Quando Eren chegou à residência Smith, deduziu pela ausência de ruído que o meio-irmão e a família ainda não tinham chegado. Isso permitia uma pequena margem para se mentalizar para o jantar que teria pela frente. Apostava na vontade de Erwin e Louise em monopolizar a conversa para distanciar as atenções dele, mesmo que Zeke encontrasse sempre forma de o fazer sentir desconfortável.
O primeiro filho de Grisha, fruto do primeiro casamento, podia nunca ter gostado da segunda esposa do pai, mas desde que começou a guardar memórias, Eren nunca se sentiu confortável na presença do meio-irmão. O Alfa que mal disfarçava o desdém por Carla e sorria de uma forma tão frequente e perturbadora na direção de Eren que ele evitava e/ou fugia de qualquer gesto que poderia ser visto como tentativas de afeto.
Anos mais tarde, Eren viria a descobrir que aquela falta de ligação entre eles, apesar de partilharem o mesmo pai, não era somente uma implicância. Infelizmente, o moreno descobriu da pior forma que Zeke desde que o viu pela primeira vez, enfiou na cabeça que o meio-irmão lhe pertencia por direito. Uma espécie de compensação por ter destruído a família dele, já que o Alfa nunca se conformou por Grisha se ter divorciado da mãe.
Pior do que isso, só quando Zeke disse diretamente ao meio-irmão adolescente que nem seria assim tanto sacrifício assumir a responsabilidade por ele, dado que Eren nunca foi e nem era de se deitar fora.
O nojo que Eren sentiu nesse dia não cabia em palavras.
Portanto, após o acidente, sabendo que precisaria de um Alfa como tutor, a ideia de ficar dependente do meio-irmão era no mínimo repulsiva. Mesmo que Zeke praticamente o tenha vendido aos Smith, a verdade é que Eren quase implorou a Reiner para não o deixar voltar para casa. Pediu para não o deixar ir viver com Zeke, ao que Reiner respondeu que naturalmente como namorado dele, não deixaria outro Alfa assumir essa responsabilidade.
Na época, foi invadido pelo alívio e gratidão.
Agora, a cabeça dele estava um caos com os acontecimentos recentes.
Em vez de pensar na traição, estou de novo a pensar naquele Alfa. Tocou nos lábios, recordando os beijos. Sendo mais honesto, focava no beijo mais intenso que trocaram e que ainda provocava um frio na barriga só de lembrar os gemidos de ambos e as sensações que julgava não ser capaz de sentir. Passou daquele cuidado e carinho para uma coisa tão intensa e, no entanto, não veio a repulsa que tantas vezes sinto com estas coisas. Acho que… acho que foi a primeira vez que quis uma coisa assim.
Cobriu os olhos com o braço, estando deitado na cama e mordendo o lábio inferior.
– Não devia, mas… – Lambeu os lábios. – Quero estar de novo com aquele Alfa… – Acrescentou numa voz sussurrada para o vazio do quarto.
Era a expressão verbal dos instintos que se agitavam só de pensar no Alfa, cujo tom de comando corria dentro dele, impedindo que sentisse as feromonas de que tanto gostava. Como posso esquecer tudo isto, se ainda nem compreendo como tivemos o mesmo sonho? Os mesmos locais, as circunstâncias que se completam quando nos encontramos. Nunca acreditei em nada sobrenatural, mas não sei se aquela conversa das estrelas, no fim de contas, pode ser real. Se for, este Alfa apareceu na minha vida por um motivo. De uma forma que não pode ser explicada pela razão, alguém ou alguma coisa decidiu que os nossos caminhos se deviam cruzar. Como posso ignorar isso? Como é que uma coisa dessas pode ser errada, se com ele sinto todas aquelas coisas?
– Eren?
A voz acompanhada pelas feromonaz do pequeno Alfa fizeram com que regressasse à realidade. As batidas cuidadosas na porta ecoaram no silêncio do quarto e ao mesmo tempo que sentou na cama, o Ómega respondeu:
– Podes entrar, Falco.
– Desculpa incomodar…
– Nunca incomodas. – Assegurou o moreno com um pequeno sorriso, escutando o encostar da porta e os passos cautelosos. – Pareces nervoso. – Deduziu pelas feromonas do pequeno em que agora que estava dentro do quarto, as emoções de maior agitação ficaram bem mais presentes.
– O meu mano Armin disse que vamos ter visitas. O teu irmão Zeke e…
– As pestes dos filhos que tem. – Concluiu Eren, entendendo de onde vinha aquela postura tão pouco tranquila e diferente do que costumava sentir do menino de seis anos, que sorriu um pouco quando viu o Ómega fazer sinal para subir na cama e sentar ao lado dele. – Vais ter que evitar que o Andreas te use como o cavalo de estimação de novo.
Não precisava ver para saber que Falco se teria encolhido com essa recordação. Também não ajudava saber que os irmãos pouco ou nada fizeram para interromper a humilhação, sobretudo Reiner que riu para mais tarde repreender e dizer que devia “fazer-se homem”.
Esse momento gerou mais uma discussão entre Eren e o Alfa que dizendo não rir mais do tema, pediu desculpa ao moreno que na verdade, não ouviu ou detetou sinceridade na voz.
– Já pensei em dizer que tenho dor de barriga. – Admitiu com embaraço.
– E vais deitar sem comer?
– Sim.
O Ómega pôs a mão sobre a cabeça do pequeno, afagando os cabelos e sentindo que no momento seguinte, o Alfa o abraçava.
– Não podes ficar assim, Falco. – Murmurou o moreno.
– Mas eu não gosto daqueles Alfas. – Disse com a voz abafada contra o moreno.
Outra batida na porta e mesmo antes de entrar, Eren já sabia quem era. Sabia que teria dispensado Amane para os preparativos, dizendo que se encarregaria de falar com o moreno, quando era perfeitamente consciente que isso era a última coisa que o Ómega queria.
– Mimas demasiado o meu irmão e por isso, quando deve, não se impõe como deveria.
– Queres mesmo falar sobre isso? – Questionou Eren. Uma voz áspera, não escondendo o quanto não gostava da presença daquele Alfa ali. – Queres que eu refresque a tua memória?
O sorriso do loiro vacilou um pouco antes de olhar para o irmão mais novo e dizer:
– Vai descendo. O pai quer falar contigo e eu e o Eren descemos em seguida.
– Ok… – Murmurou Falco desanimado. – Até já. – Sussurrou ao Ómega que apertou um pouco a mão do pequeno Alfa antes de este sair.
– Com medo que revelasse ao Falco a verdade?
– E que verdade seria essa? – Perguntou loiro, retomando um sorriso que mesmo sabendo que o moreno não conseguia ver, não podia evitar.
Graças à desculpa de vir buscar Falco, conseguia por fim, trocar algumas palavras com Eren.
– Que eras igual ou pior do que ele com essa idade. – Respondeu o Ómega com a rispidez a demarcar cada palavra, mas também com uma ponta de ironia incapaz de disfarçar. – Ele pode só lembrar de ti com essa postura “exemplar”, mas a verdade é que vivias agarrado às saias da tua mãe, a chorar com medo da própria sombra e inclusive, escondias-te atrás de mim, o Ómega, esta dinâmica de classe inferior.
– Vês como afinal de recordas de mim? – Perguntou Armin. – Sempre a agir como se fôssemos dois desconhecidos, ainda que tenhas umas memórias um pouco distorcidas. Pergunto-me se será uma das sequelas do acidente.
– Vai pra puta que te pariu.
Silêncio tenso antes de escutar os passos a aproximar-se e via a silhueta do Alfa parar na frente dele. Os instintos para reagir com violência começavam a manifestar-se e foi incapaz de esconder o rosnar.
– Pensei que a convivência com a minha mãe tivesse melhorado a tua linguagem, mas…
Eren levantou da cama, empurrando o loiro que não esperava a reação e quase se desequilibrou.
– Vai ameaçar quem tenha medo de ti, eu não sou um desses casos. Tu podes não aceitar, mas para mim, tu morreste, Alfa nojento.
Dizendo isso, saiu do quarto e quase esbarrou em Jean.
– Está tudo bem?
– Estaria melhor se tu também desaparecesses! – Respondeu Eren, passando pelo corredor e indo na direção das escadas, preferindo o martírio de ter que receber o meio-irmão e a família do que permanecer no mesmo espaço que Armin e Jean.
Por vontade própria, preferia também fingir estar doente e nem sair do quarto, mas isso vai trazer-me outras consequências como não poder sair amanhã. Estou farto disto… de ter que escolher entre uma coisa má e outra pior.
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Pode não ter sido o meu melhor momento de autocontrolo, mas isto já era demais, mesmo para mim. Concluiu o Alfa de cabelos negros, passando mais água no rosto e confirmando que teria que aguardar mais uns minutos antes de ponderar descer para passar pela cozinha e perguntar a Pieck, onde encontrar um “ingrediente” específico.
Produtos de limpeza tinham os seus limites e também químicos excessivos.
Pensando em formas de mitigar o efeito de feromonas, nomeadamente o aroma forte que Alfas deixavam para trás, lembrou das folhas de uma árvore específica que a mãe usava.
