"Somos donos dos nossos atos,
mas não donos dos nossos sentimentos.
Somos culpados pelo que fazemos,
mas não pelo que sentimos.
Podemos prometer atos,
mas não podemos prometer sentimentos.
Atos são pássaros engaiolados.
Sentimentos são pássaros em voo."
(Rubem Alves)
Qual é o mistério da morte?
Se não te vejo, sinto-te me afagar.
Se não te ouço, sussurra no meu ouvido cálidos gracejos.
Se não posso te tocar o rosto afogueado, minhas mãos suam e tremem por causa dessa maldita abstinência.
Qual é o mistério da morte?
Qual é a razão da minha dor?
Agora que o silêncio é permeado pela brisa da noite, compreendo que é saudade tanta aflição.
Saudade das palavras saídas da sua boca atrevida.
Saudade da sua coragem destemida.
Saudade de ser livre, como você era.
Quero te beijar, David!
E por quê só agora descubro que te amo?
Que te amei, desde o início.
Parecia tão fácil te olhar nos olhos e ter a certeza do seu afeto por mim.
Parecia tão certo como o ar que respirávamos juntos e de mãos dadas.
E por quê não voltei quando gritou pelo meu nome?
Minha raiva foi meu algoz.
"CANSEI DE VOCÊ, Alexis!" - vociferou, tão convicto quanto hesitante.
Desculpe!
Desculpe por não ter parado e pensado melhor.
Talvez nossas existências precoces não tivessem se estilhaçado desse jeito se tivéssemos nos olhado por mais um pouco de tempo.
Talvez você me pedisse perdão pelo engano e me abraçasse.
Talvez fizéssemos amor ali mesmo, na loja da sua mãe.
Talvez, talvez, a morte não o tivesse levado de mim.
"Você é fascinado pela morte, não é?" - e, de repente, sua pergunta ecoa na minha mente vazia.
Meus olhos estão cansados.
Fecho-os e me encolho sobre a terra fresca.
Sua sepultura.
A madrugada fria e escura se achegando, um resquício da tristeza em minha alma.
-Ah... e acho que esse é meu maior defeito! Ser fascinado por tudo aquilo que não posso entender. - murmuro baixo, e as lágrimas já molham minha face abatida. - E por quê eu não me esforcei mais para entendê-lo? Por que David, por quê?
Os soluços implodem da garganta.
As roupas amarrotadas e sujas um retrato do desalento.
E nas palmas das mãos cerradas a terra entre meus dedos escorregando, esvaindo-se.
Não o verei mais.
Mas te guardarei em meu coração; cada detalhe, cada sorriso matreiro, cada som e nuance do nosso curto e tempestivo convívio.
Qual é o mistério da morte?
Se não te vejo, sinto-te me afagar.
Se não te ouço, sussurra no meu ouvido cálidos gracejos.
Se não posso te tocar o rosto afogueado, minhas mãos suam e tremem por causa dessa maldita abstinência.
Qual é o mistério da morte?
Qual é a razão da minha dor?
-Só me resta cumprir essa promessa estúpida... - suspiro e me deito sobre meus braços cruzados, ainda repousados no solo. - afinal, eu devo estar louco, não é?
Um louco por te amar assim, ainda que tenha me abandonado.
Ainda que tenha mentido sobre não querer se prender a alguém.
Eu te desculpo, por tudo!
E espero que de onde esteja, também possa me desculpar.
Porque somos dois loucos.
Um, na vida.
E o outro, mesmo depois da morte.
Loucos!
.
O corpo inerte e empalidecido.
Prostrado sobre a mesa de metal.
O mesmo que eu desbravei com tanta curiosidade.
Que se deitou sobre mim e me fez delirar de tesão.
As íris azuis escondidas sob pálpebras fechadas.
Olhos que não brilhariam mais.
Que não me confrontariam mais.
Que não transmitiriam mais paixão.
