O copo de whisky estava erguido no ar, um segundo suspenso no tempo enquanto Bucky Barnes ponderava se devia esticar a mão e pegar o objeto como quem aceita uma oferta de paz. Mas e se fosse uma armadilha?
Podia ter algo na bebida, não é? Embora parecesse um tanto improvável, afinal a garrafa estava trancada ali desde sempre. Além disso, haviam questões mais importantes no momento, como lidaria com o fato de ter ferrado com a missão?
Roxanne respirou fundo, seus olhos escuros um misto perfeito de mistério e perigo, ela colocou o copo sobre a mesa ao lado de Bucky e deu meia volta. Sim, ela ficou de costas pra ele. E dar as costas ao inimigo não era algo esperto, ou seja, aquilo talvez fosse o indicativo de que ela não enxergava Barnes como uma ameaça...
Ele absorveu essa informação, sua mente buscando uma maneira de consertar tudo e salvar a missão, enquanto seus olhos estavam muito mais preocupados em analisar o corpo feminino, focando no quão curta aquela camisola era, de modo que enquanto Roxanne se servia de um copo de whisky, era quase possível ver a polpa de sua bunda com o movimento.
Foco, Bucky Barnes. Não seja estúpido. Ele repreendeu a si mesmo, piscando algumas vezes.
— Me conta. Qual foi o gatilho que te trouxe de volta? — Roxanne perguntou de repente, terminando de servir sua bebida e sentando-se em uma cadeira confortável ao lado da lareira do escritório.
Bucky pensou depressa, então ela achava que ele havia despertado, não desconfiava que tudo aquilo era uma farsa e que Barnes estava ali a mando do governo. Talvez pudesse usar isso a seu favor.
— Eu tive um pesadelo... — Ele respondeu finalmente, pegando o copo de whisky deixado sobre a mesa e dando um gole.
— Sonhos, interessante... — Roxanne soprou, seus olhos se perdendo nas cinzas da lareira enquanto ela bebericava o whisky caro sem pressa. — Provavelmente era por isso que eles mantinham o Soldado Invernal em criogenia, um modo de retardar a capacidade do cérebro de se recuperar.
Era como se estivesse processando informações para algo mais importante. O que não parecia fazer muito sentido dentro daquela situação...
Barnes notou que pela primeira vez não precisava ficar inerte, ele podia de fato falar com a Donna e quem sabe obter algumas respostas diretas para o enigma que ela era.
— Você parece saber muito sobre o Soldado Invernal, para alguém que sequer sabia meu nome quando cheguei aqui. — Ele lançou, um misto de acusação e perspicácia na voz.
Roxanne sorriu, era quase como se estivesse satisfeita por Barnes ter dito algo que não fosse puramente a resposta para uma pergunta.
— Culpada. — Ela moveu o copo de whisky, enquanto encolhia os ombros. — Sinto muito não ser honesta com cada homem que o pretenso líder da Hydra coloca dentro da minha casa.
A justificativa era coerente. Bucky nada disse, ainda não sabia para qual lado conduzir aquela conversa, então preferiu deixar que Roxanne ditasse o rumo, assim ele teria tempo de pensar em algo que pudesse ser útil. Seu objetivo era conseguir algumas respostas e, com um pouco de sorte, talvez fosse possível até mesmo colocar a Operação Roleta Russa de volta nos trilhos.
Ele ainda não sabia como, mas esperava ter uma solução até o final da conversa.
— Mas pelo visto você tem a capacidade de lembrar coisas do período que estava sendo controlado. — Roxanne comentou, depois de analisar Barnes por alguns instantes.
— Tenho. — Ele moveu a cabeça de forma afirmativa. — Me lembro de tudo.
— Isso é bom, seria péssimo se você esquecesse quem é seu verdadeiro inimigo. — Ela sorriu, o tipo de gesto cheio de um significado ambíguo, como uma indireta.
— Isso é você insinuando que não é minha inimiga? — Barnes pescou o sentido, havia esse sorriso de canto em seus lábios, quase como se suas palavras pingassem sarcasmo.
Ambos se encararam por um momento, enquanto bebiam de seus copos. Os olhos negros de Roxanne presos nos azuis o tempo todo. Ele obviamente tinha a atenção dela agora.
Bucky jamais diria isso em voz alta, mas havia algo de extremamente sexual no ar, e isso pouco tinha a ver com o fato de estarem praticamente semi nus ali, sozinhos. Ou talvez tivesse...
— O que o que importa é se você me vê como sua inimiga... — A italianinha declarou, e o movimento que ela fez para cruzar uma coxa sobre a outra capturou o olhar de Barnes como um imã. — É isso que acha?
Todas as outras vezes, enquanto fingia ser o Soldado Invernal, Bucky fez seu melhor para disfarçar qualquer indiscrição, qualquer olhar furtivo e se manter perfeitamente frio perto de Roxanne, mas naquele momento isso era desnecessário, o disfarce estava destruído e, pela primeira vez, Barnes podia olhar para onde quisesse. Então, sim, ele fez questão que a italianinha soubesse exatamente qual era o foco de seus olhos azuis gélidos.
Podia ser algo um tanto estúpido para se fazer naquele momento, afinal a situação geral tinha tudo pra se tornar um grande problema em breve, e talvez esse fosse o ponto: Bucky não sabia se seria entregue para Strovalenko, se teria que lutar contra a máfia ou se acabaria tendo que fugir as pressas para os Estados Unidos. A missão estava por um fio e tudo era incerto, então ele se achou no direito de olhar para onde quisesse, simples assim.
Subiu as íris devagar pelo corpo de Roxanne, encontrando os olhos dela e dando um sorriso de canto, antes de se encostar na grande mesa de mogno e beber outro gole de seu whisky.
— O que eu acho é irrelevante, porque eu sei que você é a Rainha da Máfia Italiana. — Respondeu finalmente e isso arrancou um sorriso da morena, covinhas e tudo.
— Vou tomar como elogio o fato de você ter me chamado de rainha, foi muito lisonjeiro da sua parte. — Ela declarou, apoiando os cotovelos nos braços da cadeira e segurando seu copo com ambas as mãos, seus olhos de obsidiana ainda nele. — Você ainda não me disse se prefere que eu te chame de Bucky...
Normalmente Barnes diria que sim, mas por algum motivo não foi isso que saiu de seus lábios naquele instante:
— Bucky é apenas para os amigos.
Não era mentira, de fato, porém não foi o motivo pelo qual deu essa resposta. Seu primeiro nome ficava muito bem nos lábios de Roxanne, essa era a verdade...