– Hei! Alfa que gosta de limpezas!
A voz de Isabel. O que veio aqui fazer? Pensei que não veria ninguém até à hora em que fossem encerrar o café. O Alfa fechou a torneira e respirou fundo antes de abrir a porta e sair, fechando-a atrás dele e vendo a ruiva erguer uma sobrancelha ao vê-lo.
– Estás a fingir que estás a limpar?
– Ainda não comecei. – Admitiu. – Precisam de alguma coisa? Um daqueles Alfas voltou?
– Estás aqui há um tempo sozinho. Se não estás a trabalhar, o que estavas a fazer?
– Queres detalhes sobre o que faço na casa de banho?
A ruiva semicerrou um pouco os olhos, avançando até o Alfa com uma expressão de que suspeitava de algo. A porta estava fechada atrás dele, mas quanto mais próxima a Ómega estivesse, mais explicações teria que dar. Honestamente? Preferia não ter essa conversa.
Levi não conseguia ver um cenário em que não fosse mal interpretado.
– As tuas feromonas estão um pouco mais fortes que o normal. – Afirmou Isabel, cruzando os braços. – Dizes que ainda não começaste, mas estás corado. Estás a suavizar as feromonas, mas est… – Pausou. – Mentiroso!
– Mentiroso? – Repetiu o Alfa confuso.
Isabel apontava com o dedo quase na cara dele.
– Mudaste de assunto, mas aconteceu sim qualquer coisa aqui entre ti e…
– Vamos baixar o tom de voz. – Sugeriu Levi.
– Tenho razão! Era isso ou acreditar, assim como pensava e não tenho a certeza que devo descartar, que és um tarado depravado que bate uma durante o horário laboral.
– Porque estamos a ter esta conversa? – Perguntou o Alfa quase de forma retórica, ainda que admitisse que era ingénuo pensar que poderia disfarçar as feromonas na frente de um Ómega. Assim como os Alfas, os Ómegas também eram muito mais sensíveis aos cheiros e às nuances que as feromonas possuíam.
– Porque o sonho de ver o Reiner com chifres finalmente é real e porque se estás assim depois de ele ter saído é porque ficaste aí com as hormonas aceleradas, mas soubeste controlar na frente dele, certo?
Levi suspirou.
– Certo.
– Ainda bem, caso contrário, iria ocorrer uma castração com as minhas próprias mãos. – Afirmou a ruiva com tanta tranquilidade que o Alfa não diria que se tratava de uma ameaça vazia. – Posso não suportar o Reiner, mas isso não é carta branca para qualquer um se aproveitar do Eren.
– Jamais faria uma coisa dessas. – Afirmou o Alfa, vendo que apesar da expressão ainda um tanto desconfiada, não desmentia as palavras dele. – No entanto, já que vieste aqui, será que podes ajudar com uma coisa?
– Se me disseres que queres ajuda para limpar essa casa de banho que deve feder a feromonas indecentes, podes esquecer. – Disse Isabel, cruzando os braços.
– Na verdade, era para te perguntar, se por acaso sabes onde posso encontrar folhas de eucalipto. – Esclareceu, vendo um erguer de sobrancelhas da Ómega. – Se há algum lugar onde possa ir buscar ou que as venda.
– Por acaso tenho em casa um saquinho com essas folhas, embora seja para manter afastados os mosquitos, sobretudo quando vou acampar. – Comentou em tom pensativo e mantendo os braços cruzados.
– Achas que me podes dar algumas? Ajuda a dissipar o aroma forte de feromonas sem ser tão agressivo como são outros produtos químicos, aliás, sugiro usar isso também lá em baixo por causa das feromonas dos outros Alfas.
– Vais pendurar as folhas aí dentro e esperar por milagres?
– O ideal é colocar as folhas em água bem quente, a ferver, e isso ajuda a espalhar o cheiro do eucalipto. – Fez uma pequena pausa. – A minha mãe usava isso como uma espécie de difusor natural para purificar o ar do cheiro forte a feromonas que vinham sobretudo de Alfas.
Após uma breve reflexão, a ruiva descruzou os braços, dizendo que ia a casa e que no entretanto, Levi deveria tentar fazer aquilo que era pago: limpar. O Alfa apenas esboçou um pequeno sorriso e agradeceu à pimentinha que revirou os olhos antes de sair.
Quando viu a amiga ir novamente ao andar de cima, sabendo que só poderia ter como objetivo confrontar Levi pelo que poderia ter acontecido para estar com Eren lá em cima sozinho, Annie não esperava que a ruiva reaparecesse, dizendo que precisava sair e ir a casa buscar algo essencial para lidar com as feromonas problemáticas pelo ar. Não imaginava como teria sido a conversa com Levi, mas pelos vistos o conceito de “conflito” não esteve presente da forma como Annie temeu que viesse a acontecer.
Isabel regressou com um pequeno saco e foi direta para a cozinha, onde saiu com pequenas taças que teriam sido decoradas com flores por Pieck, mas cujo foco era o aroma de libertavam: eucalipto.
– Ideia do Levi? – Perguntou Annie.
– Sim. Eu pensava que só servia para afastar os mosquitos, mas parece que tem razão, o aroma das feromonas insuportáveis começa a desaparecer. – Comentou Isabel ainda com uma das taças na mão.
– Sei que usa estes vapores para quando estamos doentes com congestão nasal e afins, nunca tinha pensado em usar para isto. Vais levar esse para onde? – Questionou, referindo-se à taça que a ruiva segurava nas mãos.
– Ele precisa de uma destas lá em cima.
Annie fez um ar surpreso.
– O que foi que ele disse que aconteceu?
– O suficiente para mexer com as hormonas dele, portanto, lamento, mas nem tu nem ele vão escapar de responder a perguntas minhas. Vou só esperar pela hora de encerramento e depois vamos ter uma conversa sobre coisas que andam a acontecer por aqui.
Valentina e Christa trocaram mais um olhar ao ver que mais uma vez, Isabel ficava a falar mais um pouco com Annie antes de desaparecer de novo para o piso superior, onde elas sabiam que estava Levi. Sabendo como a ruiva tolerava mal a presença do Alfa, as duas não podiam evitar o aumentar da curiosidade que só atingia novos níveis, quando viam que Galliard também não aparentava estar curioso com o que estava a acontecer.
Nada disso era normal e por isso, nem se surpreenderam tanto assim quando após o encerramento e Christa ter dito que não precisavam de ajuda nas limpezas e por isso, dispensado a presença de Ymir, que Isabel tivesse dito para alguém ir chamar Levi porque todos precisavam de ter uma boa conversa.
– Estou a morrer de fome e cansado, Isabel. – Reclamou Galliard. – Aposto que não é nada de tão importante.
– És dos maiores suspeitos para falar porque agora és super amiguinho do Levi. – Acusou a ruiva, vendo que Annie regressava na companhia do Alfa de cabelos negros que se surpreendeu ao ver os colegas de trabalho reunidos, aguardando a chegada deles. – Muito bem, estamos todos. – Olhou para Levi. – Podes começar a falar.
– Sobre…?
– Não te faças desentendido. – Acusou Isabel. – Fica sabendo que não tens perfil para fazer de inocente.
– Isto parece um interrogatório policial e não sei se há razão para tanto. – Comentou Pieck.
O som de um estômago faminto, além de Galliard, soou mais alto do que o pretendido devido ao momento de silêncio de Levi que refletia sobre como e o que responder ao que Isabel pretendia saber. Portanto, aquela interrupção inesperada, era mais do que bem-vinda.
O rosto de Valentina ficou bem mais vermelho.
– Desculpem, mas não como há horas.
– Se é assim, vamos para casa. – Afirmou Isabel. – E já que fui massacrada porque te excluí do convite do nosso último jantar, vou redimir-me ao estender o convite para vires connosco. Na verdade, não é um convite e sim, uma exigência.
– Isabel, deixa de ser convite quando passas a obrigar que ele vá. – Lembrou Galliard.
– Nem tentes defender o teu amigo. – Retrucou a ruiva, olhando para o Alfa de cabelos negros. – Como é? Vais recusar o meu gesto de simpatia?
– Eu não chamaria de gesto de simpatia, mas é o melhor que vais conseguir agora. – Disse Christa com um sorriso divertido.
– Não serei eu a dizer que não à simpatia da pimentinha. – Levi decidiu responder, vendo que de pouco serviria tentar escapar da conversa.
– Não é que não tenha curiosidade em saber o motivo que até está a causar esta simpatia súbita, mas estou mesmo cansada, meninas e meninos, portanto, vou para casa. – Anunciou Pieck. – Contam-me as novidades amanhã, pode ser?
– Se vais para casa, faço companhia. – Disse Galliard.
– Não, vai com eles. – Insistiu a cozinheira do “Ritmo do Café”.
– Ó, mas ia ser mais divertido estarmos todos juntos. – Disse Valentina.
– Nem pensar, Pieck, eu depois volto lá, mas deixo que fiques em casa primeiro. – Insistiu o Alfa de cabelos loiros e Pieck procurou apoio na gerente que com o olhar, indicava que não discordava daquele gesto de cuidado e proteção.
