O chão de madeira rangia conforme o peso de cada passo afundava-o. O som se assemelhava com um gemido horrendo, um pedido de ajuda enquanto mãos apertam seu pescoço, sufocando-o até que a vida finalmente se extinga de seu corpo e não reste nada a não ser uma carcaça vazia que facilmente poderá ser moldada.
Ela afastou aquele pensamento medonho que fazia o corpo dela estremecer e os ossos gemerem ao lembrar-se da adrenalina naquele momento.
Lembrar do que poderia acontecer consigo se tivesse perdido o jogo contra Ela, se não tivesse sido inteligente, se o gato não tivesse a ajudado...
Se tivesse aceitado trocar seus olhos por um par de botões.
Não! Ela está presa! Ela se foi!
Repetia a si mesma quando os pensamentos se tornavam mais fortes, mais sufocantes. Muitas vezes funcionava e ela focava no fato de ter sobrevivido, de ainda estar viva. Ela prestava atenção em algum assunto monótono no trabalho dos pais mesmo que não estivesse de fato interessada sobre a ciência por trás das plantas, ela conversava com o gato preto que sempre aparecia para lhe fazer companhia, até mesmo rir de alguma coisa engraçada que Wybie disse. Qualquer coisa que a fizesse esquecer-se do que enfrentou com a Outra Mãe, esquecer que poderia nesse momento estar morta, a alma devorada e um par de botões no lugar dos olhos...
Pare com isso!
Falou pra si mesma conforme avançava ainda mais por um dos corredores do Palácio-Cor-de-Rosa, ouvindo o som das gotas de chuva se chocarem contra a janela em um contraste bizarro com o estalo da madeira.
Aquela maldita porta está trancada e a mão dela está no poço junto daquela maldita chave! A Outra Mãe não vai vir atrás de mim! Eu finalmente estou segura!
Segura...
Ela nunca ficará segura.
Uma vez, o gato lhe disse que a Outra Mãe – ou Bela Dama, tanto faz – “amava um joguinho”. Será que ela estava jogando com Coraline até que ela fique tão desesperada para sobreviver, para escapar de novo, que não está raciocina mais? É uma possibilidade... Ela estava brincando com a comida, como fez da primeira vez.
Balançando a cabeça e se convencendo de que era apenas uma paranóia, Coraline continuou a caminhar pelo corredor, ignorando as ruídos da noite, da chuva, da madeira.
Começou a focar nos momentos que passou depois que aquele pesadelo acabou.
Parecia um milagre que finalmente estava tendo a atenção dos pais. Eles não escondiam o desgosto por ajudá-la a cuidar do jardim – principalmente a Sra. Jones –, mas pelo menos davam o melhor de si e também dividam o tempo entre trabalho, casa e ela. Os vizinhos se mostraram muito mais agradáveis do que ela tinha pensado no começo, principalmente a Srtas. Spink e Forcible e seus cachorrinhos agitados. Apesar Do Sr. Bobinsky passar a maior parte do tempo preso no seu quarto com seus roedores circenses, ele até que é gentil com ela, mesmo continuando muito excêntrico.
E ainda tem Wybie Lovat...
O garoto esquisito que Coraline achou que seria mais uma chatice naquela nova vida pacata no Palácio-Cor-de-Rosa se tornou seu melhor amigo naquela nova vida “pós-pesadelo”. Ele sempre está lá para lhe confortar e mesmo que não tenha enfrentado tudo de frente como ela enfrentou, ele tenta ajudá-la a se sentir melhor. Wybie não é mais o inconveniente que ela achou que ele seria...
Fui então que Coraline percebeu que estava com um sorriso tosco no rosto e o pior disso, Wybie era o motivo dele.
Eca!
A entrada da cozinha logo apareceu no seu campo de visão e assim a visão das costas da sua mãe na frente do fogão, mexendo alguma coisa comestível – o pai não sabe nem fritar um ovo sem que ele pareça lodo – e com um cheiro muito bom. O pai estava sentado a mesa, folheando o jornal com as pontas rasgadas, o que significa que não era um jornal novo e que, muuuito provavelmente ele estava relendo um artigo sobre plantas que ele escrevera e que fez sucesso.
