Há uma floresta atrás do castelo, uma floresta densa de árvores altas com folhas escuras. Suas clareiras são belas e suas entranhas são sombrias. Toda criança e todo idoso conhecem sua história, por isso ninguém entra lá além dos nobres, protegidos do Sol e irmãos das estrelas. Existe algo na floresta, uma sombra à espreita dentro do breu das árvores, que ninguém sabe o que é. Esse algo é grande e faminto, dizem que é um demônio, os céticos avisam ser apenas um urso negro, e as crianças cantam ser uma bruxa. Ninguém sabe o que é de verdade, mas os imbecis corajosos que voltaram morreram nos braços dos familiares a dizer que era muito fácil saber por onde andava a besta, basta seguir o cheiro de sangue e os gemidos da mais recente presa. Por anos, tudo não passou de uma lenda, e timidamente o castelo e os vilarejos foram se expandindo, a floresta pouco a pouco diminuindo — claro que apenas de manhã, quando o Sol protegia seus habitantes e eles podiam cortar as árvores da borda sem medo, pois, ao sinal do primeiro raio se esconder atrás da montanha, todos se afastavam e entravam em casa. Desdenhavam dos supersticiosos, mas também se entocavam ao sétimo sino, cada um em seu refúgio trancado e religiosamente resguardado.
Assim contam os trovadores e os músicos de tabernas a história antiga já enraizada na terra de Fukurodani, um reino antigo onde a família Bokuto esteve no poder desde períodos incontáveis. A história da besta da floresta sempre foi popular entre todos, não importava a origem da criança, fosse em uma cama de penas de ganso, fosse num finíssimo colchão de palha, a mesma sombra rondava os pesadelos em milhões de formas diferentes, o limite era a imaginação do seu subconsciente. Você cresce sendo alertado e morre passando aos jovens o aviso: ninguém entra na floresta à noite e ninguém entra muito longe nela de dia também, só estará seguro aquele que ficar no vilarejo. As crendices, porém, não podiam alertar o dia da volta da besta. Os sumiços aconteciam frequentemente, todas as noites, mas quase ninguém realmente notou o desaparecimento de um mendigo imundo, de uma menina maltrapilha que não tinha mais pais, da lavradora isolada de tudo e todos. Não, essa escória não recebeu os holofotes, mas, quando a filha de um coletor de impostos sumiu, a história foi outra. Achada apenas uma deplorável e assustadora bola de carne e sangue, os grunhidos desumanos foram reportados ao rei, e depois milhões de outros, só Deus sabe quantos rastros de sangue já haviam sido apagados, quantos corpos já haviam sido decompostos pela terra, eram cenas desconcertantes e horríveis. Com isso, o medo se espalhou como o fogo, o povo estava em pânico, e o sistema feudal precisava dele para funcionar.
O rei já era um senhor idoso e pouco podia fazer além de andar alguns metros pelo castelo e deitar em sua cama. Com a idade avançada, doenças respiratórias vieram, e ele só podia ficar recluso e comandar remotamente o que seu filho mais velho resolvia por ele mundo afora. Agoniado com a raiva da população em estar tão exposta a um perigo que agora não se esconde mais apenas buscando por viajantes desavisados e tolos destemidos que invadiam a sua escuridão, sua melhor decisão era mandar o seu herdeiro mais velho numa expedição de busca e aniquilação para terminar de vez com o que quer que fosse aquela coisa. Seu único medo era que a besta fosse tão forte quanto um pequeno exército e seu filho. O príncipe não hesitou em dizer que iria assim que a proposta lhe chegou aos ouvidos — tinha mania de grandeza, e matar uma fera daquelas seria o toque de glamour adicional à sua reputação, mesmo que fosse apenas um enorme urso pardo em meio à escuridão.