Desde que tinha começado a trabalhar no café, Galliard insistia em acompanhar as colegas a casa, sobretudo Pieck que não vivia no mesmo apartamento que Annie dividia com Valentina, Christa e Isabel. Preferia não deixar que a Ómega fosse sozinha para casa e não eram raras as vezes que a acompanhava até à entrada do prédio onde vivia.
Portanto, Pieck viu-se de mãos atadas para recusar o gesto de atenção do Alfa e despedindo-se dos colegas, Levi não deixou de notar de novo que existia sim, um cansaço notório nos olhos castanhos da Ómega, cujas feromonas tinham qualquer coisa de diferente. Não tinha descoberto ainda o motivo, mas o mais plausível que passava na mente do Alfa era que Pieck tivesse algum problema de saúde. Algumas medicações podiam desregular as feromonas e perguntava-se se seria esse o motivo para ser mais difícil descortinar as emoções dela.
Contudo, o Alfa de cabelos negros sabia que era cedo demais para tocar num tema desses.
Ainda que, tenha pensado que quando Galliard não pudesse, ele próprio não se importaria de acompanhar a colega de trabalho até casa. Aliás, iria preferir fazê-lo, sobretudo imaginando que pudesse ter alguma condição que a deixasse ainda mais vulnerável para alguém mal intencionado.
– Vamos? – Annie colocava a mão sobre o ombro do Alfa para retirá-lo dos pensamentos que assentiu enquanto seguia as colegas para a área do armazém. – Não sei se não devíamos dar mais um jeito…
– Não têm que arrumar nada. Vejo em cada uma de vocês que foi um dia cansativo. Depois do jantar volto e garanto que amanhã quando chegarem, estará tudo em condições para mais um dia de trabalho.
– Obrigada, Levi. – Sorriu a gerente.
O Alfa então viu a quem pertenciam a bicicleta e patins que viu antes. Isabel subia na bicicleta, convidando Christa a sentar na frente, dizendo que podia levá-la e Valentina calçava os patins. Isso fez com que fossem mais na frente enquanto Levi seguia uns metros mais atrás com Annie.
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Queria dizer que é uma vantagem não ver a expressão que deve ter, mas sinto que não tira os olhos de mim durante toda esta refeição que, sinceramente, está a embrulhar o meu estômago. O moreno abriu a boca mais uma vez para colocar o garfo na boca e forçar a comida a entrar.
Fazia quase um par de meses que Zeke não aparecia para visitar e na opinião de Eren podia desaparecer definitivamente e não sentiria falta do meio-irmão. Este que chegou com um abraço caloroso e as feromonas detestáveis que só contribuíam para a sensação de repulsa. Uma tentativa de aparentar carinhoso, mas que Eren sentia sempre como um gesto indesejado. Como se sempre existisse uma camada inapropriada em cada toque.
O que o moreno sabia que não era só paranoia da cabeça dele, afinal de contas, existiam provas e admissão do próprio Zeke sobre isso, quando sugeriu a ideia asquerosa de casamento entre eles.
Felizmente, além de Erwin e Louise, também Yelena decidiu marcar presença e dessa forma, as atenções estavam longe de Eren que escutava os gritos dos três filhos insuportáveis de Zeke que deveriam estar a transformar o local onde comiam numa autêntica tragédia. Podia sentir pelas feromonas também o desconforto de Falco que acabaria repreendido mais tarde por, mais uma vez, estar a encolher-se perante as visitas.
Os três sobrinhos de Eren tinham seis, quatro e dois anos. O mais novo estaria no colo da mãe, mas os outros dois encontraram o entretenimento perfeito na passividade de Falco.
O acidente aconteceu um pouco antes do mais velho, Andreas, completar um ano e por isso, Eren tinha memórias vagas acerca da aparência dele e nenhuma dos outros dois. Apenas podia contar com as descrições vagas de Reiner que dizia só serem a cara do pai, sobretudo Andreas (6 anos) e Derek (4 anos). O mais novo, Ralph de 2 anos, era o único que não tinha os cabelos loiros do pai, mas sim os cabelos castanhos da mãe.
Não obstante, Zeke encaixava no típico estereótipo de família perfeita, já que todos os filhos - Alfas - eram a prova de uma boa escolha de parceira.
A mulher do irmão, Sasha, Eren também tinha conhecido antes do acidente. Viu-a pela primeira vez quando ele tinha somente dez anos e ela desde do primeiro momento, fez questão de não esconder que não o suportava.
O moreno nem precisou abrir a boca.
Um ódio à primeira vista que ele nunca entendeu, mas não fez questão de querer entender.
Era mais uma Ómega que casava cedo, no caso dela, aos dezasseis, sendo que Zeke tinha vinte e desde então vivia para parir, cuidar dos filhos e da casa.
Uma vida que Eren não invejava e arrepiava-se só de pensar que o futuro dele não seria tão diferente do dela. Já tinha arrastado o compromisso mais que o normal, pois quando fez dezasseis, os pais de Reiner tentaram empurrar o moreno para o casamento.
Eren diria que não foi só ele interessado em adiar a data. Também Reiner preferiu adiar por saber que após o casamento, seria expectável ter filhos pouco depois e o moreno sabia bem como o namorado valorizava a liberdade que ficaria limitada com crianças para cuidar. Verdade seja dita, essa responsabilidade seria minha. Melhor dizendo, seria se eu não tivesse esta deficiência visual que fará com que ele tenha que estar mais presente. É como se fosse ser um fardo na vida dele o tempo todo, mesmo que… eu não queira nada disto. O nó na garganta impediu que colocasse mais comida na boca. Só queria levantar, ir para o quarto e dormir.
Pensar nisso, fazia com que uma parte dele quisesse lembrar que existia uma outra opção.
Ele não queria pensar nisso.
Assustava-o pensar nisso.
Antes nunca foi uma possibilidade. Porquê? Quando é que se conformou com as coisas? Nem ao menos lembrava disso, mas cada vez que pensava no futuro ao lado de Reiner, agora pensava nas feromonas daquele Alfa. Nas palavras dele. Nas promessas sussurradas entre linhas e no mistério que era aquele encontro entre eles.
– Não tens vergonha de ser tão mole?
A voz de Andreas acompanhado pelo riso mais novo do irmão Derek fez Eren recordar outro detalhe sobre a vida que idealizavam para ele. Com a exceção de Falco que tolerava por ser uma criança calma e fácil de lidar, por norma, o moreno não diria que tinha qualquer tipo de instinto maternal que era expectável em Ómegas.
Não achava as crianças adoráveis.
Por vontade própria, preferia abdicar dessa parte da vida dele.
– Vais esconder de novo atrás desse Ómega? – Perguntou Andreas quando ao sair da mesa, Falco segurou na mão de Eren que devolveu o gesto.
Incrível. Parece que partilha do mesmo desdém que a mãe dele tem por mim.
– Estou a ficar farto de te ouvir a ti e ao teu irmão. – Comentou Eren.
– Ómegas ficam de boca fechada! – Exclamou Andreas, tentando usar as feromonas que o moreno só poderia descrever como ridículas e ao mesmo tempo, com o mesmo traço desagradável que teria herdado do pai.
– Shh! – Dizia tanto Derek como Ralph que já devia estar pelo chão a julgar pelo pontapé na canela que sentiu.
– Isso não se faz. – Repreendia Sasha sem a convicção suficiente para parecer que se incomodava com a falta de educação dos filhos.
Infelizmente, Eren não podia pedir para se retirar sem ser interpretado como falta de educação. Portanto, teve que se manter na sala, testemunhando as conversas entediantes, mas optando por ter Falco sentado no colo dele para o proteger das brincadeiras maldosas dos sobrinhos mal-educados.
Erwin tentou que o filho fosse brincar (e tentasse se impor) sobre os outros pequenos Alfas, mas Yelena notando a situação desconfortável mais uma vez usava do dom da palavra para direcionar a atenção para outro aspecto.
– Sei que é bom as crianças brincarem, mas não é sempre que o Eren tem a oportunidade de mostrar os instintos maternais. Vejam só como é protetor do pequeno. É bom que vá praticando.
Eren não se orgulhava de ter sentido vontade de tirar Falco do colo só pela ideia de estar a aparentar maternal como um bom Ómega devia ser. Dispensava esse tipo de elogio porque sabia que vinha com outra carga extra. Fazia com que pensasse no futuro que idealizavam para ele.
O telemóvel começou a tocar no bolso dele e de imediato, um dos fones que mantinha no ouvido informou que era Reiner. Se queria falar com ele ou ir direto dormir? A segunda. Só que as opções sobre a mesa era usar Reiner como desculpa para se retirar ou ficar ali entediado o resto da noite com a sensação de que não pertencia àquele lugar.
– Desculpem, mas tenho que atender. – Disse, levantando depois de pedir a Falco para sair do colo dele. – É o Reiner. Esta hora é quando consigo falar com ele e queria atender.
– Claro. Todos entendemos, Eren. – Assegurou Yelena. – Com o Reiner longe qualquer contacto com ele é para manter.
– Posso? – O pedido dirigia-se mais a Erwin.
