“O coração é um fardo pesado”
— Sophie, O Castelo Animado (2004)
Parte 1:
Na qual Do Kyungsoo corre atrás de um gato-de-bengala
Não há nada de tão mágico em uma lojinha de livros usados.
Numa cidadezinha onde espantalhos caminham por aí usando terno e gravata, magos se transformam em crianças banguelas e bruxas lançam maldições apenas por diversão, um sebo parece ser a atração mais sem graça que já inventaram. A magia de verdade acontece quando o sol está se erguendo e as luzes atravessam as janelas redondas, ou quando as plantas no quintal crescem sem que precisemos livrá-las dos Comichões, Rabichos e Vergalhões.
Quando me levanto cedo para limpar o balcão e ferver as poções no caldeirão velho da minha mãe, o cheirinho de alecrim toma conta do armazém poeirento. Não é preciso ser uma bruxa para criar poções mágicas, ao contrário do que se pensa, apenas ter os ingredientes certos. Nenhum elixir pode ser feito sem que haja raízes de mandrágora ou folhas de Comigo-ninguém-pode. (Se você é um principiante, então eu sugiro usar apenas a mandrágora. Comigo-ninguém-pode é uma planta venenosa. Quando usada de forma equivocada, pode fazer a pessoa perder a fala temporariamente).
Ajeito a plaquinha com meu nome sobre o peito — Do Kyungsoo, ao seu dispor — e penduro um pano limpo nos meus suspensórios pretos, que não estão lá por uma questão de moda, mas sim porque preciso deles para evitar que as minhas calças caiam. E, então, começo a minha pequena limpeza diária.
As prateleiras estão cheias de Cochichos — criaturas tão pequeninas, peludas e negras que mais se parecem com partículas de fuligem flutuando por todo canto. É preciso um espanador e, com alguma sorte, uma vela para afastá-los com fogo, porque eles não se dão muito bem com o calor. Os clientes os odeiam porque eles são uma espécie de imitadores. São como papagaios, tagarelas, mas só se comunicam entre sussurros. Quando entediados, eles costumam reproduzir os segredos sujos de outras pessoas por aí, cochichando discretamente. Ou tão discretamente quanto possível.
— Eu o vi na semana passada.
— Quem?
— Não quem, minha senhora. Mas o quê. Eu achei que não passassem de contos infantis até ver o castelo subindo a colina perto da pensão.
Eu reviro os olhos quando as pragas minúsculas se acumulam perto de um exemplar de Feitiços básicos e fáceis para quem tem preguiça de praticar feitiços, um título tão inútil quanto o próprio livro. Porque bruxos e feiticeiros (e, não, os dois não são a mesma coisa, acredite se quiser) jamais leriam trezentas páginas de textos intermináveis se fossem, de fato, preguiçosos.
— Dizem que o castelo pode estar em dois lugares ao mesmo tempo — um dos Cochichos volta a narrar, reproduzindo até mesmo o som de páginas de livros sendo viradas ao fundo. — Viram ele passar por aqui, mas pescadores de Haeundae afirmam de pé junto que ele estava mergulhado pela metade em uma das praias, e isso na mesma época!
Risadas. Era engraçado ouvi-los imitar gargalhadas, porque aquela era uma das únicas coisas que não conseguiam reproduzir com clareza. Quando riam, os pequeninos soltavam guinchos agudos e nada agradáveis de se ouvir.
— O mago Kim não brinca em serviço.
O mago Kim…
Sinto meu estômago embrulhar só de ouvir aquele nome pela milésima vez. Milésima primeira, na verdade. Eu mantenho uma contagem rígida sobre coisas que me irritam, e ele com certeza está no topo da lista.
— Dizem que o mago é tão bonito, mas tão bonito, que a fila de mulheres apaixonadas por ele dá a volta no mundo duas vezes — um dos Cochichos murmura animado, e eu tento espantá-lo com uma das mãos.
Sem sucesso algum, claro, porque o danado continua flutuando como uma poeira teimosa perto do meu rosto.
Estou acostumado a pensar em magos como homens velhos, meio caducos, com barbas longas e chapéus pontudos. Não vejo como o morador solitário do castelo animado possa ser considerado o tipo ideal de todas as moças da região.
— Vocês são tão irritantes — reclamo, sentindo alguns Cochichos grudarem na extremidade do meu cachecol listrado.
— Vocês são tão irritantes — eles repetem em uníssono.
Antes que eu possa espantá-los, uma dúzia deles se agarra em meus ombros, como se tivessem encontrado um novo lar. Não é aconselhável que se deixe um Cochicho pegar intimidade, ou você pode acabar com um bando deles morando em cima da sua cabeça ou nos bolsos do casaco, então eu risco um fósforo e espero que eles se afastem.
Dá certo, graças às barbas de Merlim! Os bichinhos correm e se escondem nas ranhuras da madeira, aguardando o momento oportuno para voltarem a atacar as prateleiras.
Não há muito o que fazer no sebo durante a manhã além de espanar a poeira e os Cochichos para longe, organizar os livros por ordem alfabética e regar as plantas no jardim da frente.
Porque, como já disse, nada de mágico acontece em uma lojinha de livros usados.
Ou era assim que costumava ser.
⁕ ⁕ ⁕
Mesmo que eu tenha mil vidas, jamais conseguirei me acostumar com espantalhos de terno e gravata saltitando ao redor das plantações.
Eles ficam lá, supervisionando, o cabo de madeira fazendo a terra afundar cada vez que eles se movem. Dizem que foi o mago Kim, o cara misterioso no castelo móvel, quem teve a brilhante ideia de dar vida aos pobres coitados. Outros afirmam que essa é apenas mais uma maldição que as bruxas inventaram quando estavam entediadas.
Eu me sento com a barra das calças enrolada na altura do tornozelo e puxo as meias de cano alto mais para cima, para evitar que os Comichões me peguem. São criaturinhas diabólicas, os Comichões. Você só percebe que foi mordido quando a coceira começa, e é tão difícil se livrar dela quanto se livrar das manchas de pulgas dinamarquesas.
(Se algum dia for à Dinamarca, lembre-se de levar um repelente extraforte).
— Céus… — resmungo para mim mesmo, e também para as mandrágoras, porque sei que elas podem escutar. Suas raízes se assemelham à forma humana, com cabeça, pernas e braços. Assim que eu puxo as folhas de uma e a ergo a alguns centímetros da terra, ela começa a chorar como um recém-nascido.
É preciso cantar uma canção de ninar para acalmá-las, mas, como não conheço nenhuma, apenas a deixo berrando e se contorcendo na minha mão direita. E essa é a pior decisão que eu poderia tomar. Afinal, com todo aquele chororô, fica difícil perceber a movimentação estranha no terreno. Só percebo a chegada do invasor quando o espantalho, todo elegante em seu terno risca de giz, começa a se balançar de um lado para o outro.
Correndo em disparada colina acima, um gato-de-bengala tenta fugir com ramos de alecrim entre as presas.
— Ei, seu bichano folgado! — grito.
Não penso duas vezes antes de sair correndo atrás dele, e os motivos são óbvios: a) alecrim plantado através de sementes demora para crescer; b) são muito caros nessa época do ano, já que eles precisam ser plantados durante a primavera ou verão; e c) são essenciais para poções medicinais, as mais utilizadas pelos curandeiros da cidade.
O felino corre razoavelmente rápido, mas parece se atrapalhar com a sequência da caminhada das próprias patas, o que me leva a crer que ele talvez não seja um gato de verdade.
Nessa cidade, não é lá muito assustador que as coisas não sejam exatamente como parecem ser. Já vendi livros usados para senhorinhas simpáticas que, na realidade, eram apenas feiticeiros disfarçados. E também já fui amaldiçoado por uma bruxa que, ao que tudo indicava, era apenas uma criança mimada querendo se pendurar no balcão. Bem, esse erro me rendeu duas semanas com uma barba bastante cabeluda e incômoda pendendo do meu rosto até a altura dos joelhos.
Mas o caso é que aquele não é um gato-de-bengala comum, tenho certeza. Essa é a única razão plausível para eu ter conseguido alcançá-lo em apenas alguns segundos. Um rapaz sedentário como eu, que vive organizando livros o tempo todo e cuidando do jardim, jamais conseguiria esse feito.
Ele desaparece na curva da colina, e eu já estou arfando quando subo de pulo em pulo, as coxas doendo pelo esforço incomum. Antes que o bichano se embrenhe entre as rochas altas no topo, quase posso ouvi-lo soltar uma risadinha.
— Ei — chamo outra vez. — Volta aqui! Seu…
E eu estou prestes a chamá-lo dos nomes mais feios que conheço — demônio dos infernos, filho de uma mãe banguela, Mago Kim — quando, de repente, minha voz morre. E não porque sou enfeitiçado, ou porque acidentalmente engoli o caule de uma Comigo-ninguém-pode, mas por causa daquilo.
Um enorme castelo andante estacionado do outro lado da colina.
Fico algum tempo paralisado, mais chocado do que encantado com toda aquela parafernália. Um dos meus suspensórios está solto, e minha calça pende do lado direito, mas por que eu me importaria? Minha cuequinha azul-clara aparecendo de um dos lados não é assim tão importante quando se está diante de quatro torres coloridas, uma chaminé de cobre fumegante e um lago de carpas que deságua na lateral esquerda, desaparecendo em lugar nenhum.
A estrutura é uma mistura estranhamente moderna de diversas casinhas e jardins de estilos diferentes, como se fragmentos de cada uma das regiões próximas estivessem embutidas na construção. Na parte de baixo, há um cata-vento de metal e pernas de aço tão finas que são quase imperceptíveis. Eu me pergunto como ele se move com aquelas coisas.
E, então, acontece. Vejo o gato-de-bengala correndo na direção do castelo animado e subindo por uma escada metálica com extrema facilidade, as mudas de alecrim ainda seguras entre seus dentes. O castelo se move ruidosamente, ribombando aos solavancos na direção oposta. Ele está indo embora.
Respiro fundo. Parte de mim quer esquecer tudo aquilo e voltar para casa, mas a outra parte…
— O que você tem a perder, Kyungsoo? — pergunto, tentando conversar comigo mesmo. É como a minha mãe dizia: “Só um louco pode dialogar com outro louco”. — Vamos lá, garoto.