— Entendo. — Ela respondeu neutra. — E o que pretende fazer agora, James? Fugir daqui e voltar para a sua vidinha nos Estados Unidos?
— Não tente me fazer ameaças. — Respondeu, achando que aquele interesse soava sim como uma técnica de intimidação.
Embora ele devesse desejar aquilo mesmo, se realmente tivesse “despertado” do controle da Hydra... O que não era o caso ali.
— Ameaças? — Roxanne repetiu com uma risada irônica. — Estou fazendo uma pergunta honesta. Quando eu fizer uma ameaça pode ter certeza que você vai saber, James.
Ele nada disse, não podia falar sobre nenhuma decisão ainda, porque afinal precisava encontrar uma solução para salvar a Operação que havia colocado a perder.
— Eu imagino que o governo vá monitorar você, na verdade acredito que já estivessem fazendo isso antes, pra saber se você era uma ameaça ou não. — A Donna comentou, seus olhos focando em seu próprio copo já vazio. — Mas agora que alguém tão facilmente conseguiu ativar seu alterego controlado, eles vão ser mais hostis com você.
Na verdade, a primeira parte do que Roxanne disse estava totalmente certa, — as sessões com a Doutora Raynor eram exatamente uma forma de monitorar o Soldado afinal, — e a segunda só não estava porque Barnes era um agente do governo naquele instante.
— Onde você quer chegar? — Ele questionou, logo depois de virar seu copo de whisky e pousá-lo vazio sobre a mesa.
Queria saber exatamente qual era a linha de raciocínio da Donna da máfia...
— Você sabe que dificilmente existe uma versão disso em que você vai se aposentar, adotar um gato e “ficar de boa”, certo? — Ela comentou quase ácida. — Seu governo não vai abrir mão de um supersoldado assim. Ou você é aliado deles, ou é o inimigo, agora mais que nunca. — Ela se levantou e seguiu para a garrafa de whisky. — Não foi exatamente isso que fizeram com Steve Rogers?
Barnes franziu as sobrancelhas, nunca tinha analisado a situação por essa ótica. Mas era verdade. Quer dizer, Steve mal foi encontrado no gelo e ficou em posse da SHIELD, sendo jogado de missão em missão, sem pausa, e no instante em que se negou a fazer o que o governo queria, assim que ele se recusou a assinar o Tratado de Sokovia, ele se tornou um inimigo do Estado. Um fugitivo. Nunca houve mesmo uma chance de paz e calmaria para ele.
E quando ao próprio Bucky, bom, ele teve alguns meses de folga, verdade, mas o governo ainda estava lhe monitorando com as sessões de terapia e talvez fosse questão de tempo para que ele fosse recrutado para alguma missão secreta que só ele poderia executar. Só estavam esperando para ter certeza de que ele era mesmo estável...
Espera. Ele foi convocado para a tal missão que só ele poderia executar. E ainda que Valentina dissesse que o Alto Conselho era uma aliança de vários líderes mundiais, não deixava de ser um tipo de Governo, certo?
Então, de um jeito ou de outro, Roxanne estava certa, mesmo que ela própria não soubesse inteiramente disso...
Enquanto Barnes permanecia em silêncio, ela apoiou o copo vazio sobre a mesa, como se perguntasse se ele queria mais whisky, Bucky no entanto se aproximou dela e se apossou da garrafa inteira, tomando diretamente do gargalo, ganhando um olhar contrariado da Donna.
No fundo ele gostou de saber que sua falta de modos irritava a italianinha.
— Do meu ponto de vista você tem que fazer uma escolha agora. — Ela se afastou, encostando-se na mesa de mogno na qual o próprio Bucky estava segundos antes. — Você pode decidir fugir, e eu nem vou te impedir. Mas vá sabendo que seu governo não é confiável e mesmo que ele fosse, Strovalenko vai te perseguir, vai te achar e vai fazer de tudo pra matar você, com requintes de crueldade e muita humilhação antes do gran finale.
Barnes sentiu que a conversa se encaminhava para algo que beneficiaria sua missão.
— “Fazer uma escolha” implica em ter opções. Quais são as outras? — Perguntou com cautela, torcendo para que a própria Roxanne sugerisse algo que resolvesse o problema que ele criou quando acabou tendo parte do disfarce descoberto.
— Eu posso ajudar você, te prover meios de ficar fora do radar de Strovalenko quando fugir, te manter seguro longe daqui. — Ela declarou com a calma de quem faz negócios de vida ou morte todos os dias.
— Eu não preciso que você me proteja de nada. — Bucky tentou não se ofender, mas seu tom falou por si só. Será que Roxanne sempre o veria como um tipo de criança?
Era quase ultrajante, porra, ele era um dos assassinos mais famosos do mundo, mesmo que odiasse isso...
A Donna se aproximou, perto o bastante para invadir o espaço pessoal de Barnes e entorpecê-lo com seu perfume de rosas e algo mais, porém isso foi apenas no intuito de tirar a garrafa de whisky da mão dele e dar um longo gole na bebida alcoólica direto do gargalo.
Bucky perdeu o foco por um segundo, ou melhor, havia apenas um único foco, a forma como a garganta feminina se movia para engolir, os fios negros do cabelo dela escorregando por seu ombro delicado, os seios subindo e descendo devagar com a respiração, a forma que os lábios rosados estavam firmes em torno do gargalo...
Roxanne Domenichelli era uma maldita sereia de terra firme, tudo nela era uma armadilha para levar um homem a ruína.
— Ou você pode ficar aqui... — Ela sugeriu como se fosse nada, focando seus olhos negros nos azuis gélidos e devolvendo a garrafa de whisky.
Barnes teria feito qualquer coisa que ela pedisse com aquele olhar...
Ele piscou algumas vezes, sabendo que de fato era uma boa opção para o seu atual problema. Isso manteria a Operação Roleta Russa de pé, pelo menos mais algum tempo.
— E por que eu faria isso? — Questionou, como se aceitar estivesse fora de cogitação. Precisava ir com calma ali, se mostrar inclinado a ficar logo de cara seria suspeito, fora isso, talvez ainda pudesse obter algumas respostas antes de concordar com qualquer proposta de Roxanne.
— Por que a Hydra tirou tudo de você, e fez um inferno da sua vida por décadas. Você mais do que ninguém deveria desejar acabar com eles. — Ela disse como se fosse a coisa mais óbvia de todas e então se afastou diversos passos, para o lado oposto da mesa.