– Não vou interromper o namoro do meu filho, mas despede-te da tua família antes de ir. O Reiner vai entender a demora.
– O Reiner gosta pouco de esperar. – Disse Armin num tom quase divertido. – Mas família, é família.
A ideia de receber outro abraço de Zeke fez com que descartasse as cortesias que Erwin e Louise pretendiam de despedir-se de forma mais cordial e individual com cada uma das visitas. Em vez disso, o moreno fez uma breve reverência, agradecendo a compreensão de todos e pedindo desculpa por sair daquela forma, mas queria mesmo falar com Reiner.
Um leve aceno para não parecer totalmente mal-educado e saiu com passos apressados.
Foda-se as cortesias. Se receber mais um abraço do Zeke, acho que vomito. Respirou fundo, começando a subir as escadas e notando pelas feromonas que Jean ainda estaria por perto, mas em breve estaria no quarto e cada vez mais próximo de simplesmente deitar e ficar sozinho.
– Reiner, desculpa a demora em atender. – Disse enquanto subia os degraus.
– O meu Eren cheio de pressa para falar comigo. – Ouvia a voz animada do outro lado. – Relaxa, amorzinho, o Armin avisou que estão com visitas em casa. Salvei-te da gritaria das crianças?
– Sim, mas acho que deixei o Falco desprotegido.
– Gosto muito desse teu lado protetor com o meu mano, mais já vai sendo hora de ele começar a se impor.
– Hum, pois… – Não queria alongar-se muito sobre o tema.
– Vá, tu sabes que tenho razão quando digo que aprender a defender-se é essencial. Queres que seja saco de pancada, assim como o Armin foi?
– Não quero discutir contigo, Reiner. – Começou por dizer e antes que isso originasse algum comentário de desagrado do namorado, acrescentou. – Não quero que o pouco tempo que posso falar contigo seja desperdiçado assim.
– Como é que posso discordar de um pedido desses? – Era audível a satisfação do Alfa. – Vamos mudar de assunto. Tenho uma boa notícia para ti.
– Ah sim? – Perguntou, entrando no quarto e sentindo alívio por estar finalmente sozinho e mais à vontade. – O que é? Fizeste outro voo hoje? Deixaram que eu…
– Ainda é cedo para te trazer comigo numa viagem de teste, mas vamos matar saudades. Tive autorização para ir este fim de semana a casa. Não são boas notícias?
O sorriso de Eren desvaneceu e sentiu um nó na garganta.
– Que bom. – Disse, forçando um sorriso no vazio do quarto para que a voz não transparecesse como aquilo não era o que esperava ouvir. – Tinhas razão. São ótimas notícias.
– Uma das vantagens do nosso namoro é exatamente essa, deixam ir a casa mais vezes porque é normal, querer estar com o meu Ómega.
– Hum… vens sexta à noite?
– Sim, sexta já dormimos juntinhos assim como tu gostas.
Forçou as palavras para concordar com o Alfa. Não podia ser de outra forma. Não devia.
Sinto menos culpa pelo que aconteceu entre mim e o Levi do que por esta sensação de que devia ter saudades de alguém que já fez tanto por mim. Se quiser esquecer e empurrar para debaixo do tapete tudo o que aconteceu com o Levi, será que o que tenho pela frente é sentir este sabor amargo na boca só de pensar no toque de alguém que…? Deitou sobre a cama já com a chamada terminada, recordando como tudo parecia tão mais simples antes. Antes de deixar que a amizade com Reiner desse aquele passo. Alguém de quem gostei antes e agora não sei como descrever o que sinto. Nunca entendi se era o gostar certo. O gostar de que ouvia falar não encaixava nas descrições que escutava de outros Ómegas. Uma das mãos veio até à boca dele, deslizando os dedos pelos lábios. Mas aquelas descrições parecem encaixar com o Levi…
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– A Pieck vai finalmente perceber o motivo do desaparecimento de arroz. – Comentou Isabel, levantando do chão, onde antes estava sentada e encostada ao sofá onde estavam Christa, Valentina e Annie.
Galliard estava sentado numa cadeira próxima à mesa da sala, baloiçando de leve enquanto ia mexendo no telemóvel e a cerca de pouco mais de um metro de onde estavam todas no sofá, Levi também tinha optado por sentar no chão de frente a elas.
Inicialmente, parecia estar presente um interrogatório em que mesmo Galliard aconselhou a falar, caso contrário seria atormentado até ao fim dos dias. O Alfa mais jovem apenas disse: “Eu teria disfarçado mais, mas agora que elas sabem que há fofoca, vais ter que falar”.
Isso valeu a o arremesso de um chinelo da parte de Christa e um olhar pouco amigável de Annie.
– Estou chocada, mas feliz pelo Eren. – Afirmou Christa, procurando conter a animação ao lembrar de Valentina ao lado dele. – Bom, ahm…
– O Eren é sempre tão reservado que é uma surpresa para todas. – Valentina sorriu para Christa como que pretendendo tranquilizar a amiga de que estava tudo bem.
Ela já desconfiava que o Alfa estaria interessado em alguém. Aliás, ele próprio tinha referido isso e Valentina era consciente de que era sonhar alto que fosse ela. Sabia que não era.
A tristeza que sentiu ao constatar isso não era suficiente para não se animar com a ideia de que Eren pudesse finalmente, começar a dar os primeiros passos para deixar a vida que vivia. Dificilmente um Ómega não interessaria por alguém como o Levi e ele não o faz por querer ser um conquistador, mas por ser genuinamente doce com os Ómegas. Eu, a eterna romântica, espera por um príncipe assim na minha vida. Ainda só não é a minha vez. O meu Alfa deve estar por aí… pelo menos, eu espero que sim. Forçou o olhar a não desviar para alguém específico e manter o foco na conversa, sobretudo em Isabel que regressava com algumas cervejas na mão.
– Isto merece comemoração. – Entregou uma das cervejas a Levi. – Uma boa notícia finalmente. – Entregou outra a Annie e Valentina que murmurou a Christa que dividiria a bebida com ela, dado que a amiga tinha baixa tolerância ao álcool.
– Confesso que estão a aceitar isto muito melhor do que eu esperava. – Comentou Levi antes de dar o primeiro gole na cerveja.
– Talvez esteja mais do que na hora de te contar que tudo isto não é apenas porque ninguém gosta do Reiner. – Comentou Christa, trocando um olhar com Annie que assentiu e em seguida, a loira de cabelos agora soltos, levantou do sofá com o telemóvel na mão e deixou o aparelho na mão do Alfa.
Levi olhou para a imagem de um grupo de WhatsApp denominado - Aurora - em que via sobretudo, frases inspiradores com imagens de amanhecer que Christa ia mostrando, mas as conversas de aparente normalidade, chamou a atenção do Alfa ao ver que algumas palavras e frases se iam repetindo.
– Há palavras e expressões que se vão repetindo. – Comentou o Alfa, desconfiando que existia um significado adicional naquelas conversas aparentemente banais.
– O grupo foi criado pela Annie e ultimamente, tem a todas nós e até mesmo o Galliard como Admin para ver as novas mensagens e dar seguimento a novos pedidos ou para clarificar dúvidas. É um grupo de apoio a Ómegas que pretendem encontrar uma alternativa, que precisam de ajuda.
– Eu encontrei a Annie e o café assim. – Esclareceu Isabel. – Aliás, todas nós nos conhecemos assim. O que começou com uma mera curiosidade acabou comigo aqui a trabalhar no café.
– Todas nós temos histórias semelhantes de, neste dia e século, ter pais a prometer-nos a Alfas por sermos Ómegas. – Acrescentou Valentina.
– E mesmo Betas que podiam passar por Ómegas com as coisas que há por aí em mercado negro, também perdem o direito de escolher o que querem para o futuro. – Comentou Christa.
– Cada uma de nós tem uma história que nos trouxe até aqui e já tivemos outras colegas que seguiram caminho, outras que infelizmente desistiram e regressaram ao ponto de partida. – Explicou Annie. – Nós só queremos que cada um que nos procure, tenha uma hipótese real de encontrar um novo começo e temos provas de que isso é possível. As meninas ficaram aqui comigo, mas outras dizemos com orgulho, que recomeçaram novas vidas noutros lugares.
– Portanto, se um dia destes, estiveres a ajudar outra vez no atendimento e alguém referir “Aurora”, é porque está à nossa procura. – Clarificou Galliard, deixando de enviar mensagens pelo telemóvel.
Levi sorriu um pouco, dizendo:
– Obrigado pela partilha. Não pretendo voltar ao atendimento, mas naquilo que puder ajudar, acho que sabem que podem contar comigo.
– Claro que vais ajudar quando precisarmos. – Comentou Isabel. – Achas que estamos a falar disto só para fazer conversa?
– Imagino que não. – Respondeu, mantendo um sorriso divertido com a personalidade da ruiva. – Mas eu agradeço na mesma e insisto que estou disponível para o que precisarem.
– Acho que a única coisa surpreendente em tudo isto, além de convenceres o teimoso do Eren a reconsiderar as escolhas da vida dele, é que tenhas conseguido também conquistar aqui a confiança da Isa. – Comentou Annie.