E eu me ponho a caminhar, mesmo com o solo estremecendo horrores abaixo dos meus pés, agora não mais tão apressado para recuperar os ramos de alecrim. Demoro um longo tempo até alcançá-lo. Apesar de ser lento e pesado, ele ocupa uma extensa área de terra a cada movimento. E mais feio do que eu jamais pensei que seria.
De perto, o castelo parece ainda mais irregular e monstruoso, com o metal enferrujado e um barbante com bandeiras velhas que atravessa uma torre a outra. Foi preciso saltar e me agarrar na escada metálica antes que ele se afastasse demais do chão, e muita paciência para lidar com o bichano me encarando de cara feia no alto dos degraus.
— Que é? — reclamo. — Não venha bancar o desentendido agora. Você age como se não tivesse acabado de roubar uma das minhas melhores ervas na cara de pau.
Ele arqueia os ombros, esnobe, e então desaparece de novo pela janela na lateral. Ou, pelo menos, eu acho que é uma janela. Para ser sincero, o troço mais me parece um túnel em miniatura.
Tento virar a maçaneta da porta, mas, quando ela se abre, não há nada por trás dela. Bem, ao menos é nisso que eles querem que você acredite. Do outro lado da pesada porta esculpida em carvalho, posso ver a grama verdinha da colina outra vez, como se o interior do castelo fosse vazio. Não passa de uma ilusão.
Volto a fechá-la e tento vergonhosamente pensar num feitiço fácil, tão simples que até um Mundano poderia realizar.
Testo um Hocus pocus, Abre-te sésamo e até um Abracadabra, mesmo sabendo que aquilo não surte efeito algum. Quando eu uso um feitiço mais poderoso, no entanto, como o famoso Será que dá pra alguém abrir essa porcaria, pelo amor de Merlim?, ouço um estalo e vejo-a finalmente se desencostar do batente. Ótimo.
Há outra escada no hall de entrada. Eu me livro dos meus sapatos e fico descalço. Afinal, se é para ser um invasor, que eu seja um invasor educado.
Inclino a cabeça para tentar enxergar o andar de cima.
— Olá? — chamo baixinho.
— Você não deveria estar aqui — uma voz responde, e eu congelo a um passo do último degrau. E não no sentido figurado, diga-se de passagem. Eu realmente congelo.
A voz pertence a um garoto de sete anos — oito, no máximo — vestido com um colete cinza-escuro de alfaiataria e com o rabo peludo rajado escapando na parte de trás das calças. Na cabeça, há orelhas peludas e com as pontas arredondadas. Ele tem um tom infantil e olhos alongados, felinos. Me pergunto se é assim que ele realmente se parece, ou se tudo não passa de resquícios da sua magia.
Ele dá duas voltas inteiras ao meu redor antes de voltar à posição inicial, uma das mãos acariciando o queixo de modo pensativo.
— Ele parece inofensivo — ele diz. E, apesar de não estar se dirigindo a mim, tento concordar balançando a cabeça, mas não consigo mover sequer um músculo. Estou paralisado.
— Traga-o até aqui, Minseok! — outra voz chama, um pouco mais alto. É mais madura, seguida de estalidos e um pouco abafada, quase como se estivesse… crepitando. — Não estou conseguindo ver.
— Se eu levá-lo até a lareira, você vai acabar derretendo o meu prisioneiro — o garotinho responde, e depois se vira pra mim, um sorriso gengival adorável dançando nos lábios. — Quer dizer… nosso convidado.
Que pilantrinha!
Do outro lado do cômodo, mesmo que seja difícil, posso ver a silhueta de línguas de fogo se esticando e chamas duplicando de tamanho. Tem um demônio do fogo na lareira.
— Sei não, hein, Kim. Ele parece suspeito.
— Ah, fica frio aí, Chanyeol.
— Fácil para você falar, não é mesmo, garoto do gelo? — ele crepita, sarcástico, embora não pareça irritado, de fato. Só… divertido.
— Tudo bem, então. Vamos ver o que ele tem a dizer.
Há uma fina camada de gelo se formando em meus lábios, deixando-os duros e gelados. Quando o garoto estala os dedos, sinto que finalmente posso mexer a boca.
— Então você é o mago Kim? — pergunto ao rapazinho, porque é a primeira coisa que me vem à cabeça.
É apenas uma questão de prioridades. Sanar a minha curiosidade primeiro, sobreviver depois.
— Eu? Ah, não, não. Quer dizer, sim. — Ele coça atrás da orelha peluda, atrapalhado. — Somos todos Kim por aqui, exceto o Chanyeol. Ele é só Chanyeol mesmo.
— Só Chanyeol — repito, para memorizar.
O garoto segura a própria cauda tigrada e enrola a pontinha no dedo indicador, distraído.
— Mas o mago Kim de quem todos falam é o Jongin. Kim Jongin — ele explica. O cara por quem as mulheres fazem fila de duas voltas no mundo, eu penso. — E eu sou Minseok, o aprendiz dele.
O baixinho estende a palma da mão e faz surgir cristais de gelo sobre a pele, soprando-os no ar. Eles flutuam por algum tempo, rodopiando no hall de entrada até se amontoarem no piso de madeira polida como pequenos borrões d’água. Depois fica ali, um sorrisão estampado no rosto e as mãos atrás do corpo, esperando um elogio. Típico de crianças.
Mesmo ainda receoso, eu bagunço seus cabelos ruivos com os dedos. Ele parece satisfeito com esse simples gesto.
Apesar de estar preocupado em voltar para casa, minha curiosidade é tanta, que faz com que o tempo voe. Durante o resto da noite, Chanyeol frita uma porção generosa de ramyun com ovos e bacon com uma panela na cabeça — ou o que parece ser sua cabeça — mas o bacon acaba ficando tostado (ou carbonizado, interprete como quiser). “Sou um demônio do fogo”, ele afirma. “E não um cozinheiro”. E eu faço uma anotação mental para nunca mais deixar a refeição por conta dele. Mesmo assim, trato de jogar lenha para o demônio, e Chanyeol parece feliz ao se abraçar ao pedaço de madeira enquanto ele entra em combustão.
Há ervas secas penduradas na parede da cozinha, bugigangas coloridas por toda parte e béqueres com poções pingando aqui e ali. Olhos alaranjados espiam a entrada do castelo dentro de potes de vidro. Insetos de asinhas peroladas rodeiam as lamparinas de vidro e metal, que estremecem enquanto o castelo avança pelas colinas.
Em frente à lareira, tem um pequeno sofá vermelho puído e com marcas de unhas afiadas e mordidas. Eu apostaria todas as minhas preciosas mudas de alecrim de que aquilo era culpa de Minseok.
— Tem certeza de que posso realmente passar a noite aqui? — pergunto a ele algumas horas mais tarde, enrolado em cobertas sobre o tapete marroquino da sala como um burrito.
Ele dá de ombros.
— Não é como se você pudesse sair, de qualquer maneira.
Sua voz é quase um sussurro, tão baixinha que poderia ser apenas a imitação de um Cochicho. Não sei ao certo o que aquelas palavras deveriam significar, mas sinto que por trás delas há um tom pesaroso, como se ele lamentasse a minha falta de sorte. Talvez, se o meu mau pressentimento estiver certo, alguma coisa esteja de fato acontecendo.
Alguma coisa muito, muito ruim.
⁕ ⁕ ⁕
Parte 2:
Na qual o castelo vira uma piscina de água salgada
Só existe uma coisa pior do que acordar num castelo ambulante desconhecido: acordar num castelo ambulante desconhecido e perceber que os seus sapatos sumiram.
Com os meus planos de sair de fininho indo por água abaixo, o que me resta é me largar no sofá ao lado da criança de olhos felinos, sua cauda balançando sutilmente e fazendo cócegas em meus braços descobertos.
Ele é um aprendiz de feiticeiro. As orelhas pontudas e cobertas de pelo alaranjado ainda estão lá. Porque, uma vez que Minseok se transforma, demora um pouco até se livrar delas. O garotinho não é lá muito talentoso quando se trata de transfiguração, mas dá um show quando o assunto é magia elemental, principalmente gelo.
Chanyeol, como o bom fofoqueiro abestalhado que é, contou que o pequeno transformara o castelo em um imenso iglu no seu aniversário de seis anos, e tudo porque ficara animado demais ao soprar as velinhas do bolo. Minseok não só apagou o fogo, como soprou uma tempestade gelada que congelou todos os cômodos por algumas semanas.
Não posso culpar o demônio de fogo por sua boca grande. Afinal, não sei sequer se ele de fato tem uma boca. Espiando a lareira durante o jantar na noite passada, percebi que ele não possui uma forma exata. É apenas um monte de chamas com olhos esbugalhados quase translúcidos e línguas de fogo que se erguem como cabelos avermelhados quando ele dá risada ou se empolga além da conta. E, bem… Chanyeol quase sempre se empolga além da conta.
— Jongin não saiu do quarto desde que o Kyungsoo chegou — comenta Minseok, jogando lascas de madeira na lareira enquanto Chanyeol se estica para alcançá-las.
O demônio solta alguns estalos.
— Eu não me surpreenderia se ele ficasse hibernando até o inverno acabar. Você sabe que o Jongin é dramático. Gosta de aparecer. Pega um resfriado e já se enfia debaixo do edredom como se estivesse no leito de morte. Talvez esteja doente. Ou talvez já saiba que o Kyungsoo está aqui.
Essa é a minha deixa.
— Então eu preciso ir embora antes que esse tal Jongin dramático acorde — digo, me ajeitando no sofá e alisando a minha blusa amarrotada. — Onde estão os meus sap...?
— Quem é dramático? — uma voz pergunta, vinda do andar de cima.
E eu sei que é ele antes mesmo de olhar. Kim Jongin.
Se acordar num castelo ambulante é ruim, nem queira saber como é a sensação de descobrir que o poderoso mago Kim, na verdade, não é nada daquilo que você imaginava. Sinceramente, não sei o que eu esperava. Talvez um chapéu pontudo, uma barba grisalha até os joelhos e um cajado com uma pedra filosofal na ponta. Coisinha básica.