Duas noites mais tarde, Kotarou Bokuto estava em cima de um cavalo junto a uma escolta de dez homens. O príncipe era uma figura de aparência forte, tinha gostos extravagantes assim como qualquer indivíduo da corte — e isso ficava claro em seu cabelo, que não sabia se decidir entre o preto e o branco, e que o príncipe fazia questão de arrumar da maneira menos convencional possível. Seus olhos, de um dourado brilhante seja qual fosse a luz que se pusesse a refletir neles, eram espelhos da sua natureza obstinada e carismática. No geral, era uma pessoa de humor brilhante, mas extremamente barulhento e demasiadamente desastrado para um príncipe quando fora de seus deveres. Chegava a assustar como, com o passar dos anos, ele aprendeu a dividir sua mente em duas partes, uma para ocasiões sérias e o resto para todas as outras ocasiões — não que ele estivesse completamente centrado e calmo, sua natureza não poderia jamais ser ignorada, e ele seria sempre impulsivo, mas definitivamente havia aprendido a ser mais silencioso e analítico. Então estava ali, respeitosamente à frente do resto dos homens procurando pelo rastro da besta, o coração apertando em preocupação com o sumiço da pessoa com quem mais se importava justamente naquele dia, justamente após uma discussão que não acabou bem, justamente após quase serem pegos. Bokuto temia pela vida de Akaashi, e sua mente insistia em pensar que a coincidência de ninguém saber de seu paradeiro no castelo e de ele não o ter achado nas ruínas atrás da ala abandonada seria resultado da pior das hipóteses.
— É bom que você esteja seguro, seja lá onde estiver…
Repetia para si mesmo em voz baixa enquanto olhava ao redor, apenas a escuridão fantasmagórica o rodeava, e o seu maior consolo era ouvir os passos de seus companheiros atrás de si. Estavam todos no escuro, o homem mais atrás desenrolava um fio vermelho, pois pouco se conhecia dos caminhos da floresta, e se perder em meio ao breu não era opção. Kotarou lembrava-se bem da reunião de estratégia, que reuniu alguns clérigos e o soldado especial de quem sempre se esquecia o nome. Lá argumentaram que a fera seria afastada pela luz como o ser das trevas que era, e, mesmo que o príncipe achasse o contrário, pareceu que não realmente teria credibilidade dentro daquele espaço, visto que seu pai de mente cansada parecia concordar. Via-se agora no meio do escuro, sendo guiado pela luz da Lua infiltrando-se pelos buracos que os milhares de galhos secos pelo outono formavam no alto. Com o passar do tempo, ele pôde sentir sua visão já acostumada à falta de luz forte e podia distinguir melhor as nuances das sombras que se erguiam em tons diferentes de preto por seu caminho. O vento frio era uma brisa calma e silenciosa, mal se moviam as árvores e os arbustos, os únicos sons eram os cascos dos cavalos e as botas de ferro de alguns soldados esmagando as folhas secas e os gravetos.
O silêncio só perturbava pela concepção de calmaria antes da tempestade. A ansiedade era o monstro silencioso que não tardou em atacar um por um e logo tinha cada coração, cada mente e pensamento na ponta dos dedos ásperos e frios, ninguém corajoso o bastante para abrir a boca, muito menos para admitir a conduta vista como fraca, que era temer o inimigo, ainda que esse fosse hipoteticamente uma força obscura que poucos chegavam a achar compreender e que poderia destruí-los. O tempo parecia viver em um paradoxo em que interminável corria muito rápido, fazendo o estômago embrulhar. Era difícil de explicar e doloroso de sentir, as mãos de Bokuto suando nas rédeas de couro e a espada pesando na cintura. Deveria correr? Deveria desistir? Procurar rastros de um urso e forjar a morte da besta? Tantas perguntas vieram junto a barulhos que não existiam, havia algo no ar daquela floresta que fez até do príncipe um refém.
Foi naquele momento que tudo aconteceu, tão rápido que mal pôde acompanhar: os cavalos todos empinavam a relinchar em plenos pulmões, não conseguiam correr, mas pisoteavam o chão ao redor em fúria. O que quer que estivesse ali havia-os encontrado e, antes que qualquer um pudesse raciocinar, o cheiro de sangue encheu o ar, e o homem que levava a fita berrou, um grito tão alto e desconsolado que gelaria o sangue do maior brutamontes de nervos de aço.
— O que aconteceu aí atrás? — Bokuto perguntou tentando ao máximo não deixar a voz vacilar em um fiapo trêmulo.
Houve um murmúrio antes que um dos soldados se pronunciasse com uma voz que quase chegou a estampar o quão pálido deveria estar no momento.