– Ainda está em período experimental, atenção. – Corrigiu Isabel, olhando para o Alfa ainda sentado na frente deles. – Mas tenho que levar em consideração que mesmo sendo insana, a Hange não insistiria em ter alguém aqui que não fosse da sua confiança. A Annie também te deu um voto de confiança e o Eren que é provavelmente dos Ómegas mais desconfiados de Alfas, parece ter chegado à conclusão que não és uma ameaça.
– Obrigado, pimentinha.
– Tens que perder esse hábito de espalhar apelidos. – Apontou a ruiva, estendendo o braço até encostar na cerveja que o Alfa segurava. – Mas por agora, brindemos todos aos chifres do Reiner.
Risos pela sala.
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Hange sorriu com a mensagem recebida da parte de Levi, avisando que não iria jantar com eles, dado que estava com os funcionários do café. Algo que partilhava com o marido que ajudava na preparação da refeição que seria entre os três. De fundo, ambos escutavam a voz animada de Gabi a interpretar mais alguma história fruto da imaginação que acabava sempre com ela a saltar do sofá para o chão entre frases heroicas.
– Tinha a certeza que ia conseguir integrar-se entre as meninas. – Comentou Hange sorridente. – Sabia também que a Isa ia ser um osso duro de roer, mas ela é justa.
– Concordo e é bom para ele conviver com outras pessoas. Passou demasiado tempo encerrado naquele lugar. – Dizia o Beta, experimentando um pouco da comida.
– Isso é das coisas que me irei sempre culpar por não ter conseguido ajudar e diminuir a condenação dele. – Murmurou Hange, sentindo em seguida um abraço do marido ao qual retribuiu.
– Também queria ter feito mais, mas o Levi tem razão quando diz que não devíamos carregar esta culpa e que sobre o passado não podemos fazer nada. – Acariciou os cabelos da esposa. – O importante é o agora e nisso, acho que estamos a fazer o que podemos. – Beijou os cabelos castanhos. – Há mais alguma coisa que te está a preocupar, certo?
Hange sorriu mais um pouco, pensando em como não conseguia mesmo esconder nada do companheiro. Desfez o abraço com cuidado antes de olhar de frente para ele.
– Sabes que apoio este romance que está a surgir entre o Levi e o Eren, mas não posso ignorar as consequências que vão advir de uma coisa destas. Os Smith são perigosos.
– Também já pensei sobre isso e sei que o Levi pode não querer por perder o contacto com a mãe, mas…
– Estás a ponderar a ideia de uma fuga? – Questionou Hange surpresa.
– Bem sei que a ideia também não te agrada e não é de todo, a minha primeira opção, mas é uma das possibilidades e sabes que racionalmente falando, é possível que seja das coisas mais seguras: recomeçar noutro lugar. Os Jaegers deixaram uma fortuna considerável nas mãos do filho e os Smith andam a querer meter a mão nesse dinheiro há anos. As pessoas fazem coisas terríveis por dinheiro.
– É esse o meu medo. – Afirmou Hange, quando ambos escutaram os passos da filha próximos da cozinha e pouco depois, a pequena surgia com os cabelos desalinhados como resultado das inúmeras brincadeiras.
– Só estes pratos? O Levi não vem comer connosco?
– Hoje não. – Respondeu Moblit.
– Está com os colegas de trabalho. – Acrescentou Hange, vendo a expressão emburrada da filha.
– Ele não está a ser um bom amigo. Como somos amigos se não estamos juntos?
Os pais da pequena trocaram expressões divertidas entre eles.
– Nem sempre dá para estarmos juntos, mas a amizade é tão mais do que isso, Gabi e vais ver. Podemos ser amigos, os melhores amigos e nem sempre vamos estar tão juntos como gostaríamos, mas o importante é não permitir essa chama da amizade apagar.
– Ele está a namorar, é isso?
Os pais riram.
– Bem que ele gostaria, mas ainda não está nessa fase de encontros noturnos. – Comentou Hange.
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– Estás bem-disposto, mesmo não tendo encontrado o Eren agora de manhã. – Comentou Galliard enquanto secava o cabelo com uma das toalhas ao mesmo tempo que Levi acabava de vestir as calças e sentava no banco dos vestiários, vendo qualquer coisa no ecrã do telemóvel que o fez bloquear o aparelho em seguida.
– Sabia que seria bom demais encontrá-lo em dois dias seguidos aqui, mas ontem foi um dia bom e hoje ainda posso vê-lo. – Respondeu o Alfa de cabelos negros. – Uma pergunta.
– Chuta.
– Acho que desde que comecei a usar e/ou procurar tradutores para braile e informações sobre o tema, sinto que estou a ver muito mais publicidade sobre isto. Sugestões de cursos ou vídeos de pessoas a falar sobre o tema. É normal?
– Claro, és tu quem está viciar o algoritmo. – Respondeu o mais novo, vendo a expressão de quem não tinha entendido o significado das palavras. – Não fazes ideia o que significa algoritmo.
– Vou supôr que tem um significado banal para quem usa as redes sociais com frequência.
– Isso deveria ser verdade, mas não é bem assim. – Começou Galliard. – Há muita gente que acredita que vê determinadas publicidades, posts ou vídeos por mera casualidade. Não é. – Fez um ar pensativo. – Basicamente se fosse explicar o que é algoritmo, diria que é um conjunto de critérios que define como o conteúdo é apresentado aos utilizadores.
– Esses critérios são, por exemplo, definidos pelas coisas que procuras e mostras interesse?
– Sim, em parte, sim. Ainda que, quanto mais uses, vais entender que o que está viral também é empurrado para o teu perfil.
O Alfa de cabelos negros partilhava da mesma expressão de reflexão antes de comentar:
– Então, deve-se aplicar o tal princípio de que quando uma plataforma permite a uses de graça é porque o produto és tu.
– É provável. Onde viste isso?
– Algum livro sobre marketing. – Respondeu, vendo o erguer de sobrancelha do mais novo. – Leitura era um dos meus passatempos favoritos na prisão. Perdi a conta das horas que passei na biblioteca.
– Já te disseram que és um Alfa estranho?
– Várias vezes. – Encolheu os ombros.
Galliard sorriu com traços de diversão e abanou a cabeça, sabendo que o outro não interpretava isso como insulto. Aliás, o mais novo até considerava que levando em consideração o comportamento de vários Alfas que conhecia, ser considerado estranho, era até um elogio. Sobretudo quando parte do nosso treino teve a presença do Adam, que agora que está de regresso, parece querer esfregar o ego dele em cada recanto deste lugar.
– Hoje tens tempo? Eu sou um expert em redes sociais e posso explicar mais coisas.
– Talvez na hora do almoço. Hoje não tenho aulas na escola de condução, mas tenho outro compromisso. – Disse, terminando de abotoar a camisa. – Se enviares a localização, acho que já percebi como funciona e vou ter contigo. Caso contrário, fica para outro dia.
– Por mim, tenho tempo. Vou almoçar antes de ir para o café e de lá aviso quando o Eren chegar, já sabendo que não deves chegar logo nos minutos seguintes porque o outro está lá fora com atenção a todos que entram e saem.
– Se entrar pelas portas do fundo, ele não precisa saber que já estou lá. – Lembrou Levi.
– Bem visto. – Concordou Galliard.
Depois de seguirem caminhos opostos em que o Alfa mais jovem, apesar de curioso, não questionou qual compromisso o outro teria. Levi seguiu para mais uma visita à mãe. Agora que estava em liberdade, podia vê-la todos os dias e não apenas em chamadas que Hange ia tentando fazer com tanta frequência quanto lhe era possível.
Sabia também que a mãe estava num local com condições que dificilmente teria de outra forma, graças a Moblit e Hange. Os dois recusavam receber nada em troca, mas o Alfa sentia que a dívida com os amigos aumentava e além disso, era mais um aspecto em que falhava com a mãe.
Ele deveria ser capaz de providenciar um local digno como aquele à mãe. À pessoa que fez absolutamente tudo por ele e no entanto, agora dependia da ajuda de amigos.
Quando entrou no quarto, lá estava a mulher que sempre admirou pela força e determinação, sentada no cadeirão com o rosto virado para a janela, mas o olhar distante de quem não apreciava paisagem e muito menos, dava conta de que a funcionária que a acompanhava saía e deixava o Alfa a sós com a mãe.
Havia poucas coisas que o podiam despedaçar por dentro.
Ver a mãe ali tão diferente do que recordava era uma dessas coisas.
Engoliu o nó na garganta e puxou com cuidado um pequeno banco do quarto para sentar próximo do cadeirão, onde a mulher de aspecto pálido, frágil e ausente estava sentada. Mesmo os cabelos negros pareciam ter perdido o brilho de outrora.
– Olá, mãe. – Disse, tragando a saliva com mais dificuldade. – Vim ver como estás, falar contigo… – Pausou. – Quero que sejas a primeira a saber que tinhas razão. As estrelas sussurram mesmo de uma forma misteriosa, mas que pouco a pouco, faz sentido.
