Eu me lembro... Da raiva.
Um sentimento puro de ódio que me impelia para frente cada vez mais rápido. A caçada era frenética, o mundo a minha volta passava como um borrão, meu alvo parecia ser o único ponto nítido do universo, aquela maldita camaleoazinha não fugiria por muito mais tempo. "Por que ela me parece tão familiar?" Esse pensamento fazia meu sangue ferver. Em algum lugar dentro de mim, ecoava uma voz, fraca demais para competir com a cacofonia de fora, eu não sabia o que ela tinha a me dizer, mas parecia importante.
Aquilo me distraia do meu objetivo, foquei novamente minha atenção e empurrei a inquietação para o fundo da mente. Minha presa estava encurralada atrás de uma balaustra destroçada. Era o golpe final. Me aproximei rapidamente, mas qual não foi minha surpresa ao me deparar comigo mesma me encarando de volta, o vislumbre de quem um dia fui me desconcertou, quando dei por mim, a criatura me atacou, revelando novamente sua verdadeira forma enquanto fugia.
Fechei os olhos quando me desequilibrei, o golpe me atingiu em cheio, mas a despeito da dor, eu não poderia parar. De repente, senti como se uma energia me envolvesse, um refúgio de luz em meio a escuridão, era tão boa e quente... não tinha me dado conta do frio que me consumia até aquele momento. Em meio ao abençoado silêncio e calmaria, aquela doce voz ficava mais alta, ainda que eu não pudesse compreender suas palavras, eu apenas sentia que eram boas, como se me dissessem que o mundo lá fora poderia esperar. Tão rápido quanto veio, a sensação logo se foi.
Me senti nua e exposta enquanto lentamente o torpor da fúria se apossava de mim mais uma vez, mas de alguma forma, não completamente. Meu corpo voltou a ação, mas minha mente estava em outro lugar, era como se eu fosse uma mera espectadora, apenas observando meus atos, mas sem controle algum sobre eles.
Subi rapidamente o lance de escadas, não importava o quanto corresse por aquelas ruínas, no fim, acabava voltando sempre para o mesmo lugar. Em meio àquele turbilhão, Zoe , a face do mal, apareceu, talvez ela quisesse terminar o trabalho com suas próprias mãos. Era o momento perfeito, a lagartixa não poderia fugir das minhas penas.
Inesperadamente, o chão cedeu sob meus pés quando a criatura revidou e naquele instante, foi como se uma venda fosse retirada dos meus olhos. Com um simples movimento eu poderia ter acabado com a camaleoa, porém a caçada não me importava mais. Aquela voz… havia se calado. Me virei rapidamente e o vi atrás de mim, ferido e desacordado, a realidade me atingiu como um soco. "O que foi que eu estive fazendo esse tempo todo? Quando foi a última vez que percebi a presença de Rakan?" Não havia o que fazer, como poderia retratar todos os meus atos em apenas um instante? Segui meus instintos e me lancei sobre seu corpo, abraçando-o como a muito não fazia.
O vazio nos engoliu, senti que nossos corpos rodopiavam no ar em uma espécie de dança, havia tanto a se dizer e no entanto, eu não encontrei palavra alguma. Olhei profundamente dentro daqueles vastos olhos cor de ouro. Ao nosso redor uma redoma dourada nos envolvia. Ali, me dei conta de que aquela voz finalmente ganhara forma, não era um simples murmurar… Era uma canção. Fechei os olhos e me deixei embalar pela inebriante melodia. Cada nota, cada tom… Me trazia sentimentos dos quais eu nem me lembrava, a dor e a raiva foram as únicas constantes durante esse tempo todo, me anestesiando e afastando de tudo que eu amava.
Ele me trouxe de volta. Rakan me salvou e protegeu da escuridão que ameaçava me engolir. Fechei os olhos e me entreguei ainda mais aquele abraço. Uma de suas mãos afagava meu cabelos e a outra deslizava sobre minhas penas. Tudo estava completo, duas metades que finalmente se encontraram. Tive a sensação de que estava adormecendo ao som da voz dele. Eu não queria, mas tudo era tão convidativo, eu me sentia... Em casa. A última coisa de que me lembro, foram seus sussurros dizendo, em vastayes, nossa língua materna:
- Me perdoe, Miela. Eu não poderia te ver morrer mais uma vez.
E logo me entreguei ao mundo dos sonhos.
Se eu soubesse o que estaria a minha espera quando abrisse os olhos novamente, teria desfrutado daquele abraço um pouco mais.
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