O LIMBO DO MENINO SEM OLHOS
PRIMEIRA PARTE
Você conhece a lenda de Hanako?
Não, não estamos falando da garota que assombra a terceira cabine do banheiro feminino, realizando desejos em troca de algo seu. E sim de uma pobre alma penada que acompanha o barqueiro além das águas do rio Sanzu, em busca de seu amor.
Hanako não é exatamente seu nome. Apenas um fragmento posto de forma errônea na tentativa de recuperar uma história estilhaçada. Hanako é, na verdade, Amane Yugi, um pobre rapaz que, no auge de seus 20 anos, perdeu a vida em um acidente trágico.
Apesar de alguns equívocos, garanto que o cerne dessa lenda é completamente verossímil. Tudo começou durante o período Edo, com um casal que recém havia começado a vida juntos. Os dias eram amáveis e intensos, não havia palavras para mensurar as sensações cálidas em seus peitos que a vida a dois teria intensificado. Mas tudo viria a mudar em uma manhã amena de primavera, quando os dois decidiram embarcar naquele navio com o intuito de visitar alguns de seus velhos amigos do outro lado do mar…
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O cheiro de maresia e de peixe fresco inundava minhas narinas. Seu eflúvio era o suficiente para me deixar enjoado. Os pesadelos ainda remanesciam em minha memória, e aquele ambiente apenas aflorava as terríveis sensações as quais fui subjugado durante as últimas noites. A água em meus pulmões. O sal em minha língua. A ardência em minhas narinas. A pressão cada vez mais forte em meu corpo. E a dor de não saber onde ela estava.
"Estou aqui, do seu lado. Foi apenas um sonho ruim", foram suas palavras de acalento quando eu despertei aos prantos no meio da madrugada. Mas por que a sensação ainda me aflige depois de todos esses dias? Bom, sei que a viagem pode ser um dos motivos das minhas noites mal dormidas. Mas não há motivos para temer algo assim, sendo que não é a primeira vez que navego em alto-mar.
Uma aura negativa havia se formado ao meu redor com todos aqueles pensamentos. Contudo, magicamente dissipou-se assim que ela colocou a mão em meu ombro, roubando meu foco para toda aquela luz que ela irradiava.
- Está tudo bem, Amane? - Se não bastasse o belo olhar de Antares, sua voz suave tinha o efeito do canto periculoso de uma sereia. Enfeitiçado por seu sorriso, pude me libertar por hora de minhas preocupações.
- Tudo sim, Nene. Com você aqui, como não estaria? - Sorri ao vê-la ruborizar. Não havia visão mais bela do que aquela. Uma explosão de vivacidade em meio à um amanhecer desbotado pela névoa do porto. Era simplesmente adorável vê-la assim, mesmo após tantas vezes. Constrangê-la das formas mais doces ou lúbricas tornou-se um vício para mim desde o momento em que nos conhecemos. E, de fato, Yugi Nene era alguém fácil de constranger.
- Você fica cada dia mais bobo - Ela riu suavemente, desviando o olhar. Estava mais calma hoje, caso contrário levaria um beliscão.
- Estou ansiosa para rever nossos amigos, - Continuou - mesmo que a situação não seja das melhores…
- Akane disse que não precisávamos antecipar nada, lembra? Ela começou o tratamento há pouco tempo… é possível que quando chegarmos lá já esteja se recuperando - Isso era mentira. Uma mentira suave para reconfortar o momento presente. Fazia alguns dias que recebemos uma carta remetente do outro lado do mar, avisando do estado frágil de uma antiga amiga de Nene, Akane Aoi. Nos mudamos para esse porto há poucos meses, e temos mantido um contato ínfimo com nossos parentes e amigos através de cartas que, dependendo de alguns fatores, podem demorar mais de uma semana para chegar a nós. Na carta que Aoi Akane, o noivo de Aoi e velho amigo meu (por minha parte), nos escreveu, percebi como ele tentava enfeitar a situação para não alarmar Nene e apaziguar a si mesmo. “Venham quando puderem!” projetava sob a luz bruxuleante da vela uma sombra como “Venham rápido, por favor!”. E assim fingi acreditar. Abraçar o otimismo mesmo quando há apenas cinzas no lugar.