— Mesmo que esse seja o meu desejo, por que eu confiaria justamente em você pra isso? — Bucky devolveu, se virando um pouco para que voltassem a estar de frente um para o outro, mesmo com o tampo de mogno entre eles. — Aliás, por que eu confiaria em você pra qualquer coisa?
Era uma pergunta pertinente dentro da situação, afinal Bucky tinha que manter a Operação de pé, mas Roxanne não sabia disso, ela acreditava que o Soldado Invernal realmente foi ativado, e então controlado por Strovalenko, antes de “acordar” ali. Sendo assim, usar essa oportunidade em benefício próprio era o mais inteligente a se fazer no momento.
De uma forma ou de outra Barnes ainda estava sob um disfarce. Tinha que ser ainda mais inteligente agora e, principalmente, não podia ser ingênuo e se deixar levar pela aparência feminina. Assim como toda Sereia, a Donna da Máfia certamente era traiçoeira...
— Dois motivos. — Ela ergueu os dedos para ilustrar. — O inimigo do meu inimigo é meu amigo. E eu sou, como você bem disse, a rainha da máfia, minha palavra vale muito.
Bucky estreitou os olhos na direção dela e riu de canto.
— Inimiga do meu inimigo? Você é a noiva do meu inimigo. — Ele retrucou de forma perspicaz. — E sua palavra vale muito? A primeira coisa que você fez quando me conheceu foi mentir pra mim.
Roxanne riu, e fez isso de forma tão espontânea que conseguiu ficar ainda mais bonita.
— Você é esperto. — Ela declarou como quem faz uma descoberta. — Gostei. Fica bem em você.
Barnes nada disse, queria que Roxanne respondesse a pergunta e não que se esquivasse dela com um gracejo.
A Donna respirou fundo, pensou por um instante, mas não pareceu gostar tanto assim da solução que surgiu em sua mente.
— Vou te dar um motivo pra confiar em mim então... — Ela declarou, mas não se moveu de início, como se ainda estivesse ponderando se aquilo era mesmo certo.
Por fim, a italianinha pareceu se decidir finalmente e contornou a parte direita da mesa em direção ao cofre que o próprio Bucky havia aberto.
— Esse é o Damian Domenichelli. — Ela colocou a mesma foto do garotinho com o ioiô sobre a mesa. — Meu irmão. — A foto que veio em seguida era de toda a família Domenichelli junta, Roxanne devia ter pouco menos de dez anos, mas era perfeitamente reconhecível com seus olhos tão negros quanto obsidianas. — A Hydra o levou quando ele tinha cinco anos.
Bucky poderia ter esperado qualquer coisa, menos aquela revelação...
— Por que? — Foi a única coisa que conseguiu dizer, enquanto sua mente se desdobrava para entender todas as implicações por trás daquela informação.
— É uma longa história... — Roxanne moveu os ombros sem qualquer animação, seus olhos focados na imagem de sua família, perdidos ali como se ela estivesse se afogando em lembranças.
— Bom, pelo visto eu tenho tempo. — Bucky devolveu, impelindo a morena a falar.
Mais do que nunca, precisava saber de tudo.
A italiana respirou fundo, comprimindo os lábios antes de assentir sem qualquer convicção. Ela não queria contar.
— Meu pai fazia negócios com a Hydra naquela época, eu tinha nove ou dez anos, mas a parceria vinha desde um pouco depois que eu nasci. Uma década inteira de negócios. Esse homem conhecido como “O Representante”, aparecia por aqui esporadicamente e a Sicilia era usada como o ponto de armazenamento da organização, as armas e outras coisas ficavam guardadas no Porto, de onde facilmente podiam ser manejadas para qualquer lugar via ar ou mar. Era um lance lucrativo... — A explicação veio prática, sem emoção. — Minha mãe irritou o Representante e ele levou o Damian como forma de vingança.
— Irritou como? — Bucky questionou com cautela, haviam furos demais naquela história ainda.
— Ela tentou tirar uma coisa dele... — A voz fria de Roxanne, parecia se opor a forma como seus olhos brilhavam contra a luz quente do abajur.
— E o que era essa coisa? — A pergunta fez com que os olhos escuros da Donna focassem em Barnes, quase como se ela estivesse pessoalmente ofendida com a curiosidade dele.
E, sim, talvez fosse invasivo perguntar algo que ele conseguia sentir o quão íntimo era. Porém aquilo não era uma conversa entre dois amigos, onde um procura dar apoio ao outro. Aquilo era apenas um interrogatório dentro de uma missão secreta que visava derrubar organizações criminosas e perigosas. Roxanne podia não saber disso, mas aquela era a verdade. Bucky estava usando aquela conversa para obter informações.
Segredos podiam ser a chave da vitória naquele jogo e ele sabia muito bem disso.
— Se não pode me contar uma simples história de quase quinze anos atrás, como espera que eu confie em você? — Ele declarou, porque em partes era verdade. Roxanne tinha dito que ele devia ficar, mas antes de responder Barnes precisava saber de tudo.
Ela focou os olhos na foto do irmão, seu polegar acariciando o rosto dele de um jeito melancólico. Sua postura pensativa aliada a luz quente e baixa que vinha do abajur dava um peso estranho para a cena, e talvez Bucky soubesse, mesmo antes de ouvir, que ele não gostaria da história.
— O Representante era um homem cruel, que fazia coisas cruéis com a minha mãe... — Roxanne declarou finalmente, os olhos ainda na foto, sua voz tentando se manter firme, mas falhando um tom. — Ela contou para o meu pai, mas ele não acreditou nela, suponho que era mais lucrativo acreditar na Hydra. — Uma risada amarga escapou de sua garganta. — Eu me lembro de perguntar para ela uma vez, porque não podíamos apenas ir embora. Ela me disse que essa era nossa casa, nossa ilha por direito, nosso povo por dever. O sangue Domenichelli estava em nossas veias, não nas veias do meu pai. — Ela parou, respirou fundo e focou os olhos em Bucky por um momento. — Ele ganhou o sobrenome através do casamento. Antes era só um dos homens de confiança do meu avô, mas isso não vem ao caso agora...
A italiana colocou as duas fotos juntas e as guardou no cofre novamente. Então voltou a se encostar na mesa de mogno, quase sentada no tampo, parcialmente de lado para Bucky.
