"Quando os corpos se conectam, as almas fazem um pacto."
(Lena Casas Novas)
Já estava ali, deitado sobre a cama, a algum tempo.
Os lençóis de linho, de um tom clássico de azul turquesa, lembrava-lhe do Mar Tirreno, calmo e puro, compondo a beleza única da sua amada Nápoles.
A cidade que lhe havia dado uma perspectiva, mesmo que tivesse nascido na Espanha.
O berço de suas mais terríveis agruras.
Mesmo que fosse filho de um japonês introvertido e cruel e de uma muchacha(1) simplória da periferia de Madrid.
Ah...
Achava que pouco se parecia com aquele Yakuza de merda!
Um sanguinário sem escrúpulos e que nada fez para protegê-lo ou proteger sua pobre mãe das assíduas guerras entre facções.
Lembrava-se de ouvir os gritos desesperados daquela mulher tão graciosa diante do menino de oito anos, ouvia-a implorar aos estranhos raivosos e tatuados que perdoassem seu marido e seu pequeno hijo(2).
Lembrava-se dos desenhos gravados na derme deles.
"Dragões coloridos, que circundavam e adornavam de harmonia exótica a extensão das peles leitosas, cerejeiras vivas e preenchidas de um lilás hipnotizante... "
-E os peixes ... - divagou, quase sussurrando, em meio a penumbra do quarto luxuoso de um hotel localizado no centro da cidade, iluminado apenas pela luz singela de um abajur de cabeceira.
Estava ali, deitado e nu, sobre a cama grande e desarrumada, a algum tempo.
Olhou para a janela ao lado e vislumbrou, nostálgico, o tremular manso das cortinas rubras; ouvia o vento forte zunir do lado de fora e pensou que logo, logo, choveria.
Odiava aquele país.
Odiava recordar que havia sido concebido pelo sêmen pútrido de um homem oriental.
Odiava tanto que viu-se enredado na sede quase insuportável de vingança.
Cresceu rodeado por mafiosos e aprendeu com eles uma lição muito valiosa: a opressão gera o silêncio e cala de uma vez a arrogância dos idiotas.
Foi espanhol até os dez anos, quando teve os pais assassinados.
Perambulou de orfanato em orfanato, até ser adotado e levado embora por um italiano carrancudo e obsoleto, e talhado na arte pura e simples da maldade.
Da auto-preservação.
Marco di Lauro(3) foi seu pai e mentor.
Disciplinador implacável, despersonificou a inocência do menino e reconstruiu a personalidade gélida e inabalável do indivíduo que era agora.
Não restou nada.
Com trinta e dois anos, permitia-se tão somente fantasiar seu passado, encarando-o como um desvanecido e longínquo pesadelo.
Permitia-se ser chamado pelo nome de batismo só para voltar a compreender que o futuro era tudo que importava.
-Azumaya Junta? - e aquela voz lânguida e sensual despertou-o do transe, aflorou seus sentidos absolutamente apurados e atravessou a distância que os separavam, atingindo-o como uma tempestade excruciante. - Sempre tão pensativo, não é?
Ah...
Ele odiava aquele país de desaforados e exibidos.
Tinha raiva de ser descendente de um deles.
Odiava os Yamaguchi-gumi(4).
E por despeito, tornou-se membro de uma das máfias mais temidas do mundo, a mãe de todas as máfias: a Camorra.
E que ironia estar apaixonado pelo único filho do atual líder da primeira família Yakuza, Kenichi Shinoda, e sétimo kumichō(5) da casa Yamaguchi.
Ousado e de ar rebelde, Saijo Takato possuía um requinte raro.
Os olhos azuis cintilantes e os longos cabelos negros que repousavam sobre suas costas e ombros faziam Azumaya ofegar.
Cheirava a figo fresco.
A tez alva traçada habilidosamente pelo Irezumi(6), trazia belas figuras delicadas; pequenos galhos incrustrados de flores de cerejeira ao redor dos braços delgados, um dragão imponente e alaranjado nas costas e uma grande carpa dourada e salmão sobre o peito, do lado esquerdo.