— Vossa majestade, cortaram a corda e… levaram Takahashi junto.
Foi indescritível o terror sentido só pela confirmação de algo já temido, mas pior ainda foi o que veio depois, uma asseguração de que não era uma piada de mau gosto: um uivo gutural se espalhou reverberando pelas árvores, quase não parecia humano, mas o som do engasgo no próprio vômito de parte dos soldados deixou subentendido aquela ser uma voz conhecida pela maioria, o soldado levado parecia clamar por misericórdia enquanto se afogava no próprio sangue, um som completamente desconcertante e tenebroso. As músicas infantis e as memórias dos entes queridos assombravam a consciência de todos ali, que já se consideravam mais um grupo de tolos imbecis cegos de coragem. A mente de Bokuto voou para as lembranças de Akaashi, era tão difícil tentar ser racional naquela hora, era ainda mais difícil superar a sensação petrificadora do medo enquanto seu cérebro gritava e xingava para que se movesse, para que perseguisse o som perturbador do homem morrendo, seu corpo estava rígido, sua mandíbula travada, e os olhos arregalados. Só precisava de um incentivo, um empurrão, ou talvez um tombo mesmo.
Quando as súplicas e o choro começaram a desvanecer, algo muito rápido voltou a espreitar ao redor do pequeno grupo. Alguns desesperados, numa falsa coragem, desembainharam as espadas, mas foram abatidos pelas garras da sombra rápida, que pareceu voar de um ponto a outro num pulo. O som de tecido batendo ao vento foi o que fez Bokuto perceber, ao cair do cavalo assustado, que aquela coisa usava uma capa — a besta não era um animal raivoso e enorme, mas humano também não devia ser. O príncipe teve de rolar às cegas para não ser pisoteado pelos cavalos, o caos apenas começava ao seu redor com os homens gritando e alguns parecendo ter entrado em combate, Bokuto só esperava que fosse com a besta, e não entre si, aquela ideia de vir no escuro foi definitivamente a pior de todas. Levantou-se num pulo já preparado para empunhar sua espada, não fosse um corpo caindo em cima de si e quase ser atropelado por um homem em um dos cavalos.
— Prestem atenção, soldados! Respirem e olhem ao seu redor! Analisem as malditas silhuetas dos que estão usando armadura e se organizem! Estão jogando tudo no lixo, cabeças de vento.
O príncipe estava estressado, analisava com sua limitada visão noturna o caos que o rondava, a massa emaranhada de gritos e de, agora, sangue — parecia um cenário de guerra que Bokuto não gostaria de se meter dentro. Seus homens já estavam surdos de medo e ódio, àquele ponto, Kotarou era a mente mais capacitada para pensar na situação. Respirando fundo, sentiu uma dor crescente no abdômen, pensou serem umas duas costelas quebradas, mas não era nada que o impedisse de se levantar e lutar. Observando a situação de seus soldados, percebeu uma sombra esguia e esvoaçante afastar-se correndo por entre as árvores, não iria esperar seus homens terminarem de se matar ou recobrarem o bom senso, era agora ou nunca: desembainhou a longa espada, que reluziu num perdido feixe de luz da Lua em uma cena dramática, e pôs-se a perseguir a infame criatura. A sombra era veloz, mas parecia cambalear, por isso Bokuto estranhou estar tão fácil perseguir algo que raptou e matou seus companheiros tão velozmente. Já ofegante, pareceu parar de prestar atenção por apenas um segundo quando algo o empurrou com força anormal contra o tronco de uma árvore. Ele soltou um grunhido cortado pela súbita falta de ar com o impacto das costas contra o grosso tronco maciço. Sem pensar e ainda zonzo, procurou pela espada que derrubou, mas só achou um pedaço um tanto mais longo de um galho seco. Sentiu a mais pura adrenalina percorrer-lhe as veias naquele mesmo instante quando segurou firme o pedaço de madeira e avançou no borrão que era a sombra à sua frente: uma figura quase tão alta quanto Bokuto, vestindo uma longa capa preta de capuz levantado e mergulhando a face desconhecida em sombras. Foi um combate árduo, nenhum dos dois combatentes aptos a lutar de maneira própria, era muito fácil de ouvir-se o silêncio espectral da floresta ser quebrado pelos sons dos ofegos de ambos os lados.