— As mulheres nunca tiveram voz na Máfia. Historicamente esse é um negócio de homens, então é claro que meu pai sempre agiu como se fosse um verdadeiro Domenichelli, sempre honrou as “tradições”... — Ela deu outra risada amarga. — Mas ele esqueceu de colocar a família na frente dos negócios. Esse devia ser o lema “tudo que importa é a família”. Meu pai sempre preferiu viver sob o “tudo que importa é o dinheiro”. — Ela deu de ombros, mas não parecia conformada e sim irritada com isso. — Enfim, minha mãe suportou isso, o descaso do marido e os abusos do sócio importante dele...
Roxanne trincou os dentes, sua mão direita estendida no ar enquanto ela pedia a garrafa de whisky. Ela bebeu um gole longo, para então apoiar os braços na mesa e encarar uma réstia de luz que deslizava pelo chão.
Barnes sentia sob sua pele que a coisa ficaria pior, que a história tomaria rumos que seriam ainda mais difíceis de escutar. Pensou em pedir que Roxanne parasse, mas no fundo ele sabia que não podia colocar seus sentimentos acima do que a missão pedia.
— Um dia o Representante chegou em casa e eu estava na piscina com o meu irmão. Meu pai tinha saído para algum dos negócios dele e minha mãe estava com a Benedetta lá em cima. Ele pediu para o Damian ir chamar a minha mãe e ficou comigo. — Roxanne abaixou o olhar para a garrafa balançando entre seus dedos. — Ele tinha um jeito doce de falar com a gente, pegou no meu cabelo como se fosse a coisa mais normal de todas, deslizou os dedos na pele do meu braço com um sorriso no rosto e então minha mãe chegou...
O coração de Barnes batia apertado, seu estômago estava totalmente embrulhado e desconfortável. Seu punho de vibranium estava fechado tão forte que rangia. Ele nunca imaginou que podia odiar alguém que sequer conhecia.
— Nada pior aconteceu comigo, mas acho que minha mãe notou que não podia ficar aqui esperando, porque estava bem claro que o Representante tinha um novo alvo em vista. — Roxanne continuou contando. — Eu acredito que foi nesse dia que ela decidiu fugir comigo e com meu irmão. Mas isso nunca aconteceu... Eu não sei como, mas com certeza o Representante ficou sabendo, ela estava indo nos buscar na escola quando o carro dela capotou. Não soubemos de imediato, é claro, e antes mesmo que a notícia chegasse, enquanto esperávamos alguém ir nos buscar e brincávamos de esconde-esconde sem nos preocuparmos com o atraso. Damian sumiu. — Os olhos de Roxanne se encheram de lágrimas, mas ela piscou algumas vezes para impedir que escorressem. — O Representante matou a minha mãe e levou meu irmão logo em seguida. Não sei se ele pretendia mesmo levar o Damian, talvez o alvo fosse eu... mas eu estava me escondendo naquela rodada e meu irmãozinho mais novo deve ter sido um alvo mais fácil, já que os homens do meu pai chegaram logo em seguida.
Ela ergueu a cabeça finalmente, pousando a garrafa sobre a mesa e procurando os olhos gélidos de modo firme e quase frio, não fosse pela melancolia em suas íris abissais.
— Minha mãe era apenas um brinquedo para aquele homem. Foi isso que ela tentou tirar dele. Então o Representante a matou e levou meu irmão com ele. — Roxanne declarou como quem dá uma sentença de morte. — Isso é o bastante pra você?
Barnes respirou fundo, todas as atitudes da Donna da máfia pareciam tão transparentes agora, a ação para desmantelar a operação que estava traficando garotas, a frase sobre aquela ser a ilha dela por direito e dever... Mesmo a forma como ela vinha tratando o Soldado Invernal desde o começo fazia um pouco mais de sentido finalmente.
— Depois de tudo isso, como seu pai pôde ser conivente com seu noivado com o líder da Hydra? Por que você faria isso? — Ele questionou, sua voz mais baixa e calma, então se moveu um pouco e se encostou na mesa também, exatamente do mesmo jeito que Roxanne estava, apenas a cadeira giratória própria de escritório entre eles.
— Meu pai não se importa, James. — A italiana respondeu como se fosse a coisa mais óbvia de todas. — Sempre foi sobre o dinheiro pra ele. Fazer negócios com a Hydra era lucrativo demais, arranjar inimigos desse nível era um risco que meu pai nunca correria, afundaria a máfia totalmente. Quando Damian foi levado ele escondeu isso da famiglia, fez os mais próximos se calarem, ele forjou a morte do meu irmão no mesmo acidente de carro que matou minha mãe para não comprar uma briga que não podia ganhar. E então apagou qualquer traço do nascimento do Damian para o mundo exterior, assim aqui dentro da ilha a grande maioria pensa que a morte do meu irmão é uma tragédia tão grande que o Dom não suportou que fosse exposta para o mundo... Lá fora é como se Damian Domenichelli nunca tivesse existido.
Bucky entendeu o motivo de não haver registros sobre o irmão de Roxanne nos arquivos que o Alto Conselho forneceu. Ainda que para o Soldado parecesse extremamente estranho um pai apagar o filho daquela forma, estava claro pelo olhar no rosto da Donna que ela estava falando a verdade.
— Meu pai abriu mão do Damian, porque no fundo ele sabia que perderia tudo se entrasse nessa guerra. Ele nunca ganharia. E ele sempre se importou mais com os bens materiais do que com todo o resto. A ganancia tirou o melhor dele. — Ela explicou e sua revolta sobre isso era bem clara. — Então meu casamento com Viktor é na verdade a melhor coisa de todas para o meu pai, é reestabelecer negócios que ele nunca quis cortar. Além disso, ele não sabe o motivo verdadeiro do noivado. Para o meu pai tudo é o que parece ser. Mesmo porque, ele acha que já Damian está morto, todo mundo que sabe da história também acha isso.
Barnes compreendeu o que Francesco Greco quis dizer quando acusou Roxanne de estar perseguindo um fantasma.
— Mas você acha que ele está vivo. — Concluiu, e isso atraiu o olhar negro em sua direção.
— Eu tenho certeza. — A Donna respondeu com convicção, como se a simples possibilidade do irmão estar morto fosse algo capaz de matá-la também.
Bucky não quis falar sobre as probabilidades, porque Damian devia ter apenas cinco anos quando foi levado afinal... quais eram as chances de ainda estar vivo?
Não era uma boa conversa para se ter naquele instante, principalmente quando estava obtendo tantas respostas. Precisava continuar fazendo as perguntas certas, mesmo que isso parecesse errado no momento. Afinal estava basicamente se aproveitando da vulnerabilidade de Roxanne.
