Um pequeno garotinho andava um tanto sem rumo, havia se perdido de sua família ao irem buscar alimentos no reino vizinho e agora se encontrava ali, naquele local ermo com apenas uma casa que lhe parecia abandonada nass proximidades.
O garoto colocou suas mãos sobre sua barriga que doía e roncava ruidosamente, estava faminto. Não comia nada há dias devido as condições financeiras de sua família. Era somente um filho comum de uma família pobre que se perdera no mundo.
Infelizmente naquela época não era normal uma criança naquelas condições sobreviver sozinha. Por sorte sentiu o agradável cheiro de batatas assadas e seguiu seus instintos mais primitivos, ansiando por findar sua terrível e implacável fome que parecia corroer suas entranhas.
O garoto caminhou pelo local, dando a volta na casa e encontrando as batatas no beiral da janela, esfriando com o vento fresco do outono. Com rapidez, o garoto pegou uma delas em suas mãos e sentiu seus olhos lacrimejarem ao morder o alimento, uma enorme felicidade surgindo ao ter finalmente algo para comer.
A criança degustou como se fosse a melhor comida de sua vida, as lágrimas quentes escorrendo por suas bochechas sujas e infantis.
Contudo, seu infortúnio logo se fez presente, o dono da casa chegara e o pegara em flagrante. O terrível bruxo que assolava os reinos da redondeza era o morador daquele lugar.
Com firmeza, o bruxo agarrou-lhe as vestes esfarrapadas e o ergueu com facilidade. O garoto era tão magro e leve que nem ao menos teve dificuldade em movê-lo da forma que bem entendesse.
- O que pensa que está fazendo, pirralho? - questionou o bruxo sacudindo a criança com certa brutalidade, vendo-o arregalar os olhos assustado - não sabia que por esses lados tinham ratos de sua laia.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou o garoto assustado, seu corpo pequeno tremendo de medo, a figura a sua frente emanava um grande poder e lhe causava enorme temor apenas em estar perto dele.
- Hm... É uma boa pergunta... Talvez te use como alimento para algum dos meus animais de estimação... Apesar de que você é magro demais para isso... - o bruxo analisou o corpo pequeno do garoto, uma leve careta surgindo no rosto do ser temível.
- Espera, solte ele, por favor - uma voz esbaforrida ecoou se aproximando cada vez mais, o bruxo virou para trás encontrando um jovem homem loiro, com roupas tão ou mais esfarrapadas que a do garotinho - seja o que for que ele tenha feito, ele não o fez por mal.
- Ele comeu minha comida igual um rato traiçoeiro... Já sei qual será seu castigo, ratinho - comentou o mago rindo maléfico com a ideia que se passou em sua mente.
- Não faça isso, por favor, ele é só uma criança... Só estava com fome... Eu posso lhe pagar o que ele comeu...
- Não pode, olhe para você e para ele, pensa mesmo que eu acreditaria que você tem alguma condição de me pagar algo se não tem nem o que comer? - zombou o bruxo balançando o garoto - o que ele é seu?
- Ele é meu irmão mais novo... Por favor, deixe-o ir, ele não tem culpa...
- Posso até deixá-lo ir, mas quero algo em troca para compensar... Você ficará no lugar dele.
[...]
O loiro encarava a janela enorme, vendo as chamas que pairavam sobre a água dançarem como se zombassem de sua situação. O rapaz se levantou e andou pelo castelo, faziam poucos minutos que acordara ali naquele local estranho e solitário.
Seus passos ecoavam por todo o lugar, seus olhos procuravam uma saída. Ao chegar no ponto mais alto do castelo pode observar que o mundo ao redor era vasto e vazio, não havia nada além do lago incandescente e da terra a se perder de vista. Não haviam plantas ou animais nas proximidades, nem ao menos indícios de que existia vida além de si.
Um tanto confuso voltou a rondar pelo local, não sabia onde estava, nem como fora parar ali, estava sozinho e sem respostas, apenas se lembrava do bruxo tentar algo com seu irmão mais novo e não pensou duas vezes em aceitar a proposta do ser, trocando sua vida pela do irmão.