Aquele fogo tão seu!
O corpo, outrora ávido, murcho e sem nenhum vestígio de cor.
Aquele tom rubro floreando as bochechas, pescoço e ombros.
A pele macia sob minhas palmas sedentas na hora do prazer, no instante do orgasmo.
Tão, tão irreal.
E pensei, desesperado, que aquele não podia ser você;
O garoto de dezoito anos em quem esbarrei durante minhas férias na França.
Que me salvou de ser engolido pelo mar quando meu barco virou enquanto eu velejava.
O garoto extrovertido que aproveitava cada segundo como se o amanhã sequer existisse.
O garoto que me conquistou aos poucos e que me ensinou a ser melhor.
Não!
Aquele não era mesmo você.
Corri!
Saí daquele necrotério emudecido pela realidade.
"Um acidente de moto tira a vida do estudante David Gorman..." - os noticiários não divulgaram outra coisa naquela tarde amena.
Lembrei que fiquei trancado no quarto, remoendo o despeito de ter sido dispensado.
E que a tragédia se passou minutos depois que discutimos, que saí quebrando tudo dentro da loja, que peguei minha bicicleta e pedalei até minhas pernas fraquejarem.
Lembrei que deixei o travesseiro se encharcar com meu pranto condoído.
Que chorei, como a muito não chorava.
Lembrei que liguei a televisão depois e que ouvi sobre o acidente.
Que saí correndo, consternado, outra vez, que fui a sua casa e que sua mãe me expulsou.
Ela me culpa, sabia?
"Mas eu o amava..." - tentei dizer, mas ela me bateu no rosto. Ela me mandou embora.
Será que agora está feliz?
Ou será que lamenta, como eu, nosso cruel destino?
Será que se arrependeu de transar com aquela garota pelas minhas costas?
Ou será que se amaldiçoou porque também descobriu que me amava?
Ficou com medo de admitir e, então, preferiu me desprezar?
Que foi um covarde?
Jamais saberei!
Mas eu te amei, David.
Amei no instante que te vislumbrei chegando no seu barco na costa da Normandia para me resgatar.
E amei muito mais depois, quando fomos mais íntimos.
Quando nus sobre a mesma cama.
Quando me penetrou e me pediu para respirar, com calma, sendo gentil na minha primeira vez.
Quando me encobriu de carinho e de beijos ardentes.
Amei quando acarinhou meus cabelos, quando os enrolou entre seus dedos.
Amei quando adormeceu ao meu lado, quando pareceu um menino no corpo de um homem absurdamente bonito.
Eu te amei.
E eu sei que sentiu isso.
"Prometa que quando um de nós morrer, o outro dançará sobre o seu túmulo!" - quis que eu prometesse certa vez, em uma das nossas conversas sobre os mistérios insondáveis da humanidade. - "Dance, dance com sinceridade e vontade, por mim!"
Eu quis rir.
Mas sua expressão me fez estancar.
"Serio isso?" - fiquei indignado. E recordo que seu semblante irritado me deu certo medo.
"É sério! Prometa." - se aproximou e me olhou de cima, agarrou meu rosto e quase encostou os lábios nos meus. - "Quero que faça isso, agora!"
"Mas você não vai morrer, nem eu..." - e o gosto doce da sua saliva invadiu minha língua.
Calou-me, abruptamente.
Oh!
E como eu adorava seus beijos!
Eram bálsamos para todas as minhas dúvidas.
Eram avisos explícitos de que eu poderia confiar em você, em tudo.
"Eu sei. Apenas quero que faça, caso eu morra. Só isso, Alexis. Por favor?" - confabulou no meu ouvido quando nossas bocas se soltaram. A respiração ofegante dele me hipnotizando.
"Tudo bem! Prometo. Só por você!" - finalmente decidi e a alegria que ele demonstrou depois, valeu por tudo. Até me esqueci do quanto concordar com essa tolice foi irresponsável.