A estrutura corporal frágil e devassamente sinuosa, causava-lhe dolorosos arrepios.
Um tesão torturante e condoído.
Emoções tão conflitantes que, pela primeira vez na sua desgraçada existência, sentia-se perdido e frustrado.
E por quê não dizer abençoado?
Odiava com a sua alma a Yakuza.
E, no entanto, amava-o, loucamente e desesperadamente.
Sim...
Uma grande e amaldiçoada ironia do destino.
-Pensativo não é bem a palavra, meu caro! - e estendendo-lhe a mão, Azumaya chamou-o para si, queria tocar a textura viciante daquela pele, acariciar o rosto ternamente corado e se afundar na boca quente e convidativa. - Estava viajando para uma época muito desagradável da minha infância.
Saijo arqueou uma sobrancelha e sorriu com certa malícia.
Sabia que aquele mestiço não dava ponto sem nó.
Sabia que por detrás dos verdes olivas perfeitos que eram aquelas íris, escondiam-se segredos e dores insondáveis.
Sabia que ele era um mafioso destemido, um homem perspicaz e inteligente.
Mal.
Nada benevolente.
Mas flagrava-se mergulhar em um caos sem fim ao ser tocado por ele, tomado pela fúria do prazer que se mostrava nos gestos, palavras e sensações.
Adorava puxar os cabelos aloirados.
Lisos, feito o cetim mais caro e deleitoso.
Admirar a única marca sobre seu cálido tronco: um corvo, imprimido em linhas sombrias e escuras sobre a nuance bronzeada.
Subjugá-lo de acordo com seus mais sórdidos desejos.
E quão poderoso se sentia ao saber que conseguia levar esse deus nórdico ao delírio!
Parou a centímetros dos lábios finos e matreiros.
Fechando os olhos índigos e desfrutando do hálito doce e cândido que resvalava em sua face.
-Quero tomá-lo agora mesmo, outra vez, Takato-san! - sussurrou perto do ouvido do outro, exalando luxúria e pecado por cada poro. - Permita-me, por favor?
E agarrando a nuca apetitosa, Azumaya o trouxe para cima de si com brusquidão, urgência, sentando-o sobre seu pênis já ereto e úmido de pré-gozo.
Não o penetrou de imediato, não ainda.
Quis apenas esfregar-se nele.
Provocar.
Unir as intimidades latejantes e sensíveis.
Friccioná-las.
Comprimi-las ao nível da loucura.
Pressentir e vivenciar em seu âmago o calor que emanava do valente e orgulhoso samurai da Terra do Sol Nascente.
Seu samurai.
Tão seu!
Testar seus limites.
Saijo correspondeu às intenções nada castas.
Abraçou-o afoito.
Excitado.
Traçou com o polegar o contorno dos lábios entreabertos e rosados, enfiando-o dentro de sua boca.
Encharcando-o de saliva.
Ambos atordoados por aquele frenesi enlouquecedor.
-Venha... - foi chamado por um Azumaya sôfrego e impaciente, descaradamente afogueado, mordiscando o polegar intruso entre seus dentes. - seja meu!
Foi a nota que faltava daquela melodia ensurdecedora de gemidos e arfares, foi a gota d'água para que a tensão entre eles explodisse.
Saijo cravou-se sobre o membro robusto e bem esculpido.
Gritou.
E cavalgou intrepidamente aquela vasta fonte de heresia e lascívia.
Suados.
Pedintes.
Libertinos.
Inebriados pelo ápice que se achegava com furor.
-Só fique comigo para sempre, Takato-san. - ditou com a garganta trancada e com o fôlego quase esgotado pelo esforço. - Apenas para mim!
Uma...
Duas...
Três certeiras e violentas estocadas.
E se derramaram, um sobre o outro.
Um dentro do outro.
Gozaram deliciosamente!