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Quando Eren entrou no café, inspirou fundo, sentindo o alívio por finalmente deixar para trás todas as horas entediantes daquele dia. Instintivamente procurava as feromonas que não tardou em detetar, mesmo que discretas por entre todos os outros aromas do café, desde dos bens alimentares à diversidade de dinâmicas.
Uma sensação de tranquilidade e frio na barriga não tardaram em fazer-se presentes.
– Hei, Eren, aproveita o pouco movimento e vem aqui. – Era a voz de Isabel.
De facto, notou que diferente do dia anterior, havia um menor número de mesas ocupadas. Seguindo as feromonas com aquela característica apimentada, facilmente reconhecível, o moreno não tardou em aproximar-se da ruiva e em seguida, receber um abraço de Christa que o surpreendeu um pouco, mas retribuiu com confusão na expressão dele.
– Estamos muito contentes em te ver!
– Parece que sim, embora não entenda bem o motivo. – Comentou o moreno.
– Não podemos estar felizes em te ver? – Questionou Valentina que passava perto das amigas de sorriso no rosto e fazendo sinal a Galliard que do fundo do café, apenas disse:
– Acabei de enviar.
– Acho que é um pouco de felicidade extra e não é o meu aniversário, nem estamos perto dessa data. – Disse com um pequeno sorriso. – Aconteceu alguma coisa de bom?
– Digamos que recebemos uma ótima notícia. – Disse Isabel. – Tão boa que te vou sugerir que, assim ontem, aproveites a vantagem de ter um espaço em que possas ficar completamente à vontade e não estou a falar da tua mesinha cá em baixo. Não queres subir?
Da expressão de confusão devido à alegria com que tinha sido recebido, recordou a conversa no dia anterior com Annie e isso fez a confusão dar lugar à surpresa. A isso seguiu-se um embaraço. A Annie falou sobre aquilo com elas?! Não é que eu tenha pedido segredo, mas é óbvio que não quero que se espalhe aos sete ventos!
– Não foi a Annie que falou. – Murmurou Christa.
– Encurralámos o teu amorzinho ontem. – Acrescentou Isabel no mesmo tom discreto. – Ele não disse nada de comprometedor, se é isso que te preocupa, mas sabemos o essencial e queremos ajudar.
Por mais que quisesse dizer, Isabel preferiu não mencionar que brindaram aos chifres do Reiner. Sabia que isso podia constranger Eren e tudo o que ela não queria, era despertar em Eren algum momento em que defendesse aquele Alfa controlador.
– Eu vou subir. – Murmurou o moreno ainda visivelmente pouco à vontade com o tema.
– Vou contigo e conversamos um bocadinho, pode ser? – Era a voz de Annie que acabava de se aproximar e viu apenas o Ómega de olhos verdes assentir.
Assim que ficou sozinha com Eren, a gerente explicou com mais detalhe em que circunstâncias as amigas ficaram a saber do que estava a acontecer. Achou importante deixar claro o que foi dito e como foi dito porque sabia que era muito fácil interpretar mal a situação e mesmo que de forma não intencional, fazer com que Levi ficasse mal visto em toda aquela história.
Portanto, quis reafirmar o caráter do Alfa, frisando que ele não disse nada que prejudicasse Eren. Apenas confirmou as suspeitas de Isabel porque pesando prós e contras, era melhor ter a todas como aliadas.
Aliás, Eren teria que dar o braço a torcer e quando Annie questionou se confiava nelas, respondeu afirmativamente. Nenhuma delas deu qualquer motivo para o contrário desde que se conheceram. Sempre o receberam e acolheram com carinho e compreensão.
Mesmo assim, o moreno mantinha o pé atrás com Galliard, por mais que a gerente afirmasse que podia confiar nele também.
– Eu ainda não sei o que pensar sobre tudo isto.
Os dois ouviram a porta ao fundo das escadas abrir e pelas feromonas era fácil deduzir de quem se tratava. Annie notou o ligeiro rubor no rosto do moreno e sorriu. Acho que só não queres pensar como te deixa assim apenas a presença dele.
– Caramelo demorei menos hoje? – Perguntou ao entrar. – Olá Annie.
– Olá Levi. – Disse, levantando da cadeira. – Vou deixar os dois à vontade. Juízo.
– Sempre. – Respondeu o Alfa, agradecendo e vendo a loira sair após confirmar que ele também tinha uma chave, dado que ela usaria a que tinha para fechar a porta e quis garantir que se qualquer um deles fosse sair, poderia fazê-lo.
– Já soube que estiveste ontem à noite a falar sobre…
– Só iria aumentar mais suspeitas, se recusasse. – Interrompeu Levi, sentando ao lado do moreno e notando que apesar das palavras, ele não parecia irritado, mas diria até que aparentava um pouco abatido. – Sei que devíamos ter falado disto antes, mas confesso que fui apanhado de surpresa também.
– Eu sei que a Isabel pode ser bem intensa quando quer saber de alguma coisa. – Comentou Eren. – A Annie também já esteve a falar comigo para esclarecer que não disseste nada, além de confirmar suspeitas que ela tinha.
– Hum, posso assumir que esse ar mais abatido não tem a ver comigo?
O Ómega virou o rosto na direção dele antes de voltar a atenção para a maleta sobre a mesa que foi abrindo e começando a retirar as folhas e os frascos de tinta.
– Tem a ver comigo que estou a tentar fingir que consigo fazer isto sem remorso. Sem pesar as consequências.
– Estás a falar de sentir remorso pelo carcereiro que tens como namorado?
Em perspetiva, sabia que devia moderar mais as palavras, mas também era difícil para ele controlar os instintos quando sabia que podia estar a competir com alguém que objetivamente, pelo pouco que sabia, já permitia concluir que não prestava.
– A tua opinião sobre o Reiner não muda a realidade de que tenho um compromisso com ele.
– E mesmo assim, queres estar comigo. – Afirmou, deixando as feromonas mais leves de modo a transmitir uma atmosfera compatível com o que esperava causar. Uma conversa tranquila entre eles.
– Sei que os Alfas fazem coleção de Ómegas e acham que podemos passar de mão em mão.
– Nunca disse isso. – Contrapôs Levi, mantendo o tom calmo.
– Mas não tens um problema com traição. – Retrucou Eren, gostando pouco da pausa em vez da resposta imediata. – Já fizeste isto antes. – Concluiu, não escondendo o rosnar.
– Não é da forma que estás a pensar.
Mal disse essas palavras, o Alfa sabia que não havia forma de não ser mal interpretado.
– Claro que estar preso não é impedimento. – Ironizou. – Alguma Ómega que limpava a tua cela e que perguntaste se não estava disponível para cuidar da tua solidão? – Outro rosnado, pegando num dos pincéis que após passar pelo frasco da tinta pretendida, deslizou com pouco cuidado sobre o papel.
– Não vou mentir, Eren e dizer que não tive outras pessoas na minha vida, inclusive antes de ser preso, mas não é comparável contigo.
Um sorriso jocoso e uma expressão de quem desacreditava o que escutava.
– Isso funciona com alguém? Suponho que com os iludidos que acham que são especiais, mas são mais um na lista de opções. A quantos Ómegas já disseste isso?
O Alfa pausou.
A conversa estava a seguir um rumo que não esperava, só que isso não o faria cair na tentação fácil de desvalorizar o tema. Se o fizesse, é provável que o moreno visse isso como forma de fugir do assunto e isso não era uma coisa que combinasse com ele.
Se Eren queria falar sobre isso, então era sobre isso que iriam falar.
– Nunca disse que era e nem pretendo ser nenhum santo, Eren. – Afirmou, vendo que o Ómega continuava a pintar com uma expressão que mostrava pouca abertura para falar. – Se estás à espera que eu não tenha um passado, lamento, mas isso é irracional. Não há absolutamente nada que eu possa fazer sobre isso, assim como tu também não podes. – Viu que parava os movimentos. – Também não vou mentir porque eu não tenho nada a esconder. O que é que queres saber? Se havia Ómegas disponíveis para Alfas na prisão? Sim, havia. Voluntariamente escolhidas? Acho que os dois sabemos a resposta. Se toquei nelas? Não. Se me envolvi com alguém que estava lá? Sim. Um com maior frequência, alguém insuspeito porque fazia parte de um dos vários cursos que fiz nos anos que lá estive e que tinha uma ligação do diretor da prisão. O que mais queres saber?
– Foi teu namorado? – Interrompeu Eren.
– Era uma coisa física para os dois, além de que ele é casado. – Viu o semicerrar de olhos do moreno, mas não interrompeu, deixando continuar. – No caso, eu era mais um da lista e não o digo como insulto nem para denegrir a imagem dele. O Alfa basicamente comprou-o quando nem tinha idade para compromisso, portanto, ele vê cada Alfa com quem se envolve como vingança.
– Agora que estás cá fora, ainda vês esse Ómega? Deve ser mais fácil agora.
– Não voltei a vê-lo e tu sabes. Já estiveste perto demais para não saber uma coisa dessas.
– Já estiveste com um Ómega casado e agora que ganhaste o gosto, queres um que tem namorado?
