Eu lembro desse dia como se fosse ontem, de tão marcante que foi. Todos esses sentimentos ainda competem no meu peito para ver qual é o mais forte. Angústia, raiva, frustração, melancolia, tristeza. Tudo junto e misturado em um bolo que não me sai da garganta, por mais que eu tente engoli-lo.
Recordo-me perfeitamente de eu e Will termos saído para fazer compras. Lia precisava de mais folhas para o fichário, Nathan queria um caderninho de desenho novo, Hillary precisava de canetas e Mike, de borracha. Eu queria mais lápis para o livro que estava escrevendo e meu marido queria uma pasta nova.
Deixamos as crianças com Jason porque Mike e Sean, filho dele, são amigos inseparáveis e fomos as compras. Passamos por uma sorveteria a caminho da papelaria, o que defitivamente não fazia parte dos nossos planos, e pedimos dois milkshakes, um de menta com flocos e outro de creme.
Conversamos distraidamente enquanto andávamos, as mãos entrelaçadas. O clima estava tão bom que foi difícil focarmos no que deveríamos fazer e não no que queríamos no momento: Passear como se nada estivesse acontecendo a nossa volta.
Sinto falta da época que namorávamos ou pouco antes disso, quando nos pegávamos sem compromisso. Era fácil naquela época. Passávamos todo o nosso tempo juntos, sem ligar para o que os outros diriam sobre nós ou o que inventariam para nos atingir. Repito: Era fácil. Mas não dá pra parar o tempo.
Eu já contei como o conheci? Não? Vou contar. Era a sexta série e eu tinha acabado de deixar de estudar em casa para estudar em uma escola, como todo mundo. Leo tinha faltado naquele dia, então eu estava sozinho em um ambiente desconhecido. As pessoas pareciam me julgar. Fiquei nervoso.
Logo que eu me sentei, a professora de história anunciou um trabalho em dupla para até mês que viesse. Eu não tinha par. Estava só, rodeado de gente me analisando. Quis sumir. Leo faria par com Jason, disso eu não tinha dúvida. Estava só. De novo. Como sempre. Abaixei a cabeça e cochilei.
Na terceira aula, alguém me acordou. Will me deu boas-vindas. O cabelo dele estava bagunçado e a professora o olhava feio. Deduzi que chegara atrasado. Ele sentou do meu lado e foi o primeiro a conversar comigo. Perguntou de onde eu era, onde estudara antes, meu nome, hobbies, o que eu gostava, o que eu não gostava.
No intervalo, ele me deu um tour pela escola e se ofereceu para ser meu par no trabalho. Sem outras opções, aceitei. Ele foi tão gentil que achei que fosse me passar a perna. Esperei que me caluniasse, fosse grosseiro ou algo do tipo, mas nada ocorreu. Nada...
Com o passar do tempo, criei o GEP, Grupo dos Esquisitos e Problemáticos, e passamos a nos falar de vez em quando. Aos poucos, me vi gostando dele. O sentimento cresceu, cresceu, cresceu. Quando percebi, Will me chamou para um café e me beijou ao se despedir, depois de me deixar em casa.
Foram breves e divertidos momentos que fortaleceram nossa conexão. Eu amo Will. Pra caralho. Mas, como disse antes, não dá pra parar o tempo. Ele corre, voa, se vai em um piscar de olhos. Só nos resta aproveitar o quanto temos. E eu aproveitei.
Mas... Parece que nunca vai ser o suficiente. Eu tenho meus filhos e não sei o quão rápido vão crescer. O mais velho, Nathan, já tem doze. Já está um rapaz e ainda ontem eu estava brincando de espadas com ele, com oito. Passa tão rápido, mas tão rápido. E eu me refiro a tudo.
Eu queria ter mais tempo. Mais tempo para conversar, abraçar, beijar e me maravilhar com a maturidade dos meus filhos. O meu mais velho tem a mesma idade de quando conheci o pai dele. O mais novo, Mike, tem a mesma idade que eu descobri que o Papai Noel não existe. Seis anos. Daqui a pouco, dez.
Cada momento, bom ou ruim, foi mágico. Mas não há o que fazer. Basta um segundo para tudo virar de cabeça pra baixo. Basta uma palavra, uma frase, um sussurro, uma atitude e tudo vai pelos ares. E ninguém fala nada. Porque essa é a porra da vida e ponto final.