O rapaz que desce as escadas tem lá seus vinte e poucos anos, os cabelos rosados completamente bagunçados e não veste mais do que um roupão quadriculado e uma cueca de ursinhos até a metade das coxas. Nos pés, acredite se quiser, ele usa uma pantufa azul-marinho com desenhos muito realistas de estrelas. Uma pantufa, por Merlim!
É um pouco triste saber que existe uma fila imensa de mulheres apaixonadas por aquilo.
Quando me vê, o recém-chegado solta um grito e corre para trás da pilastra no alto da escada, fechando o roupão imediatamente sobre o peito descoberto. Ele parece envergonhado ao tentar esconder sua semi-nudez. Chanyeol e Minseok não parecem surpresos. Eles apenas dão de ombros — bem, Minseok dá de ombros, enquanto Chanyeol solta alguns estalidos que soam como resmungos — e agem como se nada tivesse acontecido.
Assim que se afasta do seu esconderijo, Jongin já está devidamente vestido com uma blusa branca de mangas bufantes com um corte em V, deixando suas clavículas à mostra, e calças pretas justas. Os cabelos estão agora penteados e a franja cor-de-rosa cai sobre a sua testa. Sem falar naqueles brincos com esmeraldas pendurados nas suas orelhas. Ridículo.
Assim que eu encontrar meus sapatos, vou dar o fora daqui, penso.
Ele se recupera do susto, respirando fundo e voltando a descer as escadas. Lentamente. Esse cara é o rei do drama.
— Quem é o cara sentado no nosso sofá? — ele pergunta, olhando para Chanyeol e depois para mim. Não soa ignorante ou mal-educado, mas estranhamente natural. É como se dissesse: “Ei, pessoal. O que vai ter para o café da manhã?”. — Do Kyungsoo? — Uma de suas sobrancelhas se ergue quando ele se aproxima mais do sofá.
— Oh, você é mesmo um mago — observo, a contragosto.
— Não é preciso ser um mago pra ler o seu crachá — ele ri, e depois dá um peteleco na plaquinha pendurada na minha camisa. Fico admirado por alguns segundos, porque o seu sorriso me parece estranhamente familiar. — Não sei como você conseguiu entrar, mas isso não importa agora. Agora que perdeu os seus sapat...
Minseok pigarreia, interrompendo o amigo.
— Kyungsoo me perseguiu enquanto eu pegava emprestado um pouco do alecrim da sua plantação. Foi assim que ele encontrou o castelo. Mas ele é inofensivo, eu juro. E agora já estamos quites.
— É — digo. — Eu meio que peguei alguns ovos e bacon emprestados ontem à noite. Espero que não se importe.
Jongin se esparrama no sofá entre mim e Minseok e coça atrás de suas orelhas, fazendo o garotinho fechar os olhos. Tento ignorar o fato de que meu ombro está encostando no dele, porque, querendo ou não, o sujeito é bonito à beça. Rídiculo, mas bonito.
— Bom, agora que está aqui, isso não faz diferença. Você pode pegar comida a hora que quiser.
— Gentileza da sua parte, mas eu não pretendo ficar aqui por muito tempo. Vou só encontrar os meus sapatos e já estou voltando pra casa. Eu preciso cuidar da livraria, sabe. — Eu me levanto, sacudindo a minha camiseta, mesmo que não haja nenhuma poeira nela. É só um gesto que costumo fazer quando estou sem graça.
Chanyeol parece se inflamar, ansioso, quase subindo pela chaminé.
— Ninguém vai contar a ele?
O garoto-quase-felino solta um suspiro.
— Kyungsoo, o negócio é o seguinte — diz Minseok, maduro demais para um rapazinho de sete anos. — Você tá amaldiçoado, é isso. Pronto, falei.
— Não é exatamente amaldiçoado. Tá mais pra enfeitiçado — explica Jongin. Ele coça um dos olhos, ainda meio sonolento. — A porta de entrada está enfeitiçada com um Coração de mãe sempre cabe mais um, uma azaração para gente bisbilhoteira. Se você entra na casa de um mago sem ser convidado, só pode sair se encontrar os seus sapatos.
— O que acontece se eu tentar sair? — pergunto, andando até o hall de entrada.
Assim que toco a maçaneta, o ruído de algo girando chama a minha atenção. Quando eu olho para cima, lá está ela. Uma roleta dividida em quatro partes iguais — uma azul, uma vermelha, uma verde e uma preta. Eu não me lembro de ela ter estado ali na noite anterior, mas observo com alguma curiosidade até que a seta prateada pare em cima da lacuna azul.
— Eu não faria isso se fosse você — adverte Chanyeol, mas é um pouco tarde.
Giro a maçaneta e imediatamente sinto a maresia escapando pelas frestas da porta. Não consigo sequer dar um passo à frente antes que meus pés mergulhem na água salgada. Fico coberto até os joelhos, as calças molhadas grudando na perna e me deixando apavorado, mesmo que só por um momento. O vento forte quase me empurra para trás.
Fecho a porta o mais rápido que posso e olho para baixo, ainda tentando entender como tudo aquilo pode ser real. Afinal, eu já vira espantalhos de terno e gravata, magos disfarçados de crianças e bruxas lançando maldições por aí como se não houvesse amanhã. Mas nunca vira nada como aquilo. Meus pés estão sujos de areia e com pequenos pedaços de algas entre os dedos.
Espio pelo olho mágico uma última vez. Do outro lado, posso ver oceano até onde meus olhos alcançam, e barcos de pescadores a milhas e milhas de distância, atracados no porto.
— Você pode sair pelas outras portas — Jongin volta a dizer. Ele se levanta e se aproxima de mim, dando batidinhas sobre a lateral da minha perna e deixando minhas calças secas novamente. Legal da parte dele. — É uma espécie de portal, Kyungsoo. A porta de entrada do castelo se abre para quatro lugares diferentes: uma casa de chás em Shanghai, uma praia em Haeundae, as colinas perto da sua livraria e para uma porta coringa. Você pode viajar através delas até certo limite, mas não pode voltar pra casa. Não sem os seus sapatos.
— E como faço para encontrar os meus sapatos?
— Ele não pode dizer — Minseok responde em seu lugar, apoiando o rosto em uma das mãos. — Ninguém pode. Você precisa encontrá-los sozinho.
Respiro fundo.
Estou uma bagunça. O castelo está uma bagunça.
A água no hall de entrada ainda alcança meus tornozelos, mesmo que esteja escapando aos poucos pelas frestas da porta, agora que a roleta está parada na lacuna verde — a cor que representa as colinas. O tapete marroquino está submerso no centro da sala. Chanyeol, pelo menos, está a salvo em sua lareira alta. Minseok se encolhe no sofá, como um gatinho com medo de água.
E o demônio do fogo apenas começa a tagarelar de modo animado. “Ei, lembram-se daquela vez que…?” e logo começa um monólogo infinito sobre o dia em que Jongin abriu a porta do banheiro e deixou o primeiro andar quase inteiro submerso em Haeundae, tanto que até Chanyeol precisou se enfiar na chaminé.
Isso porque alguns cômodos estão ligados a lugares diferentes, dependendo de quando foram criados, segundo o demônio. Você pode olhar pela janela na lavanderia e dar de cara com um templo chinês do Jardim Yu Yuan, em Shanghai. Ou simplesmente ver cardumes de anchovas, cavalas e moluscos passando através do vidro do banheiro enquanto toma banho.
Ele infla e se expande, se gabando de que ele é o responsável por mover o castelo até todos esses lugares, aquecer a água do chuveiro e fazer as refeições (com a ajuda de uma mãozinha, claro, mesmo que ele não admita).
Chanyeol é um exibido.
Ele fica tanto tempo falando, falando e falando sobre suas qualidades que adquire uma aparência azulada, estremecendo e se encolhendo na lareira. E então se cala. Ele parece fraco.
— Muito bem, garotão. — Jongin estende a mão sobre o fogo, e Chanyeol recupera sua coloração avermelhada, mesmo que ainda esteja fraco e ralo, muito acanhado enquanto se esconde entre a lenha da lareira. — Agora todo mundo já sabe que você é o cara.
Ele se levanta um pouco, só para concordar, animado. Suas línguas de fogo estremecem de modo orgulhoso.
Chanyeol tem muito amor próprio.
Eu fico parado, ainda estarrecido perto da porta de entrada. Quero encontrar os meus sapatos logo e ir embora para casa. Preciso ir embora. Mas há uma coisa que ainda preciso descobrir. E essa coisa está rindo, uma mão coçando os cabelos rosados da nuca num gesto envergonhado, parado ali no meio da sala com seu sorriso brilhante, me fazendo observá-lo um pouco mais.
Eu conheço aquele sorriso.
Só mais um dia, digo a mim mesmo. Só até encontrar meus sapatos.
⁕ ⁕ ⁕
Uma semana depois, alguns peixes ainda nadam dentro da pia da cozinha, resquícios do pequeno incidente aquático que eu acabara provocando há alguns dias. Jongin os manteve por lá como animais de estimação, ainda que isso significasse encontrar outra maneira de lavar os pratos.
Nem sinal dos meus sapatos nesses últimos sete dias, mas eu estou longe de desistir. Pelo menos, minha busca incansável me transformou em um especialista do tal castelo animado. Ele é mais complexo do que se imagina, e muito mais mágico também. Você pode subir alguma escadaria e acabar no porão, ou descer outra e ir parar no terceiro andar, não importa quantas vezes você tente. É uma bagunça.
Tive que me acostumar a abrir um dos armários da cozinha e dar de cara com o jardim do lado de fora.
Foi assim que descobri a pequena plantação caótica numa sacada com vista para as colinas. Meus sapatos também não estavam lá, para variar. A essa altura, na verdade, não sei sequer se um dia irei encontrá-los. Onde objetos inanimados poderiam se esconder, afinal? Não num jardim como aquele, com certeza.
A grama estava verde-acinzentada e havia Vergalhões deixando os troncos das pequenas árvores envergados, curvados em posições duvidosas. Apenas a fileira de cactos sobre o muro permanecia viva, com flores desabrochando no topo e os espinhos afiadíssimos apontando em todas as direções. Até mesmo as Marias-sem-vergonha estavam meio murchas nos vasinhos, e as plantas ornamentais tinham folhas desbotadas. O jardim estava morrendo.