– Não, a ti quero que sejas exclusivamente meu, assim como serei apenas e só teu. Como posso querer outro se estiveres comigo?
Eren não podia evitar o rubor no rosto mesmo que tentasse.
– Entre o querer e a realidade há uma distância bem grande.
– Estou disposto a percorrer essa distância e te fazer querer isso tanto quanto eu.
O Ómega sentia o rosto quente.
– Não sei o que esperas que diga…
– Eu sei esperar e agora não tenho muito para te dar, mas estou a trabalhar para mudar isso. – Afirmou, vendo o Ómega, pousar o pincel sobre o papel e parecia refletir sobre o que tinha escutado. – No entretanto, será que posso ter uma resposta à minha pergunta?
– Que pergunta? – Questionou, olhando na direção do Alfa com um semblante confuso.
– Não me disseste ainda o que farias, se tivesses a oportunidade. – Explicou o Alfa, estendendo a mão para alcançar a mão do Ómega que apesar de surpreso com o toque, não o afastou. – És daqueles que já tinha uma ideia desde cedo sobre o que queria fazer ou és um indeciso como eu que não tem bem a certeza?
Eren pausou um tanto surpreso pelo retomar do tema e deixando que o Alfa se aproximasse um pouco mais e entrelaçasse os dedos das mãos dos dois, murmurou:
– Se seguisse o que imaginei, as minhas mãos não seriam assim ao ponto de nem as reconhecer como minhas. São mãos que fazem questão que eu cuide para agradar o Reiner, mas não são as mãos de trabalho de que me orgulhei no passado.
– Pelo que posso deduzir é algo que envolve literalmente meter as mãos na massa. – Comentou Levi, procurando incentivar o moreno a falar.
– É, seria uma boa forma de descrever. – Sorriu com tristeza. – Antes de descobrir isto, pensava que ia só seguir o trabalho da minha mãe. Ela tinha um Centro de Artes Marciais. Especialista em Kick Boxing e em aulas de Defesa Pessoal.
– Não muito comum em Ómegas, mas vejo que herdaste essa garra dela.
– A minha mãe era a Ómega mais forte que conheci. Ninguém, absolutamente ninguém a impediu de seguir o sonho dela e de conseguir sucesso, mesmo com todos os obstáculos que colocaram na frente dela. Eu queria treinar e ser capaz de suceder ao lugar dela e queria que se orgulhasse disso. – Dizia, recordando com nostalgia os dias com a mãe nos treinos. – E atenção, o que descobri depois, não me iria fazer desistir. Eu ia conseguir conciliar as duas coisas. Faria de tudo para isso.
– E o que descobriste depois?
– Nós íamos muitas vezes para uma casa no campo e lá, eu gostava de explorar as redondezas e descobri um senhor que pensei que apenas recolhia lixo por necessidade, mas depois de o seguir, descobri que o que considerei lixo, com horas ou dias de trabalho, ele transformava em coisas novas. – Dizia com uma admiração incapaz de esconder. – Dava-lhes uma nova vida e eu… a ideia de criar uma coisa nova, de dar uma oportunidade de recomeçar a algo que diziam estar no fim de vida… essa ideia fascinava-me. O meu pai brincava comigo e dizia que era de uma certa forma uma coisa dele porque como médico, ele estava habituado, em casos difíceis, a transformar a vida das pessoas, a salvá-las até de pontos que muitos diziam ser sem retorno. – Sorria mesmo sem dar conta disso e Levi apenas retribuía, escutando com atenção. – Pedi ao senhor Diogo que me ensinasse a fazer o mesmo, um Beta, que acho que pensou que fosse brincadeira ou que eu fosse desistir depois de magoar as minhas mãos.
– Mas claramente não és do tipo que desiste.
– Acreditas que fiz a minha própria casa na árvore? – Perguntou com uma animação evidente. – Os móveis lá em casa, o desgaste normal do tempo, eu renovei todos. Li muito sobre o tema, vi centenas e centenas de vídeos e chegava ao ponto de só de olhar para a sala de uma casa, conseguia transformá-la por completo. Uma coisa sem graça para outra que refletisse a personalidade da pessoa com as minhas próprias mãos. – O sorriso desvaneceu um pouco. – Ahm, desculpa, sei que não é nada assim tão…
– Não peças desculpa. Estavas tão feliz a falar disto que jamais devias pedir desculpa por algo que te deixa assim.
– Ómegas não fazem este tipo de trabalho manual.
– Hoje também me disseram que a leitura não é uma atividade comum para Alfas, aliás, ouvi isso a minha vida toda e no entanto, eu gosto. – Retrucou o Alfa. – Vês um problema com isso?
– Ahm, não.
– Porque veria problema num talento que tens? – Trouxe a mão do Ómega para perto do rosto e beijou as costas da mão. – Seria apaixonado por estas mãos de qualquer jeito. Quero muito que te orgulhes das tuas mãos de novo.
Eren sentia o rosto quente, mas o tom mais melancólico esteve presente nas palavras seguintes:
– Mas nisso, o “querer muito” não traz de volta os meus olhos e eles são essenciais para esse trabalho.
Levi parou para pensar um pouco sobre o problema nos olhos de Eren. Refletindo mais sobre o assunto era extremamente incomum não conseguir recuperar de um acidente, excetuando, claro, os casos de uma gravidade severa. O que se encaixaria nesse espetro? Amputações, queimaduras de 3º grau ou por exemplo, doenças genéticas sobre as quais não haveria nada a fazer. Portanto, se Eren tivesse nascido com uma deficiência visual, o provável é que tivesse que viver com isso o resto da vida, mas causada por um acidente? Acidente esse que não causou, por exemplo, a necessidade de extração ou qualquer dano visível, sendo provavelmente algo mais interno. Por que razão não teria regenerado?
A capacidade de regeneração e/ou recuperação de Ómegas era bastante similar à dos Alfas, sobretudo quando…
– Eren, quando tiveste o acidente que te causou a perda quase total de visão, que idade tinhas? – Questionou o Alfa, procurando entender mais contornos daquela situação.
– Treze. Porquê? – Quis saber o Ómega sem entender o motivo daquela dúvida.
Se pudesse ver, teria encontrado a expressão de perplexidade no rosto do Alfa.
Teve o acidente jovem. Em plena adolescência quando a regeneração habitualmente era ainda mais promissora, permitindo recuperar até de alguns casos complicados.
– Fico espantado que a regeneração não tenha evitado isto. – Admitiu o Alfa. – Houve mais ferimentos severos? Alguma fratura exposta, por exemplo?
Mesmo que houvesse, isso não explica. A regeneração atuaria de qualquer forma.
– Nada de fraturas expostas, mas sim tive, fraturas nas costelas e também numa das pernas, uma hemorragia que me fez perder bastante sangue… – Enumerou, recordando as palavras do médico no meio da confusão que sentiu quando recuperava a consciência para a perder pouco depois. – Acho que explicaram que a perda de sangue atrapalhou a regeneração, eu já não me recordo bem.
– Mas todo o resto…
– Todo o resto regenerou como esperavam. Não tenho mais sequelas além da perda da minha visão. – Clarificou Eren. – Pareces surpreendido com isso. – Deduziu pelas perguntas do outro. – Há muita gente que não se recupera totalmente de acidentes.
– Betas, sobretudo. Eles não têm essa capacidade como nós. – Apontou Levi, continuando a acariciar distraidamente a mão que segurava. – Alfas e Ómegas são diferentes. Nós conseguimos recuperar com maior facilidade até de alguns acidentes graves. Além disso, eras bem jovem, a regeneração deveria estar ainda mais presente. É uma questão de sobrevivência da espécie.
– Não sei explicar. Só estou a dizer o que aconteceu. Talvez seja mais uma deficiência minha como Ómega. – Comentou com a mesma melancolia de antes.
– Não tens qualquer problema como Ómega. – Afirmou o Alfa com mais firmeza. – Não importa o quanto te digam o contrário.
Existiu uma época na vida em que Eren também acreditou nisso. Agora, o moreno constatava com tristeza que passou a acreditar no contrário.
Porém, ser consciente disso, não fazia com que fosse mais fácil regressar ao tempo em que via as coisas de forma diferente. Agradecia, ainda assim, que o Alfa quisesse que não se sentisse diminuído ou menos capaz. Só que a realidade é que os sonhos de outrora… não existia forma de os recuperar. Com aquela incapacidade visual, era forçado a aceitar que, ao contrário do que imaginou em criança, existiam impossíveis.
– Posso também perguntar o que farias se tivesses oportunidade? – O Ómega decidiu mudar um pouco o rumo da conversa e com isso, conhecer também mais daquele Alfa que segurava a mão dele com tanto carinho. – Disseste antes que não sabias bem o que querias para o futuro quando era mais novo. Continua assim ou chegaste a uma conclusão?
– Antes disso, só para entender, a ideia de te dedicares à pintura, foi tua?
– Sugestão do Reiner. – Respondeu Eren. – A mãe dele concordou porque a ideia de ter um artista na família, aparentemente, soava bem melhor do que aquilo que eu pretendia como instrutor no Centro Artes Marciais da minha mãe ou uma espécie de restaurador ou renovador de móveis e divisões da casa.