O loiro se lembrou de sua vida, pensando se seu irmão mais novo e seus pais estavam bem, não viviam com conforto, mas tinham sempre um ao outro para se alegrarem, a comida era escassa, entretanto o amor entre eles era abundante, além do sentimento intenso de proteção que o loiro adquirira com o nascimento do seu irmãozinho.
Eles eram próximos e nada os separava, o loiro faria tudo para que seu amado irmãozinho ficasse são e salvo, inclusive dar sua vida e seu sangue por ele, não teria feito nada diferente se pudesse voltar no tempo.
O rapaz estava com seus completos 18 anos, Marco era seu nome de batismo, era forte devido aos anos em que ajudara e trabalhara com seus pais para conseguir colocar comida na mesa de sua casa, também devido a isso se tornara alguém muito paciente e que não se deixava abater tão facilmente, principalmente pelas dificuldades que apareciam.
O loiro continuou com sua excursão pelo castelo, procurando a saída. Não demorou para chegar ao piso principal e encontrar a enorme porta de madeira.
Seus passos apressados o guiaram até lá a abrindo com brusquidão, seus olhos se focaram na ponte extensa e longa, em poucos segundos saia em disparada para a saída.
Contudo, ao passar seu corpo pela porta, as chamas que dançavam sobre as águas o recobriram, fazendo sua pele arder e queimar com o calor intenso. O grito desesperado do loiro ecoou, seu corpo agoniando em dor, queimando e ardendo, uma dor tão intensa que ele nunca antes havia sentido.
Seu corpo foi puxado para trás com violência, sendo jogado para longe da porta, caindo com brusquidão contra o chão duro.
- Vejo que acordou bisbilhotando, você não pode sair daqui, Marco, achou mesmo que eu deixaria um de meus brinquedos escapar tão fácil assim? - questionou o bruxo de forma retórica rindo e se abaixando para ficar na altura do loiro sentado - esse mundo é meu, eu o criei e tudo o que acontece, cada pedra fora do lugar, só existe porque eu permito que seja assim, se o deixei sozinho aqui foi porque tinha todo o controle desse lugar para te manter cativo.
- O que você quer de mim? O que ganha com isso?
- Apenas diversão, gosto de ver como humanos são frágeis e controláveis, a forma como enlouquecem, o desespero latente em seus olhos, a forma como desejam morrer em vez de continuar sofrendo - pontuou o bruxo dando um sorriso cínico - é assim que você pagará pelo erro de seu irmãozinho.
[...]
Marco permaneceu no castelo por longos meses, lutando consigo próprio para não enlouquecer naquele silêncio assustador, sentia-se constantemente observado e, até mesmo quando dormia, seu corpo despertava ao sentir o perigo eminente o rondar.
Não havia um único dia em que não pensasse em sua família, enquanto andava pelo castelo frio, olhando pelas enormes janelas o horizonte vazio.
Desejava ardentemente que ao menos o que estava passando ali mantivesse sua família bem, livre dos perigos que o bruxo representava. Era uma estranha tortura estar sozinho e ao mesmo tempo não estar, podia sentir o poder do bruxo em seu entorno, os olhos maldosos o vigiando dia e noite, querendo vê-lo enlouquecer e sucumbir.
Estava à beira da exaustão, quase não dormia a noite por sempre estar atento ao que acontecia ao seu redor, sua mente também não facilitava o seu descanso, criando teorias e questionamentos sobre o bem-estar de sua família. Nem ao menos sua paciência e perseverança pareciam fortes o bastante depois de tanto tempo naquela terrível situação.
Com o tempo passou a conversar sozinho, tentando de alguma forma se autoconsolar, dizendo para si próprio que estava tudo bem, que não havia nada a temer, que sua família estava sã e salva.
Contudo, a voz da incerteza sempre vinha lhe atormentar, os diversos "e se" rodeando sua mente, as suposições terríveis invadindo seus sonhos, transformando-os em pesadelos horripilantes.