Jongin era um desastre em cuidar das coisas.
Um desastre na cozinha e péssimo para limpar qualquer coisa. O castelo só continuava limpo porque Minseok, mesmo aos sete anos, já era um grande maníaco em limpeza. E também porque eu sem querer estabelecera uma ditadura da faxina logo depois que fui obrigado a ficar.
Nessa tarde, muito distraído plantando mudas de hibisco e me livrando de todos aqueles Rabichos da Flamboyant (a árvore ainda parecia incrivelmente bonita, mesmo com o tronco repleto de sanguessugas), visto um macacão jeans, camiseta listrada e estou armado com uma pá de jardinagem.
Maldito Kim Jongin assassino de plantas, resmungo mentalmente.
— Você tem pensado bastante em mim esses dias.
Ele aparece como num passe de mágica — e talvez tenha aparecido mesmo, porque Jongin é do tipo exibicionista quando se trata de magia. O rapaz se senta ao meu lado virado para a mureta, suas pernas pendendo para fora da sacada. Tento ao máximo não lhe dar qualquer atenção, mas isso se torna impossível quando ele simplesmente decide cutucar a minha cintura.
— Tenho pensado bastante numa maneira de me ver livre de você, isso sim.
Ele apenas dá de ombros
— Gosto quando você pensa em mim.
— Vai me dizer onde estão meus sapatos? — pergunto, esperançoso. Paro o que estou fazendo (afogando os Rabichos num pote de vidro com água, caso esteja curioso) e levanto minha pá para ele.
— Sem chance.
— Então você vai ser obrigado a me aguentar por mais alguns dias.
Jongin sorri, e lá está aquela coisinha incômoda de novo martelando na minha cabeça. Mesmo alguns dias depois de observá-lo, não consigo espantar a ideia de que o conheço de algum lugar. Mas de onde? Não acredito que ele tenha sequer saído do castelo para passear muitas vezes, com essa tal fila gigantesca de mulheres atrás dele.
— Tudo bem — ele responde. — Você parece confiável.
E essa é uma ótima hora para uma chantagem emocional.
Talvez nem tão emocional assim.
— Não, não sou. Não sou nada confiável. Nem um pouco. Necas de pitibiriba — digo, apressado, despejando tudo em cima dele. — Numa escala de zero a dez de confiabilidade, devo ficar com uns dez graus negativos. Sou perigoso, Jongin. Eu poderia simplesmente matá-lo enquanto dorme com uma pá de jardinagem. Você deveria me mandar para casa o mais rápido possível.
Ele apoia os braços sobre o muro baixo, deitando a cabeça sobre o próprio antebraço para me observar melhor. Jongin faz muito isso. Observar.
— Péssima tentativa, Kyungsoo. Já disse que não sei onde os seus sapatos estão. — E depois pisca um dos olhos, galanteador. Eu ignoro, porque me recuso a fazer parte da fila de mulheres que dá a volta ao mundo, mas preciso admitir que ele é uma das únicas pessoas no universo que não parece estar tendo um derrame ao dar uma piscadela. — Tudo que eu sei é que esse macacão ficou ótimo em você.
— Não começa.
O castelo está fumegando, rangendo. Nuvens de fumaça se desprendem de uma das torres e alcançam o céu. Ele não se movimenta, porque Chanyeol parece indisposto para movê-lo esses dias. E, quanto mais presto atenção, mais percebo que aquilo não se parece em nada com um castelo de verdade. Ele tem canos enferrujados e engrenagens por toda parte, e uma aparência tão disforme que não dá para dizer ao certo ao que ele se assemelha. É quase uma máquina.
Sentado com um vaso entre as pernas, arranco um Rabicho tão pequeno quanto o rabo de uma Lagartixa Caseira do Mediterrâneo e o coloco dentro do vidro, aproveitando o silêncio. Adoro quando o Sr. Mago Conquistador fecha a matraca.
— Mas, sabe… — Jongin diz baixinho.
— Lá vem.
— Chanyeol está ficando fraco, e nem um milhão de pedaços de madeira parecem suficientes para manter as suas chamas acesas — ele comenta, de repente. Seu tom agora é meio tristonho, e isso me faz prestar atenção. — É preciso um feitiço antigo para salvá-lo, e os ingredientes para a poção são difíceis de conseguir. Foi por isso que Minseok roubou seu alecrim. Nosso jardim estava quase morto antes de você chegar aqui. Mas, sabe, mesmo assim não é suficiente...
— Onde você está querendo chegar?
— O que eu quero dizer é que… Bem, não podemos dizer onde os seus sapatos estão, mas podemos dar dicas. Eu posso dar dicas, se me ajudar a salvar o meu amigo. Tudo que você precisa fazer é me ajudar a encontrar os ingredientes.
— Eu e você, trabalhando juntos? Do Kyungsoo, o garoto dos livros e da jardinagem, ajudando o excelentíssimo mago Kim? — Meus olhos duplicam de tamanho (se é que isso é possível) e minha boca fica entreaberta, deixando mais do que óbvio o meu choque. — Eu e você?
Ele me dá um empurrãozinho. Jongin parece um pouco sem jeito, e até as suas bochechas estão mais avermelhadas do que o normal.
— Você fala como se fosse um encontro — ele diz. E pelo sorrisinho de lado, Jongin provavelmente adoraria que fosse. — Um daqueles romances proibidos de livros Mundanos.
Eu o ignoro, de novo. Porque, se tem uma coisa que aprendi sobre ele nesses últimos dias, é que o cara parece ser sedutor por natureza. Ele consegue transformar até uma conversa sobre botas de sete léguas em uma coisa romântica. Pode até criar cantadas incrivelmente boas apenas observando enguias nadando na privada do banheiro como referência. (Nem queira saber). E eu planejava ficar o mais distante possível do sujeito, juro que planejava. Até, é claro, a situação desesperadora pedir uma medida mais do que desesperada.
— Se eu ajudar você, vai me dar uma dica de onde os sapatos estão?
Jongin balança a cabeça.
— Exatamente. Então, temos um trato?
Pode apostar que sim.
⁕ ⁕ ⁕
Numa casa infestada de Cochichos, segredos nunca permanecem secretos por muito tempo.
— Não acha que devemos contar a ele?
— Sobre o quê?
— Sobre Jongin, é claro.
Reconheço as vozes de Minseok e Chanyeol, mesmo entre murmúrios abafados. Na escuridão, posso ver pequenos olhos espreitando sob as ripas de madeira, alojados ali como se estivessem escondidos. Tento afastá-los, como sempre, mas é inútil. Isso só faz com que os Cochichos cheguem mais perto.
Sou inofensivo demais para eles, pelo que parece. Eles não se importam em flutuar ao meu redor ou se acomodar sobre o encosto do sofá. Eles não estão nem aí se quero voltar a dormir. Juntam-se ali aos montes, como fofoqueiros ansiosos para contar as novidades.
— Talvez… — um outro replica, numa imitação perfeita da voz de Chanyeol. — De qualquer forma, ele vai acabar percebendo sozinho.
Não quero ouvir aquilo, seja lá o que for. Está escuro, e eu estou com sono. Só quero que todas aquelas vozes desapareçam.
Eu espanto as criaturinhas para longe, cobrindo a cabeça com duas camadas de cobertor e fechando os olhos bem apertados. E, de repente, as vozes parecem apenas sussurros de um sonho distante.
⁕ ⁕ ⁕
Parte 3:
Na qual Kim Jongin perde uma aposta para o imperador
Jongin está me esperando assim que eu acordo. Uma mão enfiada no bolso da calça preta, a outra apoiada contra a parede da sala para que eu não tenha alternativa a não ser passar por ali, ficando encurralado entre seu braço. Nessa manhã, seus cabelos estão escuros, negros quase azulados. Ele também carrega aquele sorrisinho de menino danado só para me irritar. Típico.
— Está bloqueando a passagem — digo, empurrando seu peito para tentar afastá-lo. Nada acontece.
— Bom dia pra você também, Kyungsoo.
Ele sorri ainda mais, e só então ergue o braço para me deixar passar. Preciso fazer um esforço enorme para não criar algumas anotações mentais de como aquela camisa branca fica bem nele. Céus.
Minseok, agora sem as orelhas e a cauda peluda, está perambulando pela cozinha e tirando pó das prateleiras com um espanador, na ponta dos pés mesmo estando em cima de uma cadeira. Ele tentou esquentar um pouco de água numa chaleira mais cedo, mas Chanyeol está tão fraco que o máximo que conseguiu foi deixar a água morna. Agora, ele tenta se equilibrar sobre o banco, mas é muito baixinho para alcançar.
Jongin faz um gesto com uma das mãos e lança um Para cima todo santo ajuda, e o garotinho passa a levitar com o feitiço. Ele parece se divertir limpando a poeira, agora que consegue praticamente voar sobre a cozinha. O resultado disso é que o castelo parece infestado com as milhares de partículas de poeira que dançam no ar quando a luz do alvorecer as atravessa.
Chanyeol tosse com o pó que acaba se acumulando, mesmo sem querer, sobre a base da lareira.
— Vocês vão mesmo me deixar sozinho com esse demoniozinho da limpeza?
Jongin se vira para ele e dá de ombros.
— Não esquenta a cabeça, Chanyeol. A gente vai voltar rápido.
— Esquentar a cabeça — responde ele, debochado. — Ha-ha. Tão engraçado! Você é um piadista.
Estou prestes a resmungar que ainda não estou pronto para sair, e nem vestido de modo adequado, quando Jongin estala os dedos e muda o meu pijama para calças escuras, uma camiseta branca e os meus suspensórios pretos. Ele também leva uma mão aos meus cabelos, colocando os fios bagunçados no lugar. O cretino não usa magia para isso, apenas olha para mim enquanto os penteia com os dedos. Parece durar uma eternidade, e eu quero muito bater em mim mesmo por achar aquele carinho tão gostoso.
— Porta de Shanghai — Jongin anuncia, virando a maçaneta.