Em algum momento, chegaram a uma majestosa clareira. Não havia árvores ao redor, e a Lua enorme iluminava quase angelicalmente o amplo espaço redondo com uma luz prateada, que parecia competir com o brilho fogoso do ouro líquido nos olhos de Bokuto, as estrelas eram um milhão de testemunhas mudas ao embate doloroso. Bokuto empurrou a sombra com o pé, fazendo-os entrar de vez no espaço iluminado, e assim o capuz da fera caiu. Naquele momento, a vista do príncipe desanuviou, e ele perdeu completamente a cabeça ao ver que aquela criatura envolta em sombras possuía gentis olhos conhecidos. Caiu de joelhos no chão poeirento, praticamente sem ar, observando a face do amado ficar completamente visível à luz da Lua. Era impossível dizer quem carregava mais dor no olhar, quem estava mais desgostoso. Lembranças vieram à tona para o príncipe: os cortejos secretos, as investidas desavergonhadas, os encontros à luz da Lua, seus beijos secretos, seus abraços constrangedores, uma valsa escondida numa parte do jardim onde podiam ouvir a música do baile. Tudo. Keiji Akaashi, o jovem duque das terras atrás da floresta, sua família sempre esteve presente na vida da família real, e ele sempre esteve presente no coração do príncipe.
— Há quanto tempo você faz isso?
Foi tudo o que conseguiu perguntar, sua voz trêmula, ele estava à beira das lágrimas, as raras lágrimas de Kotarou Bokuto.
— Três anos. Bokuto, por favor, me escute…
— Sempre aqui, nessa floresta?
Akaashi segurava as lágrimas também, ainda que não conseguisse abandonar sua face naturalmente inexpressiva. Era difícil falar daquilo com a pessoa que mais amava, difícil admitir que matava sorrateiramente o povo do reino e do próprio ducado quase toda semana, dizer que assassinava o povo a quem Bokuto tanto prezava e pessoas que jurou proteger, sentia-se desprezível, assim como temia perguntar algo.
— Sim. Comecei pelos que ninguém lembrava, estavam sempre perto da borda, mas eram sempre magros demais, o sangue era tóxico.
Um silêncio assolou o ambiente depois, não era constrangedor e muito menos leve, era um silêncio ensurdecedor, como se o vento, as árvores e os animais tivessem parado para ouvir. Deixava o ar tenso e difícil de respirar e se demorou na clareira por algo que pareceu, e provavelmente foi, uma eternidade, pois os joelhos de Bokuto começaram a doer, e a respiração de Akaashi pareceu pesar consideravelmente. Uma pergunta precisava ser feita, ficava quase subentendido que o universo a fazia, mas os dois pareciam ter medo da resposta.
Antes que qualquer coisa pudesse acontecer, algum ferimento abdominal causado no meio do conflito pareceu querer causar problemas, Kotarou começou a tossir com força, apoiando-se com as mãos no chão enquanto sibilava algo incompreensível. Isso fez Akaashi afobar-se, ele se ajoelhou ao lado de Bokuto, ajudando-o a se escorar no tronco de uma árvore, o duque se livrou do peitoral e da limalha de ferro da armadura do príncipe, achando a leve mancha vermelha no tecido caro da camiseta. Precisou engolir em seco ao sentir o cheiro do sangue dele. Seus instintos diziam para avançar contra a carne quente e macia para provar do líquido escarlate e viscoso, mas seu sentimento por ele falava mais alto, o que o fazia sentir uma dor de cabeça de lacrimejar os olhos. Rasgando o tecido como se não fosse nada, encontrou um ferimento que provavelmente ele causou, olhou suas mãos e as viu sujas de sangue, seu lado ainda humano parecia querer colapsar, sua mente travava uma batalha contra ela mesma, não fosse a voz rouca que tanto amava para o acalmar:
— Eu já te disse como amo seus olhos? Eu nunca consegui descobrir qual a cor deles, são escuros, mas têm um brilho verde intenso e escuro quando você fica feliz. Você está triste agora, eu posso dizer, pois eles estão brilhando azul-marinho. É bonito, melancólico, mas pelo menos não é aquele terrível cinza-escuro de quando aniquilou meus homens sem dó e… agh!