Estava lentamente a sucumbir, olhando com afinco para a porta, pensando se haveria um limite naquele mundo criado pelo bruxo, se em algum momento aquela dimensão tinha um fim a qual passada retornaria para sua vida. Pensava se sobreviveria com seu corpo em chamas até encontrar o limite.
O som de passos e da risada do bruxo se aproximando fez o loiro se colocar em atenção e direcionar seus olhos irritados para o ser que sorria com escárnio, o olhar debochado brincando na face nefasta.
- Ainda está pensando em uma forma de fugir? - perguntou o bruxo andando um tanto sem rumo pelo castelo, ora ou outra voltando suas orbes para o loiro que nem ao menos se deu ao trabalho de responder - não acredito que você tenha mais motivos para fugir daqui, não há mais ninguém para você voltar.
- Como? - questionou o loiro fechando as mãos em punho sobre seu colo, tentando não cair naquele suposto jogo do outro, não podia acreditar que aquelas palavras significavam algo além de uma tentativa de enlouquecê-lo, de fazê-lo ruir.
- Não me faça repetir, você entendeu o que quis dizer, Marco... Você não tem mais para onde voltar, não tem uma família - afirmou o bruxo movendo suas mãos e tudo ao redor se modificou, mostrando uma cabana em chamas, três corpos carbonizados espalhados pelo chão, o loiro sentiu seus olhos se encherem de lágrimas ao perceber que aquele era seu lar e aqueles corpos tinham o mesmo tamanho de seus pais e de seu irmão - não precisa mais sonhar em fugir daqui, pode continuar sendo meu brinquedo pelo resto de sua miserável vida, não é maravilhoso?
Em poucos segundos o castelo voltou a ser o cenário em que estavam. O corpo do loiro parecia estático, sua mente ainda se recuperando daquele intenso choque em ver as pessoas que mais amava carbonizadas, todo o seu mundo interior ruiu naquele momento, tudo o que acreditava lentamente perdeu o sentido conforme assimilava aquelas informações dentro de si.
As lágrimas quentes e de luto escorriam lentamente, caindo de uma a uma por seu rosto pálido e chocado, seu corpo tremia em desespero e agonia, a tristeza da perda se tornando cada vez mais aparente, atravessando seus poros, dominando todo seu ser.
O loiro fincou seus dedos contra o chão, seu corpo não sabia como reagir aquilo, não sabia se ficava furioso, triste ou revoltado, se choraria ou tentaria fugir mais uma vez, sua existência ali não tinha mais uma motivação, viver já não tinha mais sua razão de ser, não quando todos que o sustentavam são estavam mortos.
Em pura cólera, o loiro olhou em direção a porta, seu corpo se levantou praticamente sozinho, naquele momento tudo o que mais pensava era em poder confirmar o que havia visto, poder ter a certeza de que aquilo fora real e não só uma alucinação criada pelo bruxo.
Seus pés se direcionaram para a saída, correndo o máximo que podia, ao atravessar o batente, o fogo envolveu seu corpo por completo, queimando a pele, fazendo-a arder como se estivesse no próprio inferno. A dor física era agoniante, mas não mais que a dolorosa sensação interna de perder tudo que lhe era mais precioso, não mais que aquela incerteza agoniante que o bruxo instalara dentro de si.
Poucos passos foram dados para fora do castelo antes que o bruxo o puxasse de volta, afastando o fogo de seu corpo queimado, a pele em carne viva, avermelhada, o sangue escorrendo por cada canto.
- Finalmente, achei que nunca fosse quebrar assim - comentou o bruxo tocando no rosto do loiro, seus toques fazendo a região queimar e doer, como se em seus dedos tivessem chamas que tornavam a queimá-lo - é tão belo essa agonia em seus olhos, essa dor, você não sabe a alegria que me dá em ver um humano como você cair em desgraça.
As lágrimas do loiro escorriam por seu rosto em carne viva, ardendo por onde a trilha úmida passava, a respiração dolorosa saindo dos lábios sangrentos, sons agoniantes rasgando sua garganta.