- Eu sei mas… Não queria que meu primeiro reencontro com eles fosse com a Aoi-chan acamada desse jeito - Ela soltou o ar pesado - Ela, os Minamoto, a Sakura-chan e o seu irmão, a Yako-san e o Tsuchigomori-sensei… até mesmo o Mitsuba-kun e suas inconveniências! E-eu sinto falta deles! Parece que depois que nos casamos, cada um foi para um lado…
- E foi, principalmente nós. Por minha causa, acabei te arrastando para cá - Desviei o olhar para o chão.
- Ei! Não me arrastou coisíssima nenhuma! Eu escolhi vir com você, pois prometi estar ao seu lado em qualquer situação! - Nene disse, com aquela determinação que eu tanto admiro - Não deixaria você vir cuidar de seu pai sozinho, ainda mais quando seu irmão não podia.
- Nene, eu não entendo… - O seu dedo indicador em meus lábios interrompeu.
- Eu só me sinto culpada por não tê-los visitado antes. Mergulhamos tão fundo na rotina, e eu não movi um dedo para planejar uma visita. Talvez com esse aprendizado agora, isso mude.
Ela recolheu sua mão, voltando a encarar o porto. Eu, por outro lado, continuei a encarar seu rosto delicado com tons de vermelho por onde as mãos geladas da brisa da manhã tocaram. Soltei uma risada, que mais soou como um sopro violento.
- Você sempre tem razão.
- Não é bem isso. Minha razão que é superior à sua!
Depois de tirar toda essa “razão” dela com um beijo indecoroso que me custou alguns olhares enviesados - mas que não me importam nem um pouco -, voltamos a nos aquietar, vislumbrando o horizonte esfumaçado à nossa frente. Porém, não consegui. A visão daquele mar trazia em flashes cada cena daquele pesadelo. Tento não transparecer a ansiedade que isso me causou ao controlar minha respiração, mas acabei por deixar um suspiro desprender dos meus lábios. Sinto a mão de Nene envolver a minha, acariciando levemente com o polegar. Sua quentura me envolve, é reconfortante. Novamente sua luz irrompe as trevas, e inconscientemente sorrio.
- Vai ficar tudo bem - Uma mentira para mim, uma mentira para ela. Assim estamos quites.
Não cheguei a entrar em detalhes sobre o que acontecia dentro daqueles pesadelos. Apenas que nosso barco teria naufragado em uma tempestade. Não queria preocupá-la de início, mas ela me forçou a falar e, como eu devia ter imaginado desde o princípio, ela não se deixou abalar e me amparou, fazendo o possível para que eu me sentisse melhor. Até mesmo cogitou desistir da viagem, alegando que poderia deixar para outro momento, ou até mesmo enviar uma carta para sua amiga, mas eu neguei veementemente. Não poderia fazê-la deixar de visitar sua amiga seriamente abatida pela doença, apenas por conta de um medo irracional. Ela abriu mão de tanta coisa por mim para me ajudar com meu pai durante seus últimos momentos de vida…
E por essa razão que estávamos aqui hoje, com Nene atenta a qualquer sinal meu de desconforto para vir me resgatar das partes mais obscuras de minha mente. Um "eu a amo" não é capaz de expressar tudo que eu sinto por essa deidade que tenho como esposa.
Quando chegou a hora de embarcarmos, ela me encarou com um sorriso que deu outro motivo para as borboletas em meu estômago agitarem. Nene permaneceu ao meu lado o tempo todo, estava me sentindo uma criança - mas não é algo que eu reclamaria, afinal, pude me distrair com provocações e piadas enquanto nos acomodávamos na embarcação. Seria, no máximo, três dias de viagem para alcançar a outra ponta, e o clima aparentava estar agradável para a navegação. Somando isso tudo, consegui me sentir mais tranquilo.
Não demorou para o resto dos tripulantes embarcarem, e antes mesmo que eu percebesse já estávamos bem longe da costa. Da popa do navio eu observava o horizonte reduzir o vilarejo que vivíamos em uma pequena silhueta, até que não restasse nada além de um plano desconhecido sob meu olhar.
Nene encarava o mar como se fosse um velho amigo seu. Vinha de uma família de pescadores, afinal. As águas sempre foram seu lar. Não pude deixar de reparar no kosode que havia escolhido hoje. Branco, com detalhes de escamas douradas e cor-de-rosa em profusão às demais. Sorri de canto com aquela visão. Nene me fazia questionar se sua real origem não fosse aquele vasto oceano, e que talvez ela pertencesse a ele.
- Agora eu entendi - Ela me encarou, exclamando dúvida - Suas pernas de daikon são assim porque você era uma ningyo antes de nos conhecermos!