A roleta para na lacuna vermelha. Antes mesmo que ele abra a porta, posso ver a paisagem em uma das janelas mudar para um templo à beira de um lago.
Quando saímos, vemos construções erguidas por colunas de madeira e com telhados curvos de telhas negras cujas extremidades apontam para o céu. Estamos perto da Casa de Chá Huxinting, construída em 1784, com uma ponte em zigue-zague que dá acesso à casa principal. Segundo Jongin, a ponte é feita desse jeito para afastar os maus espíritos, já que eles não conseguem virar esquinas.
Há muito mais além disso. Os pequenos lagos de carpas, a arquitetura formada por pedras amontoadas artificialmente e os muros brancos com enormes dragões ondulados roubam toda a minha atenção. Preciso levar um cutucão na cintura para me lembrar de continuar andando.
— O que estamos procurando, exatamente? — pergunto enquanto caminhamos pelo Jardim Yu Yuan, com Jongin me mantendo por perto, sua mão me guiando pela base da coluna.
— Folhas de chá de Oolong — ele responde. — Já temos o alecrim, o açafrão e as raízes de mandrágora que você plantou. Agora precisamos de Chá Oolong e de uma pedra preciosa chamada Opala de Fogo. Não vai ser tão difícil. Mas preciso de você comigo, porque fico nervoso toda vez que preciso barganhar com Luhan e Zitao. Sou péssimo nisso.
— Como você tem tanta certeza de que isso vai funcionar?
Seus lábios se comprimem num pequeno sorriso.
— Porque… já fiz isso antes. Alguns anos atrás.
— Certo.
A rua está movimentada. Tão movimentada que sou obrigado a segurar o braço dele para não me perder. Lanternas de papel arredondadas decoram as ripas de madeira e enchem os jardins de luzes, dando alguma vida ao dia nublado. Estamos no coração da antiga Shanghai, dividindo espaço com chineses que andam para cá e para lá, apressados. O lugar é separado em seis áreas panorâmicas. É como um labirinto.
Jongin escorrega a mão pelo meu antebraço e entrelaça nossos dedos, me puxando para andar mais rápido. Sequer consigo contestar porque sei que tem alguma coisa errada.
— Droga — ele resmunga.
— O que foi?
— Fomos vistos.
Ele não diz quem, ou o quê. E também não aponta, mas tento observar por cima dos meus ombros e entender o que ele está olhando. São monges. Estão vestidos com seus mantos vermelhos e laranjas, uma faixa preta amarrada em torno da cintura. O que os difere dos outros é que estes têm um capuz sobre a cabeça raspada, escondendo o rosto da luz do dia. E é ali onde mora o problema.
Eles não têm rosto (ou, pelo menos, não parecem ter). Sua pele é translúcida e negra, quase fantasmagórica, e se movem tão suavemente que seus pés mal aparentam tocar o chão. Tudo que posso ver são as pedras preciosas incrustadas em suas testas. Opalas de fogo.
— Você só pode estar brincando, Jongin. Aquelas coisas… — digo, mais alto do que deveria, e todos os monges de repente olham para nós dois. Olhos sem vida nos encarando e uma sensação de vazio percorrendo meu estômago, tudo ao mesmo tempo.
Minha voz morre.
Ele aperta a minha mão. E nós começamos a correr.
Não sou bom em correr, para ser sincero. Sei disso porque fui enfeitiçado quando era mais novo num jogo de verdade ou consequência. Uma das meninas me lançara um Mentira tem perna curta para me obrigar a contar de quem eu gostava, e eu precisei confessar que estava apaixonado por alguém que sequer sabia o nome. Um garoto. Mas o feitiço não dera muito certo, e fiquei andando torto por uma semana inteirinha graças à diferença de tamanho nas pernas. Até hoje tenho a impressão de que uma das minhas pernas é mais curta que a outra.
Mas agora eu corro, surpreendentemente rápido para um garoto de vinte e poucos anos tão sedentário. Não olho para trás nenhuma vez, mas tenho a impressão de que os monges estão logo atrás de nós, sugando minhas forças e deixando aquela sensação estranha na garganta. É quase como se eu estivesse tentando engolir areia.
São vigilantes espectrais, maus espíritos sugadores de alma. Já li sobre eles em algum livro, mas nunca imaginei que fossem reais. Andam disfarçados, mas sua verdadeira face só pode ser vista por visitantes indesejados ou que não foram convidados a entrar. Apenas a presença deles já é o suficiente para fazer a pessoa se sentir vazia, quase sem vida. Indesejada. Aquele é um território proibido, provavelmente.
Jongin está tentando nos levar até a ponte construída em zigue-zague. E espíritos ruins não podem virar esquinas, penso comigo mesmo. Mas parece estar perdido. Corremos por uma viela, um corredor estreito que dá numa espécie de beco. Os muros são brancos e decorados pelas mesmas estátuas de dragões que vimos antes. Dessa vez, no entanto, ele estica um dos braços e toca uma das paredes, despertando a criatura como se fosse a coisa mais fácil do mundo.
Olho para trás pela primeira vez.
O dragão de pedra solta fumaça pelas narinas e se desprende do muro, deixando-se cair sobre alguns dos monges. É tão real que sinto cheiro de queimado, mesmo sabendo que ele não está vivo de verdade. O piso treme enquanto a estátua sacode o corpo inteiro, desintegrando os vigilantes em seu caminho. Depois, não vejo coisa alguma, porque sou arrastado para um esconderijo secreto — um vão no final do corredor, pequeno demais para nós dois.
Um dos braços de Jongin está envolvendo meus ombros naquele espaço pequeno. O outro pousa na minha cintura, e tudo que posso fazer é enfiar o meu rosto na curva do seu pescoço, perto demais para o meu gosto. Ele apoia a cabeça na minha, seus cabelos fazendo cócegas na minha testa. Ele é irritante em tudo que faz. Irritantemente bonito e irritantemente… cheiroso.
— Agora sim me parece um encontro — ele sussurra, e depois ri.
Mas não é nisso que estou pensando. Minha mente vaga numa memória distante quando sinto o cheiro que se desprende de sua camisa.
Cheiro de maçã com canela.
⁕ ⁕ ⁕
Eu tinha quinze anos quando o sininho da pequena loja de livros usados soou, num fim de tarde beirando a noite. Já estava escuro e o sol se despedia meio tímido por trás da colina, mas eu não queria acender as luzes ainda. Gostava de como o sebo ficava bonito mergulhado na penumbra. Era agradável.
Raramente entravam clientes a essa hora. Naquela época, os cidadãos ficavam apavorados em sair durante a noite com a Bruxa das Terras Desoladas por aí. Era apenas uma folgada que gostava de amaldiçoar moças e rapazes jovens transformando-os em idosos de noventa anos. (E não, não é a mesma bruxa que me amaldiçoou com a barba cabeluda até os joelhos. Essa é uma longa história).
Naquele dia, porém, o sininho sobre a porta de entrada anunciou um novo cliente, e eu logo tratei de sair de trás do balcão para recebê-lo. Era apenas um garoto, aparentando ter a mesma idade que eu, todo misterioso com seu capuz a esconder-lhe o rosto.
Liguei a luz das lamparinas, só para vê-las se apagarem logo em seguida.
— Não precisa se incomodar em ligar as luzes — ele disse, como se lesse os meus pensamentos. — Gosto de como está agora. Fica bonito assim.
Ele caminhou entre as prateleiras de livros, mas não parecia muito interessado em nada daquilo. Apanhou Trolls, gnomos e demônios do fogo - Um guia de bolso para idiotas, revirando-o entre as mãos e depois separando o livro sobre o balcão. Aquele era um exemplar único, um dos últimos sobreviventes. E não porque era raro, mas porque era pouquíssimo conhecido.
O garoto parecia meio perdido.
— Posso ajudá-lo? O que está procurando?
Ele olhou para mim, e então para o casaco azul-marinho que eu estava usando.
— Essas ervas que estão no seu bolso… — ele apontou, adivinhando o que eu tinha nos bolsos mesmo sem poder ver. — Alecrim, eu acho. — E eu franzi a testa, porque ele estava certo. Eu havia colhido um maço de alecrim e enfiado no casaco enquanto cuidava da plantação mais cedo. Ele devia ser um bruxo, ou o aprendiz de um mago. Incrível. — Eu preciso de um pouco disso.
Nossa loja sequer vendia ervas para os clientes locais na época, mas, por algum motivo, eu simplesmente não podia dizer não àquele desconhecido.
— Ah, tudo bem. Eu posso pegar pra você. Certo... — E então fui até o vaso perto da janela dos fundos, apanhando alguns ramos de alecrim e envolvendo-os com uma fita, como se fosse um buquê. — Certo.
Quando eu estendi a mão para entregar-lhe seu pedido, uma sensação desconhecida fez meu estômago revirar, como se milhares de borboletas estivessem me fazendo cócegas. Era agradável. E nada me tirava da cabeça que aquela cena se parecia muito com alguém entregando um buquê de flores a alguém que gosta.
Acalme-se, Kyungsoo.
Enquanto o rapaz se distraía guardando o alecrim e o pequeno livro nos bolsos e deixava um punhado de moedas sobre o balcão, puxei o meu próprio capuz sobre a cabeça, tentando esconder o rosto.
E talvez tenha sido algum tipo de magia, ou simplesmente porque aquele era um dia especial, mas o fato é que, quando o dia virou noite, dezenas de vaga-lumes entraram voando pela janela. Não foi preciso que ligássemos todas as luzes, apenas uma lamparina ou outra. Os insetos davam conta do resto. Vê-los invadirem a lojinha daquela maneira, como pequenas luzes esverdeadas flutuando ao nosso redor, era uma das coisas mais bonitas que eu já havia visto.
Em agradecimento, o garoto segurou nas laterais do meu capuz e deu um passo à frente, nossos rostos tão próximos um do outro que podíamos encostar nossas testas uma na outra. Ou até nos beijar. Ele tinha um olhar brilhante e cabelos castanhos lisos escapando pelo capuz. Quando nossos narizes se tocaram, o garoto fechou os olhos e sorriu.
— Obrigado — ele disse.
E aquele foi meu primeiro beijo.