— E como isso se encaixa com o seu noivado? — Questionou, esperançoso de conseguir a verdade.
— Eu não sabia de nada disso que contei, naquela época. Eu tinha dez anos e a primeira coisa que me aconteceu foi ser afastada daqui. Eu fui calada de todas as formas para reproduzir para o mundo apenas o que meu pai queria. Damian estava morto, era essa a verdade que eu precisava contar para todas as pessoas ao meu redor no colégio interno... — Por alguns instantes Roxanne pareceu apenas uma garotinha desemparada e solitária, e o coração de Barnes apertou um pouco com essa visão traiçoeira.
Não podia se importar com ela, uma história triste não mudava quem Roxanne era afinal. A rainha da máfia. Uma criminosa. Isso não mudava por causa de meia dúzia de boas ações e de uma intenção nobre. Ela cometia crimes todos os dias, pequenos, verdade, mas crimes ainda assim.
— Com o tempo eu fui montando esse quebra-cabeças, quanto mais velha eu ficava mais tudo isso fazia sentido. Então, enquanto meu pai jogava o império dele na ruína sem ter mais uma organização nazista para bancar seus luxos, eu passei a procurar pelo meu irmão em segredo. — Ela continuou contando. — Levou anos para conseguir uma simples pista, os arquivos que Natasha Romanoff vazou depois da queda da SHEILD/Hydra ajudaram um pouco. Eu imaginei que eles poderiam estar fazendo com Damian a mesma coisa que faziam com as chamadas Viúvas Negras. Ou a mesma coisa que fizeram com você.
O olhar dos dois se encontrou na quase penumbra, toda a conversa de uma semana antes fez sentido. Todas as perguntas que Roxanne fez naquele dia era para saber se Damian teria uma chance de escapar caso estivesse vivendo o mesmo. Por isso a pergunta específica sobre Steve Rogers.
“Ele deveria ser a coisa mais próxima de um irmão pra você...” Ela dissera naquela noite, e isso assumiu um significado muito doloroso naquele momento. Porque Roxanne certamente queria que o irmão lembrasse dela, que o vínculo dos dois resistisse a qualquer coisa que a Hydra tivesse feito com ele.
E junto com isso, todo o resto fez sentido também, o fato de que ela nunca dava ordens cruéis ao Soldado Invernal, a forma protetora como o tratava, quase como se ele fosse uma criança. A importância que toda a coisa de consentimento tinha para ela. Tudo isso fazia sentido agora. Cada detalhe...
“Ele é um gatilho pra você.”
“Ele não é o Damian.”
Roxanne olhava para o Soldado Invernal e via todas as coisas terríveis que podiam ter acontecido com o seu próprio irmão.
Bucky se sentiu repentinamente mal, porque ele conseguiu pensar em algo que a própria Roxanne não parecia ter pensado ainda... Damian devia ter cerca de vinte agora, se estivesse vivo, mas ele foi sequestrado aos cinco, nesse caso não havia uma vida da qual pudesse se lembrar.
Se ele tivesse sobrevivido, e essa era por si só uma possibilidade extremamente improvável, não haveria nele anos e anos de memórias, e foi exatamente isso que salvou o próprio Barnes no fim das contas. Ele teve uma vida antes de ser o Soldado Invernal.
Um garoto de cinco anos provavelmente não se lembraria de nada. Apenas da Hydra.
— Você encontrou alguma pista sobre ele? — Bucky questionou, querendo impedir o rumo macabro de seus próprios pensamentos.
— Não diretamente, mas depois de muitos anos de busca, eu cheguei a uma base da Hydra em Paris, mas ele não estava lá. Isso foi mais ou menos na época do blip. — Roxanne respondeu e agora parecia quase aliviada de ter contado aquela história para alguém.
A julgar pelo que o próprio Frank tinha dito, era provável que ninguém visse muito sentido naquela missão. Todos deviam achar que Damian Domenichelli estava morto há anos...
— Foi quando eu descobri que aquela não era a única base da Hydra ativa, eles têm diversos projetos ainda em andamento, e a maior parte das “Cabeças”, como eles chamam esses membros antigos com poder de comando, ainda está vivo e escondido, cada um deles responsável por uma dessas bases. Incluindo o Representante. — Ela prosseguiu.
Bucky franziu as sobrancelhas. Paris na época do blip, era supostamente o lugar e momento em que Roxanne havia conhecido Corinne e Pierre. Aquilo significava que a Donna resgatou os dois de uma das bases da Hydra?
Essa possibilidade se encaixava perfeitamente bem com tudo que Barnes sabia, isso explicaria o ódio que Corinne tinha de Strovalenko e o fato de Roxanne ter sugerido que a francesa deveria ter alguma empatia pelo Soldado Invernal. Na verdade, se eles estavam participando de algum experimento Hydra, isso explicava até mesmo as ótimas habilidades de luta de Corinne e podia ser também o motivo de todos insinuarem que Pierre era um “trunfo”.
Mas o homem não queria lutar, e Roxanne simplesmente permitiu que ele vivesse em paz. Isso dizia muito sobre ela...
— Eu tive que voltar pra casa, porque precisavam de mim aqui, sem meu pai o lugar estava um caos, e honestamente, com ele também estava. Então eu entendi que era hora de assumir meu lugar. Eu sou uma Domenichelli, a máfia é meu direito de nascença, pouco importa se sou uma mulher. Mas ela também é o direito de nascença do Damian. Então nada mais justo do que usar a força dessa organização para encontrar o meu irmão. — A Donna disse firme e decidida. — Mas eu também percebi que ir atrás de cada um dos Cabeças, um por um, levaria bem mais que alguns anos, talvez eu nunca conseguisse encontrar todas as bases, um erro e eu podia causar um alerta em cadeia e colocaria tudo a perder. “Corte uma cabeça, duas nascem no lugar”. Eu precisava de uma solução abrangente, se cada Cabeça escondido comanda uma base, então eu precisava unir todos eles, foi quando descobri que o único evento capaz de unir toda essa gente antiga da Hydra em um só lugar seria o casamento do líder deles, um casamento importante demais para ser ignorado.
— O casamento da herdeira da máfia italiana com o líder supremo da Hydra. — Barnes adivinhou, sentindo algo muito ruim na boca do estômago.
Roxanne planejava um casamento com alguém que odiava apenas para ter uma chance de encontrar o irmão. Isso era prova suficiente do quão longe a Donna estava disposta a ir.