Você não acha que eu tentei? Gritei, reclamei, supliquei, implorei, perdi a voz, chorei, esperneei, clamei, entrei em prantos por dias. Adivinha? Ao que isso me levou? No que deu? Em nada! Porque essa é a porra da vida! Aprenda a viver com seu passado ou ele te assombrará. Simples, né?
Eu tentei tanto. Mas tudo volta a mente. O dia todo e todo dia. Eu não aguento mais. Coloco uma música pra relaxar e lembro. Vou cozinhar e lembro. Deito pra dormir e lembro. Vou assistir a um filme e lembro. Canto e lembro. Toco violão e lembro. Bebo café e lembro. Tomo banho e lembro. Não dá mais!
Eu não sei o que fazer e isso me corrói. Pensar naquele dia me destrói. Eu não aguento. Eu não posso continuar fazendo isso. Vou enlouquecer ou entrar em depressão. Mas não dá. Eu continuo pensando lembrando e me culpando. Não há o que remoer, mas eu continuo fazendo isso. Por que?
Se eu... Se eu tivesse mais cuidado, faria diferença? Se eu tivesse olhado. Se eu tivesse tirado o fone. Se eu tivesse esperado. Se eu tivesse ficado em casa. Mas eu não tava bem. Tava enjoado. Só queria ir pra casa o quanto antes. Mas fodi com tudo.
Eu deveria ter feito tanta coisa. Eu deveria ter parado e esperado pelo sinal. Eu deveria ter ficado um tempo a mais na papelaria. Eu deveria ter sugerido aquela lanchonete quando a gente passou por ela. Eu deveria tê-lo empurrado. Nós dois estaríamos salvos, mesmo que eu perdesse alguma coisa.
Do que eu tô falando? É um história longa, mas já tô no final dela. Relaxa. Não vai demorar muito. Eu sei que você deve ter outras coisas pra fazer, mas já, já eu te libero. Céus. Eu tenho tanto pra contar. Por onde começar? Pelo carro? A calçada? Hm... Não, não. Pela papelaria. Lá vai.
Eu e Will entramos em uma das melhores em mercadoria e preço. Logo procuramos as seções que queríamos, verificando e calculando o valor total. Os lápis de escrever eram relativamente baratos. As canetas pareciam boas. Precisei pedir ajuda a uma moça para encontrar as folhas para o fichário.
Achei um bom caderninho de desenho e hidrocores para Nathan e o loiro pegou sua pasta. Fomos ao caixa com tranquilidade e pagamos. Um rapaz pôs tudo em sacolas plásticas e me entregou. Meu marido fez questão de levar a maior parte, mesmo eu protestando que não era de vidro.
Entediado, peguei meu MP4 e coloquei os fones enquanto ele ia na vendinha do lado. Em breve seria o aniversário de Lia e nós já tínhamos comprado presentes, mas ele viu que ali faziam colares personalizados e foi olhar.
Aguardei por ele, curtindo minhas músicas enquanto pensava. Como que eu vou contar?, pensei. Essa pergunta me fez companhia por um bom tempo, mas não achei uma resposta para ela. Revirei a mente, angustiado, porém de nada adiantou. Desisti. Ao invés de me martirizar, decidi que contaria em casa.
Will saiu da loja e me mostrou um pingente dourado escrito Lia. Sorri e o parabenizei pela ideia. Paramos em frente a faixa de pedestres e esperamos o sinal ficar verde para nós. Depois de muito tempo, constatei que estava quebrado e, impaciente e enjoado, decidi atravessar mesmo assim.
Me lembro de a música ter parado após três passos e de ouvir um grito:
一 Nico!
Meu corpo foi impulsionado para frente e o chão começou a se aproximar de mim. Tudo ficou escuro por alguns segundos. Me levantei, a cabeça latejando excruciantemente. Toquei a lateral da cabeça. Sangue escorria também por meu abdome. Tudo parou. Olhei para trás, perdendo completamente o chão. Will. Sangue. Olhos vidrados.
Gritei, sabendo que não adiantava. Chamei. Chamei por ele. Mas ele não me ouviu. Ele não reagiu.
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