Mesmo que tenha sido apenas um beijinho de esquimó, eu o guardo na lembrança como uma coisa preciosa. A primeira vez que alguém fez meu coração acelerar feito louco.
— Qual é o seu nome? — perguntei quando ele se afastou, andando de costas e se despedindo com uma reverência.
Mas ele desapareceu, mesmo que o sininho da entrada não tivesse feito barulho algum. Foi embora sem precisar sequer abrir a porta. Tudo que restou dele foi o cheirinho adocicado de maçã com canela pairando no ar da lojinha de livros usados. E um Do Kyungsoo de quinze anos com o coração bagunçado.
⁕ ⁕ ⁕
“Como você tem tanta certeza de que isso vai funcionar?”
“Porque… já fiz isso antes. Alguns anos atrás”
⁕ ⁕ ⁕
“Não acha que devemos contar a ele?”
“Sobre o quê?”
“Sobre Jongin, é claro.”
“Talvez… De qualquer forma, ele vai acabar percebendo sozinho.”
⁕ ⁕ ⁕
— Acho que os despistamos — Jongin diz.
Seu peito desce e sobe de forma bastante óbvia, ainda recuperando o fôlego. Preciso me lembrar de que isso não tem nada a ver comigo. Ele não está nervoso porque estamos perto demais, só está cansado. Mas isso não muda o fato de que o peito dele continua subindo e descendo, respirando pesado. É viciante, agora que eu percebi de onde o conheço. Talvez eu queira deitar a minha cabeça ali.
— Jongin, você…
Não termino a frase.
A sensação de vazio volta a nos rodear. É sufocante, e parece sugar todo o ar dos meus pulmões. Sugar vida. Então, presos naquele cubículo sem saída, Jongin mantém os braços ao redor do meu corpo e usa Água mole, pedra dura, tanto bate até que fura para nos tirar dali. Ele apoia as costas na parede e se deixa cair. O cimento de repente parece viscoso, mole. Quase líquido como água.
Ultrapassamos para o outro lado e caímos no chão, minha bunda amassada contra o piso pedregoso de uma das estradas do jardim. Jongin me solta. Mal temos tempo de levantar antes que um dos monges se aproxime, um bastão em punho, erguendo-o como se fosse dar um último golpe de misericórdia.
Não sei se tenho energia suficiente para me erguer dali, então apenas giro para o lado quando ele atinge o chão com o objeto. A ponta do bastão fica destroçada. Aquela coisa — ou vigilante espectral, qualquer que seja o seu nome —, parece ter uma força capaz de arrebentar a cabeça de alguém. É assustador.
Quando Jongin está prestes a ser atingido, com o bastão a poucos milímetros da sua testa, eu sufoco um grito na minha garganta. Na verdade, aquilo me sufoca. O monge fantasmagórico consome meu grito antes mesmo que ele possa escapar, como se isso o fortalecesse. Mas é tarde. O rapaz desaparece num piscar de olhos e reaparece atrás dele, com a mesma velocidade.
Teletransporte, eu penso.
E, apenas um segundo depois, o espírito maligno se esvai como fumaça. Jongin apanha a Opala de Fogo no chão, a única coisa que sobrou dele junto com aquele cheiro de incenso enjoativo.
— Vamos — ele chama.
— Se essa é sua ideia para um encontro — eu resmungo em resposta, seguindo-o apressadamente até a ponte —, então lamento informar, mas você vai continuar solteiro para o resto da vida.
Ainda correndo lado a lado, ele vira o rosto apenas para me olhar, um sorriso divertido nos lábios.
— Então você admite que é um encontro?
— Por Merlim, Jongin! É claro que não.
Ainda tem cinco ou seis monges em nosso encalço antes de alcançarmos a ponte. Não posso vê-los, mas posso senti-los absorvendo minha energia. Tentando me puxar para trás. Os visitantes nas ruas não entendem por que diabos estamos correndo tanto num lugar sagrado — os Mundanos, principalmente, porque ficam horrorizados quando passamos pela ponte, pisando forte até a primeira curva.
E é isso. Nós conseguimos. Quando olho para trás, vejo todos eles se amontoarem na esquina da ponte em zigue-zague, impedidos de continuar seu caminho. Não são apenas cinco deles, são sete. Mas, a essa altura, isso não importa mais.
— Bom dia, cavalheiros — um rapazinho esguio e de cabelos cor de areia cumprimenta, fazendo uma reverência debochada assim que chegamos à casa de chás. — Você demorou mais do que eu esperava dessa vez, Kai.
Kai. Ele usa nomes falsos quando se aventura pelas portas de lugares diferentes. Chanyeol já havia me contado sobre isso.
— Você poderia simplesmente ter nos convidado a entrar — Jongin responde, e logo se larga numa cadeira em frente ao balcão.
O garoto chinês de avental faz biquinho.
— Assim perderia toda a diversão. — Ele ri e nos serve uma xícara de chá preto. — Bebam, vocês dois. O imperador Huang deve estar chegando logo. E sejam formalmente bem-vindos a Huxinting.
Huxinting tem uma infinidade de bules, xícaras e canecas de porcelana. Um lustre enorme pende do teto alto, e o espaço é decorado com mesas redondas, cadeiras de madeira e potes de vidro com balas de gengibre como cortesia. No passado, durante a Guerra do Ópio, a casa de chás servia como alojamento para os oficiais do alto escalão Britânico. É tudo luxuoso demais para uma simples loja.
Os clientes que se servem de chá nas mesinhas são mais incomuns do que estou acostumado a ver no sebo. Bruxos que não se incomodam em mostrar sua verdadeira identidade, trolls de pele coriácea que mal cabem nas cadeiras e homens de duas faces, que parecem ser fãs confessos de uma boa xícara de chá verde.
Há também soldados-fantasmas com lanças e espadas atravessadas contra o corpo. Eles parecem bons espíritos, mas ficam extremamente irritados quando o chá se derrama de suas feridas abertas e suja o chão.
— Espere por uma entrada dramática — Jongin murmura para mim, sua voz abafada pela xícara que ainda toca seus lábios. Ele parece animado.
— Espera aí… Você conhece o imperador?
Ele balança a cabeça.
— Conheço, e ele é do tipo que gosta de fazer uma cena. Coisa de imperador, eu acho. Huang Zitao nunca perde a oportunidade de fazer uma entrada espetacular.
Ele revira as Opalas de Fogo que conseguiu apanhar durante a nossa fuga desesperada, fazendo-as dançarem sobre a palma da mão, para cima e para baixo. Após alguns segundos, as pedras avermelhadas flutuam no ar, e, por um momento, acho que é ele quem está fazendo isso.
Mas não são apenas as opalas.
Os clientes ao nosso redor estão parados como estátuas. O troll congelou alguns milésimos de segundos antes de beber sua xícara de chá, seu dedo mindinho levantado como se fosse a coisa mais chique do mundo; o homem de duas faces está inerte, de pé, porque uma de suas faces havia começado uma discussão com a bruxa na mesa de trás. Até o chá sendo derramado de uma da chaleira de um dos Mundanos parece ter ficado petrificado.
Todos parecem imóveis, exceto eu, Jongin e Luhan (esse é o nome no crachá do chinês loirinho, pelo menos).
E lá está ele, todo pomposo em seu kimono imperial, parado na porta com uma das mãos na cintura e um sorrisinho satisfeito no rosto. Huang Zitao age como se não tivesse acabado de congelar o tempo a seu bel-prazer só para poder chegar com estilo.
— Kai — ele diz simplesmente, e Jongin faz uma reverência. Eu imito o gesto. — Chanyeol está com problemas de novo?
— É, sabe como é... Demônios do fogo e suas crises.
— Aquele lá gosta de colocar lenha na fogueira — Zitao brinca, muito animado com sua piadinha infame.
Algo me diz que eu deveria rir. Pelo menos por educação.
— O que vai ser dessa vez? — pergunta Luhan, curioso, debruçando-se sobre o balcão. — Enfrentar um enxame de abelhas-norueguesas furiosas? Escalar o monte Everest e trazer um punhado de neve antes que ela descongele? Ou que tal nadar no Mar Vermelho só de tanguinha?
O imperador Huang balança a cabeça, negando.
— E quem gostaria de ver o Kai de tanguinha?
Eu gostaria.
— Isso não me serve de nada — ele continua, virando-se para Jongin em seguida. — Temos uma aposta antiga que você acabou de perder. Você se lembra? Apostou comigo que jamais precisaria da minha ajuda novamente. E aqui está você. Ora, ora, parece que alguém está me devendo um filé de linguado fresco.
— Tudo bem. Se você me der as folhas de chá de Oolong, eu trago um filé de linguado pra você — Jongin concorda. Uma boa tática. Afinal, comida compra qualquer pessoa nesse mundo. — E vê se da próxima me deixa entrar sem enviar tantos monges atrás de mim. Dessa vez eu quase tive a minha alma sugada. O que você faria se perdesse o seu melhor cliente?
Ele pisca, atônito.
— Você é o meu pior cliente. Deixa o chá pela metade e ainda sai sem pagar.
— Isso é verdade.
Eles continuam tagarelando por algum tempo. Zitao usa Cada macaco no seu galho para fazer todos ao nosso redor voltarem ao normal. O chá retoma o seu trajeto até a xícara de porcelana. O ponteiro do relógio volta a se mover. E o imperador Huang, de repente, é apenas um atendente usando avental e um crachá de funcionário, assim como Luhan. Um disfarce um tanto surpreendente para um imperador tão esnobe.
Quando saímos da casa de chás, nenhum monge nos segue no caminho de volta para o castelo.
⁕ ⁕ ⁕
Está tarde. Um “tarde” que deve beirar às nove horas. Talvez dez. Eu saberia se o castelo tivesse relógios. Há telescópios, um jogo de dardos na parede da cozinha, vegetais secos pendurados por barbantes e até mesmo sinos dos ventos coloridos pendendo do teto da sala, mas nenhum relógio, exceto um cuco quebrado que nunca deu as caras.
Estou sentado sobre o tapete da sala, meio encolhido em frente à lareira. Faz frio, e eu me aconchego enrolado num casaco quadriculado de rosa e roxo que Jongin me emprestou.