— E pra “melhorar” Viktor é também o líder da máfia russa. Sendo assim, esse casamento é uma unificação sem igual. — Ela completou e o brilho quase venenoso em seus olhos negros dizia tudo. — Isso, é claro se ele conseguir assumir a liderança total, coisa que ele não fez ainda.
— E o Strovalenko não sabe quem você é? — Barnes questionou, porque afinal haviam muitas formas de dar tudo errado naquele plano.
— Não. — Roxanne garantiu. — O Representante levou meu irmão como se isso fosse um assunto pessoal, não tem registros em lugar nenhum, eu teria encontrado se tivesse. Além disso, meu pai ainda fez questão de apagar a existência do Damian também, então, Viktor não tem como saber. Ele era apenas um herdeiro da Máfia Russa até o blip, o pouco que conseguiu de respeito sequer o colocou perto do Representante.
Barnes notou que o Alto Conselho não tinha ideia do quão forte a Hydra ainda era. A organização continuava com as garras bem fundo no mundo, cheio de segredos e membros escondidos. Com laboratórios secretos por toda a parte. Lugares gelados e cruéis, onde várias cobaias deviam estar sendo mantidas prisioneiras.... A Operação Roleta Russa era mais importante do que nunca então.
E derrubar apenas Strovalenko talvez não adiantasse nada. Na verdade, aquele idiota nazista era apenas a isca para atrair os tubarões brancos.
— Mas o Representante vai saber, quando ele ouvir as notícias do casamento de Strovalenko com a herdeira da Máfia Italiana, ele vai saber a verdade. — Bucky ponderou, vendo um problema ali. Não era possível que Roxanne tivesse deixado isso passar.
— Ele vai, e então isso vai deixá-lo confuso. Talvez até curioso. — Ela parecia ter pensado nisso por muito tempo. — Ele vai pesquisar, vai descobrir que meu pai faliu a máfia e que eu, a herdeira desesperada conheci Strovalenko há um ano, sem saber que ele era Hydra, e pedi por ajuda, afinal ele era o líder da Máfia Russa. Forneci homens meus para o exército dele em troca de dinheiro, e no fim ele me salvou da falência. — Roxanne sorriu com um revirar de olhos. — Claro que nessa época eu já havia refeito a fortuna da minha organização, mas só meu pessoal de confiança sabe disso. E então, o Representante como todo bom homem retrógrado de meia idade vai me subestimar, jamais vai acreditar que pensei em nada tão elaborado, e vai simplesmente presumir que meu pai voltou do blip e aceitou a negociação, pois viu como um bom negócio meu relacionamento com Viktor Strovalenko, mesmo quando soube da ligação com a Hydra isso ficou em segundo plano, ninguém desconfiará, já que meu pai facilitou tudo quando apagou meu irmão e continuou a tentar fazer negócios com os nazistas quando viu que iria falir. Eu já tenho o álibi. A ganancia de Vicenzo Domenichelli vai ser um trunfo no fim das contas.
A Donna tinha pensado em tudo, o plano era impecável. Era ousado e arriscado, verdade, mas era admirável, sem dúvida.
— Além disso eu tenho o melhor aliado de todos. — Ela declarou com um sorriso de canto e Bucky estreitou as sobrancelhas sem entender. — O machismo. Que outra ideologia estupida e perfeitamente enraizada na sociedade e na mente de um monte de velho nazista me daria melhor cobertura? Na mente deles mulheres são fracas e inferiores, jamais uma ameaça. — Roxanne bateu os cílios de forma inocente. — Por isso eu sou a pessoa perfeita para destruir a Hydra de dentro.
— É uma jornada por vingança então... — Bucky concluiu, as duas mãos apoiadas no vão entre suas pernas, já que ele permanecia parcialmente sentado no tampo da mesa.
Sequer cogitou duvidar de toda aquela história, cada detalhe se encaixava e a forma como Roxanne contou... Ela não estava mentindo, ele podia sentir em seus ossos.
— É por justiça. — A italiana corrigiu, se desencostando da mesa e puxando a cadeira que estava entre eles para que aquele espaço ficasse vazio e ela pudesse se aproximar alguns passos. — Eu vou resgatar o meu irmão e fazer esses nazistas de merda pagarem. Vou fazer o Representante pagar pelo que fez com a minha mãe.
Era vingança, mas talvez depois de tudo aquilo, Roxanne tivesse o direito de chamar como quisesse...
Barnes respirou fundo, ela estava há uns três passos agora, um pouco mais alta, porque ele permanecia quase sentado na mesa.
— Estou te dando a oportunidade de fazer parte disso, James. — Declarou muito segura de si. — Então o que você escolhe?
— E se eu disser “não”, e se eu escolher ir embora, mesmo depois de tudo que você me contou. — Ele precisava testar o terreno, analisar as variáveis para saber onde estava pisando.
— A porta está ali. — Roxanne apontou sem ressentimento na voz. — Mas o Strovalenko vai te achar e te matar. Vai ser uma longa caçada sangrenta e você certamente vai acabar com muitos homens dele no caminho, mas você é um herói, vai ser pego uma hora ou outra, porque se importa com as pessoas inocentes feridas no processo.
— Eu já fugi da Hydra antes. — Barnes rebateu com um mover de ombros.
Não foram os melhores dois anos da sua vida, ainda assim era verdade.
Roxanne tombou um pouco a cabeça para o lado, deu mais um passo para a frente, mais um pouco e ela estaria entre as pernas abertas de Bucky.
— Mas eles não estavam te perseguindo de verdade na época, estavam? — Ela questionou perspicaz.
Não, a Hydra não colocou seus recursos em caçar o Soldado Invernal, porque afinal eles tinham acabado de serem expostos por Steve Rogers, todos os seus segredos estavam na internet graças a Natasha Romanoff. Eles tinham coisas mais importantes para fazer do que procurar um ativo defeituoso naquele momento.
— Olha... — Roxanne começou neutra, quase compassiva. — Se você não quiser mais lutar depois de tudo que viveu, eu entendo, e posso te ajudar a ficar em segurança. Longe das garras do Strovalenko, longe da Sicilia, em um lugar em que não te encontrem até que tudo isso acabe. E quando acabar, eu vou garantir que você fique longe do seu Governo também. Você pode ter paz, sem truques, sem condições, apenas paz. Aposentadoria definitiva.
Ela parecia falar sério. Barnes percebeu que era a primeira vez que algo assim lhe era oferecido... Porque mesmo em Wakanda sempre foi passageiro, sempre foi “até que você esteja pronto para lutar de novo”.
