar sua presença. Se ao menos o tivesse feito, poderia dispensá-lo e traçar Tomioka ali mesmo, aprofundando a relação num ósculo tão desejado.
Levantou, caminhando até seu quarto numa felicidade que transpirava por todos os seus poros. Sua irmã o esperava lá, sentada na ponta de sua cama, ansiosa para fuxicar em sua vida e descobrir mais sobre o episódio privado entre ele e Tomioka. Dado aquele momento, provavelmente o rumor, de que o jovem mestre das casas Kamado realmente esteve envolvido com Tomioka Giyuu durante todo aquele tempo, pulava de boca em boca por entre os serventes . Aguardaria impaciente pela reação de sua mãe, na espera de uma discussão sem tamanho que desencadearia ainda mais desentendimentos.
Sem que demorasse muito tempo, nas próximas semanas o boato já correria pela capital, o que afetaria a imagem da senhorita Kocho, já anunciada como pretendente para ser a nova marquesa Kamado. Cada vez mais a situação se complicava e, apesar disso, Tanjiro não podia conter a satisfação em finalmente ter de volta seu mago.
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