Mesmo fraco, Chanyeol se estica todo sobre os seus pedaços de madeira, os olhos curiosos me observando por entre as chamas azuladas. Ele parece suspeitar do sorriso no meu rosto.
— Você percebeu? — ele sussurra, porque Minseok está dormindo no sofá.
— Percebi o quê? — pergunto, soltando um longo suspiro. — Que Jongin, aquele traste bonito, na verdade é o meu amor de infância? É, percebi.
Trago minhas pernas para mais perto do corpo e as abraço na altura dos joelhos. Quero enterrar minha cabeça ali e sumir, mas não sou assim tão flexível. Nem tão mágico.
Chanyeol solta alguns estalos, animado pela minha descoberta.
— Quando fiquei fraco da primeira vez — ele conta —, Jongin tinha quinze anos. Ele chegou no castelo depois de visitar uma livraria perto das colinas e disse que tinha um garoto muito bonito trabalhando lá. O moleque estava tão nervoso que só conseguia andar de um lado pro outro e repetir que ele era uma gracinha. Bem… que você era uma gracinha. Ele ficou um tempão criando coragem para sacrificar o buquê de alecrim que você deu pra ele no meu feitiço. — O demônio tremula, quase como se estivesse sentindo arrepios. — Eu meio que já desconfiava quando você apareceu. Ele começou a agir todo bobo de repente. Deve ser coisa de gente apaixonada. As pessoas ficam meio idiotas, certo? E ele deve ter ficado muito idiota, para ir até a livraria te visitar tantas vezes, mesmo disfarçado.
Balanço a cabeça, mesmo não tendo muita certeza. Eu nunca me apaixonei antes. Quer dizer, antes de ver Jongin na lojinha de livros usados há alguns anos, eu sequer sabia que podia sentir aquilo por alguém. Sentir aquele nervosismo tão típico que descrevem nos livros, as mãos suando e uma necessidade ridícula de ficar bem pertinho dele. Perto o bastante para sentir o cheirinho de maçã com canela.
Jongin é o tipo de pessoa que faz meu coração ter contrações ventriculares prematuras. E isso quer dizer que ele faz meu coração saltar uma batida, mas eu me recuso a dizer isso de uma forma romântica.
— Você deveria dizer a ele, Kyungsoo — sussurra Chanyeol.
— Dizer o quê?
— Dizer que você se lembra. Dizer o que você sente.
Olho para meus joelhos, pensativo. Qual seria o melhor jeito de contar?
Minseok acorda, erguendo-se meio moribundo do sofá ainda com suas cobertas e deitando a cabeça em meu colo, sem falar coisa alguma. Ele suspira, sonolento, e então dá um sorrisinho satisfeito antes de voltar ao mundo dos sonhos. Faço um cafuné no garotinho enquanto ouço Chanyeol estalando, contente.
Eu me sinto como um pai solteiro que acaba de adotar um bacurizinho de sete anos e que, em vez de um cachorro, tem um demônio do fogo crepitando na lareira. É como fazer parte de uma família, e eu gosto disso. Gosto da sensação de pertencer a algum lugar.
E talvez eu não me importe de pertencer ao coração de Kim Jongin também.
⁕ ⁕ ⁕
Quando Jongin me chamou para ir à praia no dia seguinte, não era bem aquilo que eu esperava. Não que eu tivesse imaginado nós dois dividindo uma canga na areia, tomando sol com seu braço ao redor do meu pescoço ou dando uns beijos no fim de tarde, claro que não. Pfffft, longe disso. É óbvio que não. Mas fisgar um linguado para um imperador esnobe definitivamente não estava nos meus planos.
“Isso faz parte do nosso trato”, ele disse, “então você ainda precisa me ajudar a pescar”.
O caramba que preciso.
O fato é que, no fim, acabei aceitando. Talvez porque quisesse muito vê-lo sem aquela camisa bufante. Talvez não. Mas tudo começa a valer a pena quando nós nos sentamos lado a lado num cais de madeira, nossos pés mergulhados no mar de Haeundae até a altura dos tornozelos. Fico balançando-os dentro d’água porque não quero ter que olhar para Jongin. Ele está injustamente bonito hoje.
Os fios meio bagunçados pelo vento estão cor-de-rosa novamente. (Ele não para de mudar a cor dessa droga de cabelo). E também não se livrou da camisa branca de mangas bufantes, mas a barra de suas calças agora está dobrada na metade da canela, deixando à mostra parte de sua panturrilha. O rapaz parece se divertir enquanto lança o anzol para a água pela décima vez, um sorriso empolgado dançando em seus lábios.
Céus. Ele está tão irritantemente bonito que sinto vontade de acertar-lhe um tapa no braço. Ou beijá-lo. Ou dar um tapa em seu braço e depois beijá-lo.
E, de repente, aquela parece ser uma boa ideia. Talvez eu não precise realmente dizer a ele como me sinto com palavras. Ele é um mago, afinal. E dos melhores. Talvez eu só precise deixar que ele leia os meus pensamentos. Assim, eu me concentro, fechando os olhos e tentando formar a frase claramente na minha cabeça.
Me beija, Jongin.
— Linguados são mais difíceis de pescar do que eu imaginava — ele diz, suspirando alto. — Dá pra acreditar que ainda não pegamos nenhum?
O balde de plástico que ele trouxe continua vazio.
— Pois é, né? — respondo. — Que crime.
— Talvez eles vivam no fundo do mar.
— Talvez.
— Ah, eu desisto!
Ele deixa a vara de pescar de lado e deita as costas contra o tablado de madeira, levando os braços até o rosto para evitar o sol. Sua blusa sobe e mostra seu umbigo. Faço o mesmo movimento e deito ao seu lado, cutucando a pele descoberta do seu abdômen, mas ele continua sem olhar para mim. Jongin está fugindo. Tenho quase certeza. Será que ele pode me ouvir?
Se você estiver me ouvindo, eu penso, então me beija. Agora.
Não funciona.
Em que mundo eu achei que pedir um beijo mentalmente fosse uma boa ideia?
Ele continua na mesma posição. Depois suspira, largando os braços ao lado do corpo. Não quero perder a coragem, então me viro de lado e meus cabelos se espalham pela madeira enquanto tento olhar para ele. Chanyeol tem razão. Eu preciso dizer. Então, timidamente, eu estendo minha mão e toco seus cabelos.
— Eu me lembrei de você — eu sussurro, minhas palavras quase sendo levadas pelo vento.
E o mundo parece virar de cabeça para baixo. Quase literalmente.
O dia vira noite quando Jongin me olha de volta, seus olhos presos nos meus. Meus olhos presos nos seus lábios entreabertos. Seus fios rosados se tornam castanhos sob o toque dos meus dedos como se fosse mágica, porque é assim que me lembro dele. Não tenho certeza se é noite de verdade, ou se tudo aquilo é uma ilusão criada por algum feitiço. Tudo que sei é que existem milhares de estrelas sobre nossas cabeças, e que vaga-lumes dançam na escuridão, como pequenos pontos luminosos. Assim como da primeira vez.
— Eu nunca esqueci você — ele responde.
Minha mão fica parada sobre o seu peito, e eu desenho círculos imaginários ali, porque não sei o que fazer. Graças a Merlim, não sou o único nervoso. Ele também está respirando com dificuldade, como se tivesse corrido uma maratona. Consigo sentir seu tórax subir e descer contra a palma da minha mão.
— Você deveria ter me dito o seu nome.
— E você deveria ter me beijado — ele diz.
— Eu tinha quinze anos — protesto, tentando me defender, mas ele balança a cabeça.
— Não antes, hoje. Agora. Você deveria ter me beijado agora. — Ele suspira, colocando sua mão por cima da minha e encaixando os dedos de forma meio frouxa nos meus. Ele não sabe fazer isso. Você sabe, entrelaçar os dedos perfeitamente. Não temos experiência com coisas desse tipo, então apenas ficamos assim, as mãos dadas de qualquer jeito. — Deveria ter me beijado quando pensou em me beijar, Kyungsoo.
Acabo soltando uma risada baixinha.
— Se serve de consolo, ainda estou pensando em te beijar.
Seguro na gola da sua camisa e arrasto meu corpo para mais perto, mas é ele quem me beija primeiro. Seu braço encontra seu lugar favorito bem ali na minha cintura, e nossas pernas se entrelaçam, mesmo que beijar naquela posição seja extremamente desconfortável.
Estou beijando Kim Jongin.
E Jongin tem lábios macios e os toques mais gentis do mundo.
Estou tocando em sua pele, na clavícula que a blusa branca deixa descoberta. Então a minha mão sobe, devagar, ainda um tanto acanhada enquanto meus dedos se arrastam até sua nuca. Jongin parece gostar. Ele suspira contra meus lábios e suas mãos passam a deixar um carinho gostoso na minha cintura, me segurando e me mantendo por perto. Bem perto. Perto o suficiente para eu sentir seu peito subindo e descendo contra o meu.
Não sei dizer quem está mais nervoso. Em algum momento, sem perceber, devo ter esquecido de continuar respirando normalmente, porque agora estou sem fôlego. Que vergonhoso…
⁕ ⁕ ⁕
Jongin está sorrindo.
Ele não para de sorrir.
É quase como se ele não pudesse evitar.
⁕ ⁕ ⁕
Ele não está usando magia, mas sinto como se estivesse.
Sua pele está tão quente contra a ponta dos meus dedos.
Estou derretendo nos braços de Jongin.
⁕ ⁕ ⁕
Jongin ainda está de olhos fechados quando eu me afasto. Sua cabeça volta a se inclinar e ele me beija de novo, tocando meus lábios de uma forma lenta e quase superficial, sem aprofundar qualquer coisa. São só selinhos que ele dá porque não quer se afastar tão de repente. E isso é bom. É bom saber que ele não pretende me soltar tão cedo.
Ele sorri, e só então abre os olhos para me observar. Jongin está mais bonito e mágico do que nunca, com todas aquelas estrelas montando um cenário luminoso atrás dele.
É como se eu tivesse um pequeno infinito em meus braços.
⁕ ⁕ ⁕
Quando acordo, sinto cheiro de queimado e de maresia ao mesmo tempo. Não é uma boa combinação. Pode acreditar.