E de uma forma ou de outra, Bucky sempre soube que tudo acabaria em uma luta...
— Eu vou destruir a Hydra, James. Nem que seja a última coisa que eu faça. E eu não quero soar prepotente nem nada, mas não preciso da sua ajuda pra isso. Mas eles foderam com a sua vida, e mesmo sendo um herói e toda essa coisa, eu melhor do que ninguém vou entender se você sentir ódio e quiser vingança. Você pode ficar e lutar, se quiser. — Roxanne deu mais um passo, ela estava tão perto agora que o tecido gelado de sua camisola roçava no dorso das mãos de Bucky, que permaneciam apoiadas entre as pernas dele. — Mas você tem sim uma escolha, você não tem que entrar em uma guerra da qual não quer fazer parte...
E pela primeira vez pareceu que era mesmo alguém lhe dando uma escolha. Aquilo não era uma convocação obrigatória para a guerra; não era a missão de um melhor amigo que acabaria se matando sozinho; não eram as palavras macabras de uma organização nazista; não era uma questão de lealdade; não era uma Operação que haviam apresentado e dito “você pode negar e escolheremos outra pessoa, mas qualquer outro candidato não vai conseguir chegar tão longe quanto você”. Porque sim, Bucky sabia, quando aceitou a proposta de Valentina, que ninguém mais faria aquilo, que ninguém teria sucesso. Se ele não se voluntariasse então a Hydra continuaria de pé.
Mas ali estava Roxanne Domenichelli, dizendo que derrubaria a Hydra sem ele, dizendo que ele não era necessário para aquele trabalho, tirando o mundo das costas dele e oferecendo paz sem prazo de validade.
E embora aquilo tudo não fosse uma opção, — já que Bucky havia se comprometido com a Operação Roleta Russa primeiro e aceitar paz naquela altura era impossível, — ele não pôde deixar de apreciar o fato de que, pela primeira vez, alguém tivesse oferecido a ele uma escolha real, não a ilusão de uma.
Quão irônico era que justo a Donna da máfia fosse esse alguém?
Talvez Roxanne estivesse fazendo por Barnes apenas o que ela gostaria que alguém fizesse pelo irmão, mas ainda assim, era mais do que a maioria tinha feito...
Não podia aceitar a paz, porque estava atado a todas as mentiras que haviam lhe levado até ali, — coisas que com certeza fariam a italianinha vê-lo com olhos totalmente diferentes — mas com certeza apreciou esse gesto.
Mais até do que deveria...
— Você mesma disse, eles foderam com a minha vida. — Bucky moveu as mãos, as apoiando uma em cada lado do seu próprio corpo. — Como seria se eu quisesse foder com eles de volta?
O rosto de Roxanne iluminou, seus olhos negros brilharam de um jeito tão quente que espalhou um arrepio pelo corpo masculino. Enquanto ela tentava conter o sorriso, o pensamento intruso de provar o gosto daqueles lábios fartos cortou a mente de Bucky e, embora não tenha se movido como mandavam seus instintos, ele não afastou essa ideia rebelde como tinha feito com todas as outras até então.
— Você teria que fingir ainda ser o Soldado Invernal, não com meus aliados de confiança, mas com todos os outros sim. Viktor, Hydra, em público aqui na Sicília, inclusive na frente do meu pai. — Roxanne explicou seu plano e era engraçado que fosse exatamente o que Bucky precisava para manter a operação Roleta Russa. As estrelas pareciam estar se alinhando. — É importante que nem o Viktor e nem mesmo meu pai desconfiem de mim e dos meus planos de verdade. O Viktor por motivos óbvios e meu pai, porque nunca se sabe onde a ganância dele vai levá-lo. Mas não será difícil, porque podemos usar o fato de que eu tomei o poder da máfia como uma cortina de fumaça se necessário. A melhor mentira é aquela que realmente parece ferrar com alguém. E sua utilidade aqui ao dar essa informação, vai garantir que o Viktor não pense em te levar embora, afinal não queremos que ele te submeta as palavras de novo por precaução e nem te coloque na criogenia.
Barnes moveu a cabeça indicando que estava ouvindo e absorvendo tudo. Verdade que a Operação Roleta Russa pedia que ele se aproximasse o máximo de Strovalenko para colher informações, porém depois de tudo que Roxanne disse talvez esse plano já tivesse se tornado obsoleto. Ficar na Sicilia tendo seu segredo protegido e podendo fazer todas as perguntas que precisasse diretamente para Roxanne soava mais produtivo. Ela estava mais perto de saber qualquer segredo da Hydra do que o próprio Strovalenko.
Se haviam outras Cabeças da organização escondidas, outras bases e laboratórios, então também era do interesse de Barnes e do Alto Conselho acabar com eles. E era justamente Roxanne quem tinha o melhor plano no momento...
— Depois vamos ter que continuar tendo paciência para esperar a ocasião perfeita. — Ela completou, ainda parada muito perto. Não que Bucky estivesse achando isso ruim. — O momento em que todos eles estiverem no mesmo lugar, para serem identificados e seguidos, assim a localização das bases e laboratórios vai ser descobertas e todos eles podem morrer em uma ação conjunta. Sem tempo para um alarme.
— E a ocasião perfeita é o seu casamento. — Barnes completou, e embora fosse mesmo um ótimo plano, algo nisso o deixava desconfortável.
— Exato. Não vai ser rápido, verdade, mas pelas minhas contas você tem uns cem anos, então paciência deve ser inerente da sua personalidade, certo? — Roxanne fez uma piadinha sarcástica e Bucky se limitou a rir de canto.
Na verdade, ter cem anos era justamente o que o deixava sem paciência, mas preferiu não verbalizar isso.
— Sabe, James... — A italianinha se aproximou o último passo que faltava, era quase como se Bucky pudesse sentir o calor emanando do corpo dela. Os olhos negros acima dos seus alguns centímetros e o perfume o afogando suavemente. — Eu realmente acho que podemos fazer coisas grandiosas você e eu... — Ela falava sobre foder com a Hydra, é claro. Mas a mente de Barnes preferiu interpretar aquilo de outras formas. Que na verdade também tinham a ver com foder. — O que me diz?
Ele se colocou de pé, o movimento repentino fazendo com que seu peitoral desnudo encostasse nos seios femininos cobertos com seda, o contato lhe causando um choque delicioso por todo o corpo. Estava um pouco mais alto agora, de modo que Roxanne teve que erguer o queixo para que seus olhos se encontrassem, mesmo que fosse uma mulher considerada acima da estatura média.