A sensação de dejavu atinge Coraline como uma facada, mas, apesar de sentir um tremor nas pernas finas, ela não deixa que isso a atinja com tanta violência quanto a um ano atrás, onde o perigo era muito mais recente.
Onde tudo era muito mais recente.
Determinada a ser agradável – afinal, a mãe está fazendo o jantar e isso é uma coisa que deixaria qualquer que já tenha provado a comida do Sr. Jones muito feliz –, Coraline dá um passo á frente, esboçando o sorriso e ensaiando mentalmente o comprimento que dará aos seus pais...
Porém, ela é impedida quando algo metálico e extremamente fino se apossa de sua garganta, apertando-a cada vez mais firme e forte, sufocando-a lentamente até que os pulmões ardam por ar.
Coraline tenta se soltar, mas apesar de todos os seus esforços, ela sente se afastar cada vez mais de seus pais, da luz que os cerca. Ela é puxada cada vez mais, sem nem o menos saber o que, de fato, está a puxando com tanta violência e desespero.
A menina puxou a mão de metal, libertando-se do toque fatal conseguindo finalmente puxar uma quantidade imensa de ar. Não pode ser ela! Não pode! Não pode!
Coraline gritou na própria mente.
Tinha que ser outra coisa. A Outra Mãe estava presa no outro mundo, ela não conseguiria fugir de lá e ir atrás dela.
Não pode ser real. NÃO É REAL!
Os pulmões gritavam. O coração batia contra o peito com violência. A mente já sabia quem era, reconheceria aquele odor de enxofre e de morte há quilômetros de distância, porém não queria acreditar que estava de novo naquele pesadelo, que estava prestes a voltar ao lugar onde sua pacata vida mudou para todo o sempre.
Coraline tentou prender as pernas no chão, ficar parada e impedir que tudo se repetisse novamente, mas a força que aquele ser usava para puxá-la era sobrenatural.
As lágrimas surgiram nos seus olhos por que, diferente daquela vez, ela estava sozinha.
– Mãe! – Coraline conseguiu gritar.
Era a única coisa que queria naquele momento. Queria sua mãe de verdade. Queria que aquele pesadelo acabasse, queria tirar a maldita Bela Dama de perto de si e empurrá-la de vez para o outro mundo e trancá-la... Mas não adiantaria em nada, pois aquela maldita chave estava no fundo do poço.
Coraline fui novamente puxada, dessa vez sendo forçada a entrar em um cômodo azul, com poltronas bem acomodadas, uma lareira com três globos de neve – eram quatro, mas um acabou quebrando e deveria ter sido substituído há muito tempo – sob o quadro de um menino vestido de azul.
– Minha Coraline. – Foi um sussurro, mas a sensação que Coraline teve foi de que tivessem ligado um filme na frente de seus olhos e tudo surgiu na frente dos seus olhos como se os eventos se estivessem repetindo. – Se acalme... Mamãe está aqui.
O medo a dominou completamente.
Começou a se debater novamente, arranhando-se consequentemente nos ossos pontiagudos da outra mãe que permanecia com os dedos de agulhas em seu pescoço, sufocando-a, sufocando-a.
Matando-a.
Como que para admirar o estrago que estava fazendo com ela, a Outra Mãe teve força para virá-la de frente.
Coraline fechou os olhos, apertando-os com força em uma tentativa vã de negar que aquilo estava acontecendo, mesmo que seus sentidos lhe dissessem que tudo era real, que tudo não pararia até a sua morte. Não, não até sua morte... Até que alguém tivesse mais inteligência que ela e fizesse o mesmo que ela fizera a um ano e a libertasse...
O som de um raio cortando os seus gemidos a fez abrir os olhos de espanto.
Lá estava ela...
A Outra Mãe.
A Bela Dama.
O vazio no rosto que o gato preto fizera da última vez que a vira estava prendido com os mesmos botões pretos que cintilaram com o raio luminoso, só que diferente da primeira vez, eles estavam costurados de uma maneira desleixada, torta, totalmente aleatória. Era como se ela não tivesse tido controle da mão quando o costurara de volta...