Chanyeol está tão inflamado que, por um milésimo de segundo, acho que ele pode incendiar o castelo todinho. Suas chamas avermelhadas se expandem e línguas de fogo se erguem, tingindo as paredes de tijolos da chaminé de um tom de fuligem. Quase posso imaginar um rosto alegre e sorridente tremeluzindo na lareira. Do lado de fora, o castelo deve estar soltando nuvens e mais nuvens de fumaça espessa enquanto se move aos solavancos pela colina.
Dou uma risadinha ainda sonolenta, feliz por vê-lo tão vivo novamente. De um jeito ou de outro, Jongin deve ter conseguido pescar os linguados.
E, assim que olho para o outro lado, lá está ele. A peste bonita está sentada no chão ao lado do sofá, um braço apoiando o rosto enquanto ele me observa. Me admira. Meus olhos inchados de sono piscam diversas vezes até reparar que ele está molhado. Encharcado, na verdade, mas ele não parece se importar.
— Bom dia — eu digo, estendendo a mão meio molenga para deixar um cafuné em seus cabelos molhados de água salgada num carinho preguiçoso. Ele deve ter mergulhado até o fundo do mar para pescar os tais linguados.
Olha só onde você foi parar, Kyungsoo, eu reclamo comigo mesmo. Primeiro tenta se livrar dele, e agora está todo bobo apaixonado pelo cara. Trágico.
Ele fecha os olhos e apoia a cabeça contra o meu braço, como um cachorrinho pedindo por carinho.
— Bom dia, Soo.
— Soo? — repito, erguendo uma sobrancelha. — Não é porque nos beijamos algumas vezes ontem à noite que você já tem o direito de criar apelidos carinhosos.
— Se quantidade é o problema, podemos começar o dia nos beijando de novo, se você quiser.
Ele ajeita meus cabelos bagunçados, penteando-os com os dedos, e se inclina para me beijar.
— Ewww — faz Minseok, ostentando uma careta. — Que nojo, vocês aí. Mais respeito nessa casa, fazendo o favor.
O rapazinho caminha de modo elegante e sisudo, como um felino, agora com novas orelhas peludas escapando de um gorro rasgado e uma cauda balançando para cá e para lá. Aparentemente, Minseok deve ter tentado o feitiço À noite todos os gatos são pardos outra vez, mas ele ainda não parece estar acostumado aos efeitos colaterais.
Jongin se levanta, sobressaltado, as mãos para o alto como se dissesse: “Eu não fiz nada de errado”. Depois caminha até a cozinha, cantarolando. Feliz da vida. Ele acaba deixando um rastro molhado pelo tapete até o cômodo vizinho, mas suas roupas secam num estalar de dedos, o que é uma pena, já que isso significa perder a visão da sua camisa encharcada grudando no corpo.
Ele ensaia alguns passinhos de dança enquanto prepara o nosso café da manhã. Cômico.
— Parece que alguém está suspirando de amores — debocha Chanyeol.
— Não estou suspirando de amores — Jongin se defende, suspirando de amores. Tão óbvio.
E é nessa hora que o baixinho ruivo se esgueira até o sofá, aconchegando-se debaixo das cobertas como se aquela fosse a nossa cabana secreta. Ele fica ali, só o rosto redondinho para fora, a cauda fazendo cócegas em meu braço por baixo do edredom.
— Sabe de uma coisa, Kyungsoo? Eu não quero que você vá embora — ele diz isso numa voz infantil embargada e com lágrimas querendo brotar no cantinho dos olhos felinos. É a primeira vez que ele parece agir como uma criança de verdade. — Agora que ajudou o Jongin a salvar o Chanyeol, isso significa que você vai receber uma dica, certo? Dos seus sapatos, quero dizer. Você vai descobrir onde estão. E vai deixar a gente.
Ele coloca tanta ênfase nas últimas palavras que Chanyeol escuta.
— Você vai deixar a gente? — ele se agita, inflamando-se todo na lareira. — Como tem coragem, depois de tudo que passamos juntos? Todos os toquinhos de madeira que você colocou pra mim e os cafés da manhã com as frigideiras no meu fogo... — Ele se retrai, abatido. E depois dizem que o dramático é o Jongin. — Foi tudo uma mentira? Você me usou esse tempo todo?
— Você vai deixar a gente? — uma terceira voz repete.
Jongin deixa a cozinha com um avental mal amarrado na cintura e uma colher de pau, apontando a danada na minha direção, de modo acusatório. Sua expressão é tão desolada que ele parece ter acabado de receber a pior notícia de sua vida. Eu poderia simplesmente dar um tapa no braço dele, só para ele deixar de ser burro. E depois beijá-lo. (Essa última parte eu poderia fazer mais de uma vez).
— Ei, ei. Pessoal! — chamo, tentando roubar a atenção deles. — Eu não vou a lugar nenhum. Por Merlim! E também não preciso de dica alguma. — Eu me levanto do sofá e fico de pé sobre o tapete marroquino, coçando a nuca, meio sem graça. — Pra ser sincero, já faz algum tempo que eu descobri onde os meus sapatos estão.
Minseok abre a boca, impressionado.
— Uooooow. Você tá falando sério? Encontrou mesmo os sapatos?
— Sozinho? — completa Chanyeol, curioso.
Balanço a cabeça.
— Bem, sim… Estavam no último lugar que eu pensaria em procurar: no hall de entrada, onde eu os deixei. Invisíveis. Tropecei neles pela primeira vez quando fui abrir a porta de Haeundae e inundei parte da sala.
— Então… — Jongin começa a dizer, incerto. — Isso quer dizer…
— Quer dizer que, se eu quisesse ir embora, já teria ido. — Respiro fundo e olho para baixo, porque até observar meus pés descalços é melhor do que enfrentar todos aqueles olhares atentos. — E eu não quero ir. Eu quero ficar com vocês, se estiver tudo bem. Quero ficar aqui nesse castelo maluco por um longo tempo. Eu quero…
Antes que eu possa sequer terminar de me explicar, Minseok e Jongin me cercam, um de cada lado. O garotinho envolve minha cintura com os braços e encosta a cabeça na minha barriga, suspirando de alívio. Jongin, por sua vez, envolve meus ombros e passa a mão na minha nuca, alisando meus cabelos enquanto me puxa em sua direção, deixando um beijo macio na minha testa.
— Da próxima vez que você me der um susto desses…
— Vai fazer o quê? — questiono, erguendo as sobrancelhas. — Me expulsar?
Ele ri, e então parece considerar responder com alguma piada, mas resolve que manter a boca fechada é uma opção mais sábia. Jongin é péssimo com piadas.
Eu os aperto um pouco mais naquele abraço em família, com Chanyeol gritando da lareira que é totalmente injusto ele não poder participar. Afinal, sem ele, aquela reunião jamais seria calorosa o suficiente. E, de repente, tenho tudo que preciso bem ali. Uma família. Um lar. Um lugar ao qual eu pertenço.
⁕ ⁕ ⁕
Quando você acaba morando num castelo ambulante, há algumas coisas com as quais você precisa se acostumar. E, de agora em diante, eu me sinto pronto para acordar no quarto bagunçado e cheio de bugigangas de Jongin todos os dias. Pronto para fazer o café da manhã usando as chamas de Chanyeol e ouvindo-o resmungar o tempo todo. E também para ver objetos voando por aí enquanto Minseok pratica seus feitiços durante a tarde.
Eu não me importo de passar o resto da vida naquele lugar maluco e incrível. De adormecer no sofá com o garotinho-com-orelhas-felinas e de ver Jongin amanhecer com os cabelos de uma cor diferente toda manhã. Talvez o meu “felizes para sempre” seja um pouco mais agitado do que eu esperava que fosse, e melhor, muito melhor do que todos aqueles contos de fadas fazem parecer.
— Tem certeza disso? — Jongin pergunta horas mais tarde, pela milésima vez naquele dia. — Quer dizer, eu sou uma bagunça completa, Kyungsoo. E você odeia bagunça.
— É claro que tenho certeza.
Afinal, você é a minha bagunça preferida, acrescento quase sem querer, e então vejo o garoto sorrir para mim. Essa é apenas uma das incríveis desvantagens em namorar um mago que pode ler pensamentos.
Estamos em seu quarto, deitados na sua cama bagunçada com Jongin usando minha barriga de travesseiro. Seus cabelos, agora castanhos, se espalham pela minha camiseta. O lugar é amplo, cheio de quinquilharias, livros empoeirados e uma coleção de tapetes mágicos que ficam disputando território o tempo todo. Na estante repleta de luminárias, ursos de pelúcia e objetos indianos dividem espaço com os livros que ele comprou no sebo. (Trolls, gnomos e demônios do fogo - Um guia de bolso para idiotas também está lá, espremido num cantinho ao lado de uma lâmpada mágica).
Há tantas coisas penduradas no teto e dispostas em prateleiras desorganizadas que mal tem espaço para andar. Ele parece ter um mundo inteirinho dentro do quarto.
— Você não vai se decepcionar? — ele insiste, espero que pela última vez.
— Já estou decepcionado — minto, rindo da expressão emburrada que ele faz, e então deslizo sutilmente o polegar pela sua bochecha. — Não há nada mais decepcionante do que conhecer um maluco que vive num castelo ambulante e depois perceber que ele é o amor da sua vida.
Ele se levanta num pulo, de repente parecendo muito feliz.
— Eu sou o amor da sua vida?
— Não foi bem o que eu quis dizer — respondo, ou ao menos tento responder, porque suas mãos já estão dos dois lados do meu rosto, esmagando a minha bochecha.
— Mas foi o que você disse. Tarde demais para voltar atrás agora.
— Argh… Tudo bem.
— Então diga de novo — ele sussurra, fazendo aquela coisa gostosa com o nariz outra vez. Beijo de esquimó. — Que eu sou o amor da sua vida.
— Céus, Jongin! — resmungo baixinho, recebendo um beijo de verdade. Daqueles de tirar os pés do chão. Literalmente. E esse é um daqueles momentos em que eu tenho certeza de que fiz a coisa certa. De que o meu lugarzinho favorito é bem ali, ao alcance dos dedos gentis de Jongin nas minhas bochechas. — Você...
Você é o amor da minha vida.
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