- Você parece não ter mais medo do fogo, não é? Mas não posso deixá-lo se matar dessa forma, vou transformar suas queimaduras em sua chama interna, algo que te impeça de tentar se matar com o fogo, não seria nada agradável ter que procurar outro brinquedo tão excepcional - pontuou o bruxo dando um sorriso cínico - tenha bons pesadelos, Marco.
[...]
Quando o loiro acordou depois daquele momento, tudo estava diferente, sua visão estava alargada e estranha, seu corpo parecia mais pesado e duro. Ao virar o rosto pode perceber que seu corpo estava escamado e azulado, já não mais ardia ou doía como antes de desmaiar, contudo, sua dor interna ainda estava tão viva quanto nunca, queimando-lhe por dentro.
Ao relembrar-se de tudo, entrou em uma cólera intensa, movendo seu corpo com força contra as paredes, chocando sua cauda contra as pedras que nem ao menos se moviam, tentou enfiar seu focinho pela porta, mas não conseguia passar devido ao seu enorme tamanho, as chamas do lado de fora lambiam seu nariz o fazendo cócegas e o loiro espirrou, vendo o fogo sair de suas narinas.
Com irritação se afastou da saída, tornando a golpeá-la, sem sucesso. Suas patas e cauda se chocavam com as paredes, mas nada mudava.
Logo as palavras do bruxo voltaram em sua mente, relembrando da forma como ele dissera que o mundo ao seu redor só se modificava quando ele permitia, nada que Marco fizesse poderia causar qualquer transtorno ao castelo, somente se o bruxo assim o quisesse.
Mesmo assim o loiro continuou a golpear o local, tentando descontar sua raiva, dor e luto contra aquele lugar que o aprisionava e o mantinha sem escolhas, arrancando-lhe tudo, até mesmo o sentido de existir.
[...]
Passaram-se longos anos naquela situação. Aos poucos o loiro se acostumou com sua forma dracônica e sua dor, apesar de ainda presente, havia se aplacado, na realidade estava apático com tudo, não havia muito a se fazer ali além de esperar que sua morte chegasse uma hora ou outra, ou que o bruxo aparecesse para lhe atormentar ou enlouquecê-lo.
Já fazia um bom tempo desde que o bruxo aparecera, Marco acreditava que era por se mostrar tão apático e sem reação que o ser vil perdera o interesse em incomodá-lo.
Havia perdido qualquer motivação, passava os dias deitado, bufando suas chamas para passar o tempo, olhava para o horizonte esperando que um dia seu fim chegasse.
Foram longos e entendiantes anos de solidão, nem ao menos o bruxo aparecia para modificar sua rotina, até o dia em que outra pessoa surgiu ali, trazido pela vil criatura que o amaldiçoara daquela forma.
Marco observou o rapaz moreno desmaiado no chão do castelo, o rosto jovem lhe fez questionar quantos anos de sua mocidade havia perdido ali trancafiado naquela dimensão, transformado em um dragão, já nem ao menos sabia quanto tempo havia passado naquele lugar.
- Trouxe um companheiro para você para animá-lo, espero que vocês se dêem bem - comentou o bruxo rindo em escárnio - espero que não tente me desmentir, Marco, você sabe que não há forma de fugir de minhas maldições, mas seu novo amiguinho não faz ideia disso, tenho certeza que ele acreditou na baboseira sobre o "beijo do amor verdadeiro", ele é tão jovem e imaturo.
- O que você ganha com isso? Qual a graça em enganá-lo dessa forma? - questionou o loiro bufando e voltando seus olhos para o rapaz inconsciente.
- Você é sempre tão sem graça, não consegue ver o quão divertido é fazê-lo sofrer? O quão prazeroso é ver suas reações de dor e tristeza, ver a ruina humana nascer bem diante de meus olhos. A propósito, seu novo amigo se chama Ace, ele é um príncipe, não acha irônico? Como naqueles contos de fada ridículos que vocês humanos inventam, um príncipe trancafiado em um castelo protegido por um terrível dragão.
[...]
O loiro ficou encarando o rapaz inconsciente por longos minutos, esperando que ele acordasse, achando um tanto estranho os lábios do moreno se tornarem levemente arroxeados. Seu focinho tocou o corpo do moreno notando que ele estava frio, uma temperatura muito abaixo da esperada para o corpo humano.