Keiji pareceu acordar do transe, sorriu, da maneira que só Bokuto sabia fazê-lo sorrir.
— Fique quieto, coruja cabeça de vento. Vai se machucar mais.
Despiu-se da longa capa de tecido grosso e rasgou uma longa tira dela, passando ao redor do abdômen do ferido e prendendo-a bem, numa forma de evitar que sangrasse ou abrisse mais. Quando terminou, voltou seu olhar para as orbes de ouro de Bokuto, intensas e quentes, Akaashi sempre as amou secretamente, eram belíssimas de perto.
— Eu ainda me pergunto, Akaashi, o que você é exatamente. Você não é um demônio, disso tenho certeza, suas mãos estão realmente frias agora.
Encaravam-se com seriedade, ainda que o clima tivesse melhorado.
— Um vampiro só é um demônio com nome diferente. A diferença é que também fui amaldiçoado pelo Sol.
Tudo fazia sentido agora, o duque realmente tinha mudado há pelo menos uns três anos, só aparecia de noite, havia se tornado um pouco mais carrancudo que o normal e se encontrava sempre frio e pálido. Doía um pouco ouvir aquilo da voz aveludada de Akaashi, o que fez Bokuto procurar inconscientemente a mão do vampiro e apertar bem contra o peito.
— Bokuto, não tens nem ideia do quão difícil é sentir o cheiro do teu sangue sempre tão próximo quando nos abraçamos e ter de lutar contra o instinto de te matar no mesmo momento, é doloroso saber que sou capaz de coisas horríveis e que eu ameaço a sua vida em especial. Eu não sei se enlouqueceria de angústia ou pelo impulso. Você só me causa problemas até após a morte, tem noção disso?
Às vezes era adorável como se tratavam de maneira tão informal, isso fazia Bokuto abrir um de seus enormes e irritantes sorrisos toda vez que Akaashi abria a boca para reclamar do quanto trabalho e problemas Kotarou causava. Uma risada fraca e bem-humorada escapou dos dois, debilitados demais para que ela conseguisse alcançar mais que aquele pequeno espaço entre eles, mas já era suficiente. Um sorriso dolorido estampava ambos os rostos e, por alguns pequenos belos instantes, ele esteve ali até que a expressão de Keiji endureceu. A pergunta.
— E, então? O que vai fazer comigo agora?
Bokuto olhou para longe, não podia encarar o outro, os olhos voltavam a marejar, sentia-se tão exposto quando o assunto era Akaashi, era tão fácil ruir nas mãos dele, que possuía seu coração.
— Não me faça decidir ainda, é difícil saber que praticamente me voluntariei para te picar e levar a cabeça de brinde. É horrível ter essa necessidade de fazer pelo povo e pelo meu pai e do outro lado ter justamente você: a pessoa que eu mais amo e que ainda assim eu preciso esconder! É um dilema tão grande que chega a doer mais que esse buraco no estômago que você me deu.
Um sorriso amargurado junto a uma leve dose de ódio pintavam os lábios de Keiji, que respirou fundo e brincou:
— Parece que somos dois acabados, cada um com seu dilema fenomenal. Que maravilha, não é?
— Me assusta você tão falante hoje, Akaashi.
O mais doloroso era saber que, naquela história, o amor não iria ganhar, só havia dois fins possíveis à vista: o glorioso herói mata a besta e traz a paz para seu reino, ou ele é comido, e seu sangue se junta aos de milhares de outros banhando aquela terra desolada. Nenhuma das duas versões da cantoria de taberna agradam qualquer um deles, não enquanto a tal besta for Akaashi e Bokuto tiver de ser o príncipe. Seja lá o que tivesse de ser, teria de ser decidido logo, Kotarou já sentia o mundo ao redor começar a girar, e Keiji já passava de seu limite de tolerância aos instintos.