Seus ossos estavam expostos, cada vez mais salientes sob o mesmo vestido preto, rasgado propositalmente, revelando que foram feitos em um ato de desespero. Seus braços e a mão que ainda segurava o pescoço de Coraline eram do mais puro metal que refletia a luz que rompeu a noite e o rosto amedrontado da garota.
Um sorriso surgiu nos lábios pretos, muito mais largo e revelador do que Coraline já vira. Era o sorriso de alguém que batalhara para ter alguma coisa e finalmente tem em suas garras. O sorriso do mais puro desespero mesclado com o prazer.
Aos poucos, a voz que aterrorizou os sonhos de Coraline à noite retumbou na sala como se fosse uma condenação, últimas palavras antes do destino dela ser traçado.
– Eu disse que você seria minha, Coraline. Você vai ficar comigo...
Uma das versões distorcidas dos camundongos saltadores apareceu no ombro da Outra Mãe, carregando um novelo de linha, uma agulha tão fina que chegava a cintilar e um par de botões reluzentes.
Com um último murmuro, um último sopro de morte no rosto de Coraline, a Outra Mãe completou:
– Para sempre...
A agulha e os botões se aproximaram perigosamente dos olhos de Coraline.
– Não... – Foi à última coisa que ela murmurou antes de fechar os olhos e cair na escuridão.
Ela perdeu. Ela perdeu tudo.
Quando os abriu de novo estava suando e o coração se chocando contra o peito como se tivesse corrido uma maratona ao redor da cidade e depois corrido ainda mais ao redor do Palácio-Cor-de-Rosa.
Estava na cama, mas seu corpo acabara respondendo ao pesadelo e ela acabara sentada sob os cobertores. Alguns dos travesseiros, assim como o ursinho de pelúcia marrom que tinha desde pequena, estavam caídos no chão.
Por precaução, ela levou as mãos ao rosto, tateando-o em busca de linhas, sangue ou o contato gelado dos botões. Contudo, tudo o que encontrou foi as pálpebras cansadas e doloridas.
– Foi um pesadelo. – Murmurou para si mesma deslizando os dedos pelo cabelo tingido de azul que se encontrava em uma confusão de fios.
Por mais que a escuridão não a deixasse mais confortável, foi bom saber que aquilo fora apenas outro pesadelo. Ela estava segura até então. Nunca ficaria confortável, mas pelo menos estava segura... Naquele momento.
Um arranhar na janela a deixou nervosa, mas quando os olhos se encontraram com o par de olhos azul safira, rodeados por pelos pretos macios e bigodes longos que balançavam ao vento, sensação passou rapidamente e o que restou foi uma pontinha de esperança.
Ao levantar ela não se preocupou com o frio da madeira ou o estalar que ela fazia.
A noite recobria todo o horizonte que cercava o Palácio-Cor-de-Rosa, revelando uma quantidade absurda de estrelas que a fez lembrar por um momento do outro mundo e da quantidade de estrelas que cobriam o céu. A lua estava cheia e os seus raios se derramavam pela floresta do lado direito da casa de onde ressoavam barulhos noturnos como o chicotear do vento nas folhas das árvores.
Coraline caminhou rapidamente até a janela e a abriu, deparando-se com uma espécie de sorriso iluminando o rosto do bichano que a encarava com algo parecido com conforto.
Ela estendeu a mão e o afagou.
O Gato Preto era um conforto, pois ela sabia que, aonde quer que fosse, ele seria o único que a lembraria que estava segura por enquanto. Ele simbolizava a realidade, algo que a Bela Dama nunca poderia recriar e moldar a sua maneira. Ele era especial demais.
Parecendo ler seus pensamentos, ele lambeu os dedos de Coraline em agradecimento, aproximando-se para entrar no aposento da jovem.
Coraline o pegou no colo e o levou até a cama.
Ele era a sua única companhia, seu protetor, seu lembrete de que nunca estaria sozinha.
Deitando-se com o bichano ao lado de seu corpo, reconfortando-se com o calor das cobertas e da garota, ele logo fechou os olhos.
Coraline o admirou por um tempo.
Embalada por aquele ronronado que saia do fundo da garganta do felino, suave como uma canção de ninar, ela adormeceu. O primeiro sono tranquilo que tivera depois de um ano.
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