O loiro segurou a roupa alheia com seus dentes e o encostou em seu corpo quente, o ar de suas narinas aquecendo o rapaz. Os olhos de Marco ficaram atentos ao moreno, observando se seu corpo reagia de alguma forma ou se despertaria em breve.
[...]
Longos dias se passaram até que o príncipe acordasse e começasse a vasculhar o local, até encontrar o dragão que o observava em curiosidade.
O loiro estava intrigado com aquela nova presença, achando curioso a forma como o rapaz o encarava e depois direcionava seu olhar para a porta.
O rapaz passou com cautela em frente ao loiro que o acompanhou com o olhar, processando lentamente o que ele pretendia fazer. Ao notar que o príncipe estava se direcionando para a porta, o dragão se lembrou de tudo o que passara ao sair e o afastou de lá, não queria que um rapaz tão novo quanto o moreno se colocasse em risco sem que pudesse intervir.
- Você não pode sair, as chamas vão te ferir - explicou o loiro, mas o moreno nem ao menos lhe deu importância, voltando a se dirigir para a saída.
Continuaram naquilo por longas horas, o moreno tentava de todas as formas passar para fora, até mesmo tinha escalado por suas escamas e contado histórias sem sentido apenas para distraí-lo, o loiro ouvia tudo e voltava a lhe explicar como as coisas funcionavam ali, sem sucesso algum, era como se estivessem falando línguas totalmente distintas, como se o príncipe nem ao menos ouvisse sua voz.
Em determinado momento daquela convivência, o príncipe começou a tentar lutar contra o loiro que nada fez, achando até mesmo certa graça na forma enérgica e imprudente com que o rapaz parecia não notar o perigo que estava ao seu redor, nem o fato de que se Marco quisesse poderia matá-lo sem pestanejar.
- Você é tão irritante - grunhiu o moreno socando sem parar as escamas duras - eu quero voltar para casa, quero minha família, você não entende? Só me deixe ir embora - choramingou o príncipe deixando seu corpo lentamente deslizar até o chão, se apoiando nas escamas azuladas enquanto ainda o socava - eu quero voltar a ser livre, quero ver meus irmãos, meus pais... Por que não consegue me entender?
- Eu te entendo, Ace, mais do que imagina, mas não há como fugir, entenda isso - pediu o dragão abaixando a cabeça para ficar mais perto do moreno, vendo as lágrimas do rapaz escorrerem por seu rosto, o coração do loiro doendo ao entender como era aquela sensação angustiante de desoladora - também queria voltar a ser livre...
[...]
Os dias e meses foram se passando com aquela convivência forçada, o loiro achava cada vez mais engraçado a forma como o moreno passou a falar sobre sua própria vida, reclamar sobre o castelo, sobre estar trancafiado, contar sobre alguma aventura qualquer, implorar para que o dragão lhe permitisse fugir. Marco estava cada vez mais motivado a querer se libertar ao ver a determinação do príncipe em sair.
Seus dias solitários naquele castelo frio foram se tornando mais vivos e quentes com o príncipe enérgico, imprudente e briguento que xingava e reclamava para Deus e o mundo, que falava até mesmo com as paredes, além de sempre tentar confrontá-lo, seja com palavras ou com seus punhos.
Contudo, um dia aquela rotina com o príncipe fora quebrada com o aparecimento de um cavaleiro todo revestido em armaduras e que enfureceu o dragão, principalmente ao notar que era sua aparência humana ali e por saber que ninguém chegaria naquele lugar além do próprio bruxo.
O que o deixou mais irritado ainda foi o fato do bruxo ter até mesmo usurpado seu nome e estar se passando por si, apenas para enganar o rapaz, para dar esperança de que sua maldição poderia ser quebrada somente para retirá-la bem debaixo de seu nariz.