Voltei a beijá-lo.
E nos unimos, pela segunda vez, naquele crepúsculo, sobre os lençóis dele, no quarto dele.
O sol estava se pondo.
Faltavam três dias para tudo acontecer.
Um mês e meio não foram suficientes para tantos sentimentos.
Tantas emoções que ficaram inacabadas ao longo do nosso curto caminho.
Tantas poesias que deixei de ouvi-lo ler para mim.
Tantos galanteios que deixaram de me fazerem enrubescer.
Desejei que eu pudesse ter falado tudo.
Que você não fosse tão teimoso.
Desejei que nunca tivéssemos nos conhecido.
Desejei que eu tivesse morrido no seu lugar.
Desejei que o 'eu te amo' tivesse sido dito.
E nenhum de nós o falou, enfim!
E agora, sozinho, com essas memórias dolorosas, sinto ganas de esbravejar.
Afundar-me nesse abismo profundo e sombrio.
O que eu faço agora?
Se eu depositei em você, David, todas as minhas fichas.
Sequer uma reles foto eu tenho.
Uma imagem graciosa sua para rever, quando a angústia e a melancolia estiverem me esmagando.
Então... qual é o mistério da morte?
Se não te vejo, sinto-te me afagar.
Se não te ouço, sussurra no meu ouvido cálidos gracejos.
Se não posso te tocar o rosto afogueado, minhas mãos suam e tremem por causa dessa maldita abstinência.
Qual é o mistério da morte?
Qual é a razão da minha dor?
São tantas coisas que não posso explicar.
Mas a música falaria por mim.
.
.
"Eu estou navegando, estou navegando
De volta para casa, através do mar
Estou navegando sobre águas tempestuosas
Para estar perto de você, para ser livre
Eu estou voando, estou voando
Como um pássaro, através do céu
Estou voando, passando por nuvens altas
Para estar perto de você, para ser livre
Você consegue me ouvir? Você consegue me ouvir?
Através da noite escura, muito distante
Eu estou morrendo, sempre chorando
Para estar com você, quem pode dizer?
Você consegue me ouvir? Você consegue me ouvir?
Através da noite escura, muito distante
Eu estou morrendo, sempre chorando
Para estar perto você, quem pode dizer?
Nós estamos navegando, estamos navegando
De volta para casa, através do mar
Estamos navegando sobre águas tempestuosas
Para estar perto você, para ser livre
Oh, Senhor, para estar perto de você, para ser livre
Oh, Senhor, para estar perto de você, para ser livre
Oh, Senhor."
A melodia nos meus ouvidos me leva para longe, para perto de nós.
E me levanto cambaleante.
Danço.
Nada me importa!
Danço sua música preferida, as notas tocando através dos fones do meu velho walkman.
Danço, com a mesma loucura que me levou a te querer com tanta impetuosidade.
Furor.
Danço.
Danço.
Sobre sua lápide inacabada.
E de olhos fechados, deixo o choro me consolar.
A chuva começa a cair do céu.
E ficamos nós dois, assim...
Bailando.
A promessa feita no átimo daquela felicidade, cumprida no ápice da minha desgraça.
-Eu te amo, David! Eu te amo. Espero que um dia possamos nos reencontrar. - declaro-me, partido em infinitos pedaços.
E nem sei mais o quanto ainda sobrou de mim, da minha sanidade.
Mas sei que nunca mais serei o mesmo.
Bendito verão de 1985.
Benditos dezesseis anos.
Bendito amor!
.
.
.
Qual é o mistério da morte?
Talvez... nos ensinar a dar o máximo de valor àqueles que conquistamos durante a efêmera e frágil vida?
Talvez.
Talvez.
Então, seguirei em frente, navegando em você.
Pra nunca mais te esquecer.
E esse será o meu amargo castigo.
"O mundo já caiu, só me resta dançar sobre os destroços."
(Clarice Lispector)
FIM
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