Uma forma tosca de tentar moldá-lo para atividades consideradas mais dignificantes para Ómegas e não é que ele não tenha jeito na pintura, mas descartar todo o resto… enfim, tema para outro dia, por agora, não posso deixar de responder à pergunta dele. Fico feliz que queira conhecer mais sobre mim, mesmo que uma fatia da minha vida tenha sido atrás das grades. Parece que ele não quer fazer disso o único tema.
– Eu cresci ajudando a minha mãe no café que ela tinha que começou com uma pequena casa de chás e que acabou passando a servir uma variedade maior de coisas. – Explicou o Alfa, vendo que o Ómega escutava com curiosidade. – Crescendo, eu pensava em continuar a ajudar no café e quem sabe, seguir qualquer coisa ligada ao desporto, mas sem certezas de nada. – Uma pequena pausa, aclarando a garganta quando pensou como dizer a frase seguinte porque com isso vinham as memórias daquele dia. – Por sugestão da minha mãe e também da Hange fui a uma feira de emprego. Um daqueles eventos que organizam para que possas falar com profissionais de diversas áreas e assim, quem sabe, conseguir ter uma ideia mais concreta de uma carreira.
Há qualquer coisa de errado com a pergunta que fiz? Parece que falar disso não é tão simples e embora não entenda porquê, incomoda-me sentir que ele está desconfortável.
– E conseguiste? Desculpa, se estou a fazer uma pergunta inconveniente.
– Não, não é inconveniente. – Tratou de responder de imediato. – É só que está ligada a uma memória desagradável. – Quis mudar de assunto para não pensar naquele dia em que regressava a casa, animado com os panfletos que trazia daquela feira de emprego. A alegria de querer partilhar com a mãe que podia ter um outro futuro em mente despedaçada de uma forma tão cruel.
– Se a feira de emprego ajudou, que profissão chamou a tua atenção? – Quis saber Eren decidido a fugir do tema da memória desagradável porque pressentia que estava relacionado com a mãe do Alfa e a última coisa que queria era fazer com que revivesse de novo a dor dessas memórias.
O Alfa apertou de leve a mão do moreno, agradecendo por não querer desistir de virar a conversa para o que pretendia saber e não focar no tema da memória que era bem mais do que desagradável. Era o dia mais sombrio da vida dele.
– Fiquei até surpreendido comigo mesmo por ter equacionado uma possibilidade que a minha mãe tinha comentado uns meses antes quando comecei a dar explicações a crianças pequenas no café. – Afirmou, trazendo à superfície da mente dele todos os dias em que ficava sentado com as crianças numa das mesas do pequeno café. O que começou somente com uma e de repente, estava com três a pedido de outras interessadas. – Ela disse que eu daria um bom professor.
– Professor. – Repetiu não esperando essa resposta. – Confesso que não esperava isso.
– Na verdade, nem eu, mas a ideia nem é assim tão má, mas depois de tudo o que aconteceu, não sei se…
– Falaste em crianças. Querias ser professor de primária? – Questionou curioso porque aquela sim, era uma escolha que a maioria consideraria aberrante para um Alfa.
– Eu sei, ninguém diria isso, olhando para mim.
– Não és tu que pareces ter a atitude do “foda-se” e que seguiria em frente, independentemente daquilo que possam pensar? Por que razão isso seria diferente neste caso?
– Mesmo que o salário de professor não seja assim tão promissor? – Perguntou com alguma diversão na voz.
– Se achas que estou interessado em quanto possas ganhar por mês, estás a tentar flertar com o Ómega errado.
Levi esboçou um sorriso. Existia uns traços de travessura nesse sorriso.
– É mesmo? – Puxou a cadeira para mais perto. – Eu acho que estou a flertar com o Ómega mais certo de todos porque estaria até disposto a aceitar uma vida simples sem luxos.
– Eu não disse que…
– Mas com muito amor para compensar por todo o resto. – Viu o rubor aumentar.
– Como é que dizes essas coisas assim?! – Perguntou irritado pela forma como aquele tipo de coisa mexia com ele e também com ele mesmo por permitir tal coisa. – E outra coisa, continuo a achar que estás a dar atenção ao Ómega errado. – Decidiu tomar as rédeas da conversa e aproveitar isso para deixar assente outro ponto bem importante.
– E porque achas isso? – Perguntou, usando a outra mão para ajeitar uma das mechas de cabelo do moreno atrás da orelha.
– Porque é óbvio que tu queres crianças e eu não tenho esse tipo de desejo maternal. Nenhum Alfa quer um Ómega que se recuse a parir a ninhada de filhotes como descendência.
Mais do que nas palavras, Levi estava interessado em continuar a observar aquele rosto de perto. O rubor nas faces, os olhos que mesmo sem o brilho dos sonhos não perdiam destaque e aqueles lábios carnudos a pedir um beijo.
– Continuas a não ser o Ómega errado para mim. – Levantou da cadeira, ficando de pé em frente ao Ómega sem soltar a mão onde deixava mais um beijo.
– Mesmo que eu não queira crianças?
– É uma escolha que não pode ser só minha. – Roçou o rosto contra mão do Ómega. – Se o nosso futuro for só eu e tu, já vou considerar que é a maior dádiva que a vida me deu.
Eren engoliu em seco.
Aquelas feromonas, aquele toque, as palavras…
– Estarias mesmo disposto a querer alguém que obviamente não gosta tanto de crianças como parece ser o teu caso?
– A questão aqui não é se estaria, eu estou disposto a isso. – Debruçou-se até ficar bem próximo dos lábios do Ómega. – Ainda que, seja só uma suspeita minha, desconfio que com o Alfa certo, mudarias de ideias e irias querer ter pelo menos um ou dois filhotes.
– A tua verdadeira intenção é fazer com que eu mude de ideias. – Sussurrou de volta sem distanciar o toque leve dos lábios do outro.
– A minha intenção é te tratar com o respeito e dedicação que mereces. Os nossos filhos seriam somente fruto do amor entre nós, mas deixo isso nas tuas mãos, Eren.
Assim que terminou de sussurrar essas palavras, tomou os lábios do moreno, afundando a mão nos cabelos castanhos, desfazendo inclusive o elástico que prendia os fios pela força com que fez. Só que em vez de sentir o Ómega a retrair-se, escutou um gemido que apenas o fez aprofundar mais um beijo.
Eren sentiu falta daquele beijo. Da forma diferente como o fazia sentir com as feromonas que mesmo quando temperadas com desejo, não perdiam aquela característica cativante de todos os aromas de que mais gostava. O sabor que provava na boca do Alfa apenas o fazia corresponder com a mesma vontade àquele beijo intenso.
E se desta vez, havia sido o Alfa a dar início ao beijo, a verdade é que também foi ele que interrompeu contra a vontade do Ómega.
– O tom de comando lida com a parte das feromonas. – Deixou um beijo no canto da boca do moreno, que tentou beijar de novo a boca do outro que se esquivou ligeiramente, pretendendo continuar a conversa. – Achas que há o risco de acontecer o mesmo da última vez? – Beijou o moreno na boca, mas não prolongando demasiado. – Quero continuar a provar essa boca, só que acho que devias pelo menos retirar as calças.
Viu o moreno distanciar-se ligeiramente, parecendo começar a refletir sobre as palavras e menos inebriado pelas feromonas de desejo.
– Isso não é uma desculpa para me ver sem roupa?
– É mais fácil ir sem boxers para casa do que com umas calças diferentes. – Lembrou o Alfa, acariciando o rosto do Ómega. – Se não quiseres, acho melhor pararmos por aqui. É arriscado.
O pior é que nem era prepotência do Alfa ou apenas uma sugestão indecente sem qualquer razão lógica. Gostaria de dizer que era um exagero que iria sentir a lubrificação como da última vez, mas a forma como aqueles beijos o faziam sentir, era prova inequívoca de que podia acontecer novamente.
Aliás, era muito provável que acontecesse de novo.
Se a razão imperasse, teria dito que sim, era melhor parar por ali, mas aquele outro lado, aquele que focava na forma como se sentia, estava a devorar pensamentos lógicos. Tinha que recusar os beijos e o toque daquele Alfa, quando pela primeira vez na vida queria mesmo isso? Pensava também na inevitável vinda de Reiner a casa e isso terá sido o que mais pesou na decisão seguinte.
– Ok…
Sentiu o Alfa distanciar-se e deu conta que ele entendeu o contrário. O Ómega estendeu as mãos, segurando na camisa de Levi.
– O que foi? Eu não vou ficar chateado por…
– O “ok” não foi para pararmos por aqui. – Esclareceu Eren, sentindo o rosto quente, mas forçando-o a mantê-lo erguido para manter o olhar na direção do Alfa de quem queria tanto ver o rosto e era frustrante a imagem tão apagada e tão pouco nítida. – Mas são só as calças.
O Alfa sorriu. Algo predatório que forçou a manter sob controlo. É tão lindo. Tenho que manter os meus instintos sob controlo porque a minha vontade era deitá-lo numa destas mesas e fazer tudo aquilo que aquele Alfa perdedor nunca deve ter feito na vida.
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