Nem mesmo a ferida que o bruxo lhe causara o irritou mais do que ter sua identidade roubada, do que ter perdido sua humanidade para aquela vil criatura que se divertia com o sofrimento humano, moldando aquela dimensão ao seu bel prazer, apenas para enganar o jovem príncipe, fazê-lo acreditar que Marco estava lhe prendendo ali, impedindo que seu cavaleiro de armadura reluzente o resgatasse como nos contos de fada que seus pais lhe contavam quando criança.
O loiro colocou seu rosto em frente ao do bruxo, seus olhos raivosos se chocando com os do bruxo.
- Eu deveria te matar agora - ameaçou o dragão bufando em irritação.
- Você pode tentar, mas saiba que se o fizer sua única chance de se livrar de sua maldição morrerá comigo, assim como a dele.
O loiro avançou em fúria, pegando a espada do bruxo entre seus dentes e a partindo com violência, logo o ouviu se dirigir ao príncipe com palavras e promessas falsas sobre voltar para salvá-lo.
Seu coração se comprimiu em seu peito ao ver o rapaz chorar novamente, ainda mais ao saber que ele estava chorando por algo que nem ao menos era real, por uma ilusão fantasiosa criada pelo bruxo.
Marco queria tanto que o rapaz lhe entendesse, queria o abraçar e consolá-lo, dizer que compreendia sua dor e sua confusão, que entendia o quanto estava perdido e esperançoso em poder fugir e voltar a sua vida normal.
Contudo, nada que falasse parecia chegar aos ouvidos do jovem príncipe.
[...]
O dragão sentiu uma enorme tristeza e dor o assolar, tanto física quanto emocional. Estava exausto, destroçado, seu corpo estava ferido, seu sangue escorria e manchava o chão do castelo, as palavras que o príncipe dirigira a si fincaram em seu interior assim como a espada cravada próximo ao seu ombro.
Marco estava cansado, não tinha mais forças para se manter ali, estava abatido e sem esperanças, tentara ao máximo fazer o rapaz lhe escutar, tentou protegê-lo de todas as formas, abrir seus olhos para as mentiras e encenações do bruxo, mas de nada adiantou, agora estava tão ferido que qualquer movimento, por menor que fosse, doía intensamente.
Sua cabeça repousou sobre o colo do príncipe, as gotas quentes das lágrimas do moreno caindo sobre sua pele escamosa, seus próprios olhos marejando ao ver aquele rapaz tão quebrado e ruindo como ocorrera a si próprio tempos atrás.
Era tão vívida a memória de quando se encontrara naquele estado que podia sentir a dor reflorescer em si.
Quando a espada lhe foi retirada, a dor fora tão intensa que nem ao menos conseguia compreender totalmente o que o rapaz falava para si, nem ao menos o que o bruxo dizia.
Apenas seus olhos tentavam compreender o que estava acontecendo ao seu redor, as vozes se embaralhando em sua mente, sem fazer qualquer sentido, todas as palavras sendo suprimidas pela dor lancinante em seu corpo.
Quando notou o príncipe direcionar a espada para o próprio peito percebeu o que ele estava tentando fazer e se adiantou, tirando a espada do moreno com sua cauda.
O fato de perceber que a liberdade do rapaz parecia tão importante para si a ponto de preferir a morte fez com que algo dentro de Marco se reacendesse, instigando-o a não desistir naquele momento, tentaria ao menos lutar contra o bruxo, mesmo que sua maldição continuasse, ficaria satisfeito em matá-lo com suas próprias garras e dentes.
Ao menos assim se libertaria daquele ser vil que só os fazia sofrer e que o havia colocado naquele papel esdrúxulo de vilão, fazendo o jovem príncipe acreditar que sua forma de protegê-lo era para confiná-lo.
[...]
Os sons dos passos e da voz do príncipe se tornaram uma constante depois que matara o bruxo, colocando um fim a maldição de ambos. Infelizmente o loiro não possuia forças para mover seu próprio corpo, apenas podia sentir a luz do Sol entrar pela janela e bater em seu rosto, as mãos dos médicos trocando suas ataduras e passando os remédios necessários, ouvir a voz do príncipe falando consigo e contando seus dias.