— Por que parece que eu estou fazendo um acordo com o demônio? — Bucky sussurrou a pergunta, já que a distância inexistente entre eles não pedia que falasse mais alto que isso.
— Porque você está. — Roxanne respondeu e o sorriso em seus lábios fartos era pra ser venenoso, mas pareceu muito sexy para Barnes. Ela aproximou o rosto um pouco mais, como se estivesse prestes a contar um segredo. — Quem mais conseguiria descer tão fundo no inferno pra destruir o lugar de dentro pra fora?
Bucky admirou a forma como a luz quente do abajur incidia nos olhos negros, mesmo ali, tão de perto, não havia qualquer fragmento de cor naquelas íris, e talvez por isso elas fossem capazes de roubar todo o brilho do ambiente com facilidade. Ele desceu a atenção pelo rosto feminino devagar, focando nos lábios e vendo o mundo inteiro se extinguir, sucumbindo no maremoto de desejo que dominou sua mente.
Se inclinasse o rosto só um pouquinho seria capaz de capturar aqueles lábios em um beijo, e isso não pareceu nem remotamente ruim naquele momento. Na verdade, soou como uma ideia muito atrativa.
— Temos um acordo então. — Ele soprou, sem se afastar um só passo, mas movendo suas duas mãos para segurar a de Roxanne, apertando os dedos delicados entre sua mão direita para selar aquele trato.
E embora parte de tudo aquilo fosse mentira, embora Bucky fosse a serpente traiçoeira dentro do paraíso de Roxanne Domenichelli, o olhar quente nos olhos azuis-gélidos deixava bem claro que o desejo dele era bem real.
— Isso não vai ser bonito, James. — A Donna disse de repente e Barnes entendeu essas palavras como um aviso, mas talvez ela falasse de outra coisa, isso foi ficando mais claro à medida que ela prosseguia enquanto se afastava alguns passos, cessando o contato de suas mãos. — Vai ser sangrento em algum ponto. Eu não sou uma Vingadora, farei coisas que o seu heroísmo norte-americano vai desaprovar. — Sorriu com um dar de ombros que fingia inocência. — Mas no fim a Hydra vai conhecer o peso da justiça, eles todos vão pagar. E então você pode voltar para a sua vidinha nos Estados Unidos, talvez eu até esteja errada e o Governo seja legal e te deixe se aposentar e adotar um gato no fim das contas.
Enquanto ela ainda falava, Bucky se moveu também, atravessando na frente e pousando o braço de vibranium na estante da esquerda, o deixando bem no caminho de Roxanne.
— Eu nunca disse que gosto de gatos. — Ele retrucou, praticamente impedindo a italiana de andar.
Ela o encarou de baixo acima, uma sobrancelha se erguendo e um sorriso no canto dos lábios.
— Bom... você tem cara de quem gosta de gatos, James. — Moveu os ombros em displicência. — Agora vamos, temos que fazer uma reunião com os Três Grandes pra alinhar as novas diretrizes, e isso não pode esperar até o amanhecer.
— Três Grandes? — Bucky repetiu, ainda sem deixar Roxanne passar, de um lado havia a mesa de mogno e do outro ele e seu braço atravessado até a estante.
— Niccolo, Corinne e Francesco. O último por chamada de vídeo evidentemente. — A Donna explicou de forma prática. — Eles são de confiança total, não se preocupe.
Bucky ainda não se moveu, ele nem saberia dizer o motivo, mas agora que podia, ele simplesmente fez o que queria. Roxanne o mediu devagar, impossível decifrar seu olhar, mas parecia queimar por onde tocava, descendo pelo peitoral masculino e passando pelo abdômen definido.
— Mas é melhor você vestir algo mais... — Ela seguiu o caminho perfeito que os músculos faziam até a calça de moletom e esse simples olhar fez um arrepio atravessar o centro da coluna de Bucky. — ...apropriado primeiro, é claro.
Ele riu de canto, se movendo devagar na direção dela, fazendo que Roxanne se movesse para trás instintivamente e suas costas batessem contra a estante.
— Engraçado, eu posso dizer exatamente a mesma coisa pra você, não é? — Barnes retrucou, seus olhos gélidos escorregando pelas curvas femininas sem qualquer pudor.
— Muito cuidado, Sargento Barnes. — A voz de Roxanne tinha um tom misto de advertência e divertimento, mas a forma como ela o chamou apenas fez com que o corpo de Bucky ficasse mais quente. — Eu já matei alguns homens por muito menos que isso.
O sorriso de canto permaneceu no rosto dele, tinha achado graça daquela ameaça velada. Apoiou a outra mão na estante também, encurralando Roxanne entre seus braços, se curvando um pouco para que eles ficassem ainda mais perto, olho no olho, a altura exatamente a mesma.
— Pode até ser, Italianinha, mas eu não sou apenas um homem. Eu sou um supersoldado. — Ele se aproximou um pouco mais, perto o bastante para soprar como um segredo. — Acho que você vai ter um pouco mais de trabalho comigo.
Roxanne soltou uma risadinha contida, sua mão direita seguindo para o peitoral masculino e parando ali, espalmada, quase um aviso. O toque fez com que cada terminação nervosa de Bucky correspondesse, o sangue fluindo depressa para lugares nada apropriados...
O olhar dos dois se encontrou e ela sorriu, não um sorriso malicioso ou quente, um tipo anticlimático de sorriso, aquele mesmo que se dá para uma criança de cinco anos que diz que vai ser presidente. Então a mão feminina seguiu para o rosto dele, dando duas palmadinhas condescendentes com a expressão mais debochada possível.
O sangue ferveu nas veias de Barnes, não mais de tesão e sim de raiva. Odiou ser tratado daquela forma. Porém, antes que pudesse reagir, Roxanne já havia escapado por debaixo do braço dele e caminhado em direção a porta.
A última coisa que Bucky viu foi o movimento sinuoso do quadril feminino, coberto por aquela camisola de seda minúscula, deixando o escritório...
Bom, a Operação Roleta Russa ainda estava de pé, Barnes continuava mentindo sobre muitas coisas, sobre o principal na verdade, já que estava ali para derrubar não apenas a Hydra, mas também as duas Máfias, trabalhando para o governo que a rainha italiana tanto odiava... Mas pelo menos não teria mais que fingir ser o Soldado Invernal quando estivesse ao lado de Roxanne Domenichelli.
E pelo visto isso seria perigoso, desafiador, provavelmente irritante e com certeza... divertido.
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