Uma ordem não dita fez com que Akaashi deitasse ao lado de Bokuto, respirando fundo e concentrando-se nos olhos dourados, que lhe mostrariam a direção da sanidade por enquanto. Ficaram ali durante toda a noite, apenas se aproveitando do que talvez fosse a última — e com certeza a menos romântica — madrugada juntos do resto de suas vidas, suas únicas testemunhas eram a Lua e as estrelas, talvez um tímido cervo curioso que por ali também passou. Kotarou lutava contra o sono para admirar uma última vez os olhos gentis na face inexpressiva e bela e, com certo esforço, levou a mão esquerda para sentir a maciez fria da face alheia, que já parecia um pouco borrada aos seus olhos, mas cuja palidez era luminosa à luz da Lua. Keiji Akaashi era uma obra de arte com toda a certeza do mundo, e ele era o homem mais feliz de poder dizer que, naquele momento, aquela obra de arte lhe pertencia.
Horas passaram, palavras que não precisavam ser ditas foram trocadas em olhares e pequenos gestos limitados pela dor de ferimentos e pelo sono. O Sol logo iria nascer, era hora de ir, Akaashi tinha tomado sua decisão e, com relutância, abandonou o calor da proximidade com o corpo de Bokuto e o deixou da maneira mais confortável possível escorado no tronco da árvore.
— Kotarou, por favor, apenas não se esqueça de que eu te amo.
Foram seus últimos sussurros antes de parecer desaparecer, bastou apenas um único piscar de olhos. Bokuto então compreendeu e finalmente se permitiu derramar suas lágrimas, que dessa vez também tinham um tom de raiva. Ali, sozinho na floresta, juntou suas últimas forças antes de desmaiar a fim de gritar, torcendo para que Akaashi o tivesse ouvido:
— É bom que você não me deixe aqui nesse fim de mundo para sempre, venha me buscar para que eu te ajude a passar por esse fardo, seu grande imbecil!
Parece que nenhum dos dois pensou antes em compartilhar da mesma sina, não que Bokuto estivesse disposto a se tornar um vampiro, mas, se tivesse a chance de amenizar aquele peso da existência árdua de um ser como Akaashi, ele iria, mesmo que jamais pudesse compreender totalmente. Mas agora era tarde, o Sol já aparecia para iluminar mais ofuscantemente a clareira. Guardas de patrulha emergencial logo chegariam para achar o príncipe e levariam aos quatro cantos do continente a história de como ele aniquilara a lendária besta da floresta atrás do castelo, agora as crianças não haveriam mais de crescer com medo, e os idosos não mais morreriam afogados em superstição. A última vítima, infelizmente, parece ter sido o duque da família Akaashi, o famoso e querido confidente do príncipe, que seria com certeza um grande rei e o perfeito pretendente para uma bela lady da terra vizinha que iria dar-lhe adoráveis crianças, assim poderiam ambos se beneficiar de um incrível tratado de unificação de terras.
Sim, Bokuto tivera uma bela vida como rei. Casou-se jovem, naquele mesmo ano. Teve seis filhos e houve de explorar quase em totalidade aquela, antes assustadora, floresta atrás de seu castelo. Gostava de liderar batalhões, seu vozeirão alto e incômodo serviu para pelo menos ordenar as tropas. Tudo era tão próspero em sua vida, mas algo faltava, tudo aconteceu muito rápido, ainda tinha quarenta e dois anos e parecia ser quase igual à sua figura antiga — não fosse a esporádica dor na coluna, mas quem não tem sentado o dia inteiro em um trono?
Talvez fosse por isso, talvez apenas uma estranha mania, afinal, Bokuto era todo estranho, mas, toda noite, até que quase amanhecesse, ele subia até a torre mais alta, onde havia montado um estranho quarto, que dizia ser um escritório adicional. Só havia uma mesa, dois cálices e várias garrafas de vinho. Ele sempre se sentava ali, enchia um dos cálices e esperava bebendo enquanto observava as estrelas, poderia mapeá-las de cor se quisesse, mas só ficava ali: ouvindo o vento, relembrando um passado secreto e tentando sempre manter viva na memória a visão de um par de olhos gentis conhecidos, que encontrou na penumbra de uma floresta escura. Daquela vez, ele os encontrou novamente, da mesma maneira que ele se lembrava, talvez um pouco mais cansados, mas estavam ali.
— Até que enfim, eu estava pensando que gritei para nada naquele dia, foi vergonhoso, sabia? Eu era bem orgulhoso, mas ainda consegui implorar que viesse me buscar. Enfim, estou feliz que esteja aqui, Akaashi.
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