- HANAKO! - Ela gritou depois de alguns minutos atordoada. Senti todos os olhares sobre nós naquele momento, mas apenas me importei em rir.
- Hey, achei que já tinha parado com esse apelido - Arqueei uma sobrancelha.
- Foi por esse nome que eu te conheci, oras - Ela inflou uma das bochechas. Ah, claro. Esse apelido. Uma confusão feita por um velho caduco ao pedir para vir me procurar, e que acabou me atormentando por anos - E também você que começou…
- Certo, talvez eu tenha me equivocado… - Nene me fuzilou com os olhares de relance - Quem sabe não seria uma das belas sereias do ocidente? Sinto que fui enfeitiçado por você no momento em que nos conhecemos - Sorri, acariciando sua bochecha com tamanha delicadeza, como se os calos em minhas mãos pudessem quebrá-la.
Ela desviou o olhar, e logo senti sua unha estalar em minha testa com o peteleco que havia dado - Ai! - Exclamei, de relance assistindo suas bochechas vermelhas se ocultarem pelas mechas soltas do coque quando seu rosto se voltou para o mar.
- Por que eu me casei com você? - Ela proferiu. Podia sentir as ondas de irritação saltando por sua testa, mas no fundo sabia que era apenas implicância. Nossa dinâmica nunca mudou sua essência desde quando éramos jovens.
Acabei rindo. Uma gargalhada gostosa, e menos exagerada. A abracei de lado e beijei sua testa, a encarando com um grande sorriso no rosto.
- Eu te amo, Nene.
- Também te amo, idiota - Ela respondeu, reprimindo o sorriso com um bico em seus lábios.
Foi a última vez em que dissemos isso um ao outro, antes de o oceano tomar de volta o que era seu, assim engolindo toda a minha felicidade. Para sempre.
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Foi um pouco antes do alvorecer que a tempestade os cercou no horizonte. Ondas de mais de dois metros de altura açoitavam o casco e inundavam o convés do navio, jogando-o de um lado para outro como se fosse um barquinho de papel. Amane enfrentava uma longa noite de insônia, e estava de pé quando as nuvens começaram a resmungar no horizonte. Após isso, foi tudo muito rápido.
A confusão se instalou com ordens aos berros e o desespero dos tripulantes. A maioria teria acordado com o frenesi da tempestade e ido ao convés para tentar ajudar com a situação. Porém, não avistou Nene entre eles.
Aflito para ir procurá-la, Amane tentou descer para a cabine, mas foi impedido por alguém o empurrando na direção oposta enquanto gritava em seu ouvido. Atordoado com a quantidade de informações que seu cérebro ainda tentava processar e em meio àquele desespero no convés, resignou às suas ordens para tentar fazer a embarcação resistir naquele mar revolto, o que demonstrava ser uma tarefa quase impossível. Flashes de seu recente tormento ao dormir voltavam a cada instante, como um ato de zombaria de sua própria estupidez por não dar ouvidos ao aviso dos deuses. Medo, angústia, ansiedade. O pavor da incerteza daquele desfecho. Gritos abafados no fundo, trovões ribombando em seu peito, o bailar periculoso das ondas; sons que foram ficando distantes e abafados…
Quando a água salgada inundou seus pulmões, percebeu tardiamente que estava afundando. Tão rápido quanto os últimos acontecimentos, as ondas o puxaram para aquela imensidão negra como nanquim, onde tudo que poderia fazer era lamentar.
Sua morte foi torturante. Real, ele diria. Torturantemente real. Seus sonhos não teriam comparação. Contudo, nada pôde superar a angústia de não ter Nene segura sob seus olhos. Ou ao menos ter alguma certeza de que ficaria bem. Se ao menos tivesse tempo para se despedir, mas isso era tão improvável quanto sua sobrevivência.
Nene morreu algum tempo depois, quando a embarcação começou a afundar. Havia desmaiado em determinado momento quando a tempestade começou a se hostilizar, após perder o equilíbrio e bater a cabeça em uma das paredes. Não vieram a seu socorro, e afogou-se lentamente enquanto dormia.
Como qualquer história trágica, esse poderia ser o ponto final. Mas quando se trata de lendas, a morte é apenas um ponto e vírgula em meio à frase. Afinal, amor e ódio foi o que sempre moveu espectros com pontuações mal colocadas em suas histórias, e Amane estava determinado a mudar aquele destino, custe o que custar.
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