Pouco antes de sentir a luz do Sol sumir, a porta se abria e Marco escutava o rapaz se aproximar, o som da madeira rangendo quando ele sentava ao seu lado, a voz vez ou outra tremulando enquanto comentava sobre seu dia e pedia, muitas vezes implorava, para que o loiro permanecesse vivo e acordasse.
Marco sentia cada pedido chegar aos seus ouvidos em um tom dolorido, podia sentir o desespero e a dor do rapaz em sua voz, o tom choroso que ele tentava disfarçar, talvez em uma tentativa de ser positivo e esperançoso, como se de alguma forma fosse ajudar na recuperação do maior.
O loiro tentava abrir os olhos, tentava mover seu corpo, mas ele não parecia o obedecer, independente do quanto se esforçasse, independente de quanto tempo passasse, de quantas vezes sentisse o Sol nascer e se por pela janela.
Ouvia os médicos sugerirem para que o moreno desistisse, que já havia passado meses naquele coma e que as chances de acordar eram ínfimas, quase impossíveis. Entretanto, todos os dias, pouco antes do Sol se por, o príncipe retornava, iniciando um monólogo com o homem, ora ou outra algumas lágrimas e pedidos de desculpas atingiam a pele do loiro.
Era agoniante não poder falar com o rapaz, não conseguir explicar a ele que estava bem e vivo, como se ainda estivesse amaldiçoado como dragão e suas palavras não o alcançassem.
Contudo, o moreno parecia o entender dessa vez, mesmo sem palavras não parecia desistir de si, estava esperançoso de que Marco acordaria e aproveitaria a liberdade consigo.
Certo dia a porta se abriu e o loiro estranhou o fato de não sentir o Sol contra seu rosto, o dia ainda não havia amanhecido e não era nem um pouco comum que Ace o visitasse após o anoitecer.
Até pensou que pudesse se tratar de outra pessoa, mas com o tempo passou a reconhecer o som dos passos do rapaz, a forma única como a madeira rangia com seu peso.
- Marco... Eu... Tive um pesadelo... - murmurou o moreno ao se sentar ao lado do corpo inerte - devo parecer estúpido vindo aqui por causa de uma bobagem dessas... Se importa se eu dormir com você essa noite? - questionou o rapaz que ficou em silêncio por alguns segundos, como se realmente esperasse uma resposta do loiro - no meu pesadelo... Você nunca mais acordava... Eu fiquei tão triste, tão desolado... Quando acordei percebi que estava chorando... Sinto como se ainda fosse uma criança tendo pesadelos e indo dormir com os pais - comentou o moreno se deitando ao lado do loiro e soltando uma risada fraca e nasalada - devo parecer um idiota assim, mas não consegui dormir depois disso... Não com a ideia de que você não acordaria nunca mais tão presente em minha mente.
O príncipe apoiou seu rosto no ombro do loiro e passou seus braços pelo tronco do maior, seus olhos se fechando suavemente, sua respiração ficando mais tranquila conforme entrava no mundo dos sonhos.
O loiro sentiu-se profundamente tocado pela forma como o rapaz fora lhe procurar naquele momento, a maneira com que seu corpo quente se enroscara ao seu e como dormira tão serenamente ao estar ao seu lado.
Um calor reconfortante se instalou em seu corpo e o loiro usou toda a força que podia para mover seu braço, passando-o pelas costas do príncipe e a repousando sobre o ombro do rapaz.
Quando o Sol tornou a nascer, os raios entrando pela janela aberta junto ao vento fresco, o loiro sentiu suas pálpebras tremerem e lentamente conseguiu abrir seus olhos, piscando-os em seguida, tentando se acostumar com tanta luminosidade em seu entorno.
A respiração do príncipe em seu pescoço o fez abaixar o rosto para fitá-lo, vendo-o dormir tranquilamente sobre si. Um pequeno sorriso se desenhou na face do loiro e sua mão se moveu lentamente até os fios negros do rapaz, ainda era um pouco difìcil para si se movimentar, mas aos poucos se tornava cada vez mais fácil.
- Obrigado por não desistir de mim, Ace - falou o loiro enquanto mantinha as pequenas carícias nos fios negros - agora posso viver por mim, livre como você tanto desejou.
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