Testas coladas.
Fios negros e claros mesclando-se nessa nefasta dança de rivais.
Respirações entrecortadas e corações condenados a baterem descompassados.
Cúmplices.
-E gora... deixe-me beijá-lo, querido Junta? - pediu, confrontando o olhar feroz e insaciável a sua frente. - E seja meu, apenas o meu amado garoto.
Ora...
Mesmo sendo mais jovem e estando às vésperas de completar vinte e cinco anos, Saijo ainda o chamava de 'garoto'.
Mas adorava!
O regozijo de presenciar os detalhes e as facetas do herdeiro precioso da família mais abastada e suntuosa de Tóquio.
Ah...
Se eles soubessem!
Azumaya riu-se da inusitada circunstância e não se arrependia!
Morreria por ele.
Mataria por ele.
-Você sabia que o beijo tem um significado importante para a Camorra? - indagou brincalhão, já se aproximando e traçando, com sua própria língua, os lábios dele. - Será responsável por isso, senhor Saijo Takato?
O beijo!
Símbolo de reverência e respeito entre os membros da máfia italiana.
Promessa de lealdade e sinceridade.
Fidelidade às leis e regulamentos.
Amor pela irmandade.
-Sei! - Saijo respondeu pousando as palmas naquela obra de arte, naquele rosto pintado a mão pelas deidades de seus antepassados. - Sei e aceito que não poderei mais estar longe de você!
Odiava cada milímetro quadrado daquele lugar.
Acatou a ordem de pisar naquele solo a trabalho, a exatos dois anos, e caiu na mais antiga e traiçoeira armadilha do universo.
Conheceu-o.
Caiu nas graças do malfadado amor.
Um amor possessivo e imensurável por ele.
Pela pessoa que o destruiria completamente, caso quisesse.
Que quebrara seus ideais e planos, suas barreiras incólumes.
Que o fazia hesitar inconsequentemente.
Miseravelmente.
-O beijo da carpa! - Azumaya ciciou enfeitiçado, trêmulo pelo orgasmo, embargado e resiliente com a sua situação. - Minha delicada carpa.
Beijaram-se.
Com a ânsia irrefreável de dois amantes.
Ocultos das indiferenças e intolerâncias.
Dos perigos que os rondavam.
O beijo da carpa.
Da sua irresistível carpa.
O selo incorruptível da paz entre os inimigos declarados.
.
Já estavam ali, deitados sobre a cama, a algum tempo.
Os lençóis de linho, de um tom clássico de azul turquesa, lembrava-lhe do Mar Tirreno, calmo e puro, compondo a beleza única da sua amada Nápoles.
Azul, como aquele par de safiras translúcidas e adormecidas em seus braços musculosos e cheios de cicatrizes.
Azumaya enlaçou-o mais forte junto a si.
Inalou a essência pura e agridoce de seus cabelos desgrenhados e suspirou derrotado.
Olhou novamente para a janela ao lado e vislumbrou, nostálgico, o tremular manso das cortinas rubras; ainda ouvia o vento forte zunir do lado de fora e constatou que já chovia.
O tilintar das gotas cadenciando o cansaço da sua conturbada mente, levando a letargia seu maculado corpo.
-Eu te amo, maledetto(7)! - declarou-se num silvo, imaginando que já não era mais ouvido. - Eu, realmente, te amo!
Sim!
Saijo o ouviu e esboçou um sorriso radiante e satisfeito.
"Também te amo, Kuso yarō(8)! Eu, realmente, te amo." - pensou, antes de deixar-se sucumbir pelo sono.
E que todos fossem, literalmente, para o quinto dos infernos!
O paraíso era ali.
Por enquanto!
"Sua luz me ascendeu,
seu amor me enlouqueceu...
Uma nuvem de prazer!
Minha sina é te servir,
meu melhor eu vou lhe dar,
será assim até o fim...
Desde sempre vou te amar."
(Leonardo Azevedo de Souza)
FIM
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