Sem possibilidades
A luz rósea que precedia ao nascer do sol oscilou entre as folhas avermelhadas e os galhos delgados de um Bordo Japonês situado logo à frente do grande casarão de estilo tradicional coreano. Apesar do verão estar em seu início, o ar parecia estagnado, condensado, e Chanyeol suava por baixo das roupas grossas que usava sempre que precisava sair do terreno. Era uma forma de se proteger dos dentes pútridos dos zumbis, ainda que fosse cuidadoso e não abrisse margem para que se aproximasse perigosamente, precisava se precaver o máximo possível para não se infectar.
Chanyeol não se dignou a prestar atenção no momento esplendoroso em que o sol nascia e aos poucos a escuridão dava lugar à luz do dia. Como se o manto negro que encobrisse todo o condado estivesse sendo retirado. Viver tem sido tão desgastante, que não há tempo para momentos de reflexão ou contemplação, então simples detalhes do dia a dia passavam despercebidos por qualquer sobrevivente, assim como para o Park, que ignorava a alvorada e tinha o seu olhar preso na figura chamativa do Byun, que com o braço estendido, controlava a própria respiração a fim de estabilizar a sua mira.
Baekhyun aparentava certa imponência com seu arco e flecha, vestido com roupas escuras e botas de combate, parecia com alguém pronto para guerrear. O rapaz estava cada dia melhor, e desde que o encontrou caçando um veado na floresta, precisou afrouxar as rédeas com ele. Não considerava justo ter que ficar em seu pé, apesar de não confiar totalmente em sua percepção de mundo, e Baekhyun ainda era um desconhecido aos seus olhos, alguém que não permitia a aproximação dos demais e que não falava de si mesmo. O tolerava, pois via em sua força, algo do qual poderiam se beneficiar, mas a cada dia que passava, o mais novo construía muros ao seu redor, impossibilitando a aproximação de qualquer um que se mostrasse receptivo demais.
Soltou o ar, que sequer percebeu estar preso, no momento em que o mais novo soltou a corda e permitiu que sua flecha viajasse por longos metros até acertar a latinha posicionada em um galho da árvore e derrubá-la ao chão com um baque metálico. Percebeu sua postura relaxar no momento em que Baekhyun relaxou a própria, virando a cabeça levemente em sua direção apenas para que o Park contemplasse o sorrisinho ladino e presunçoso de quem o desafiava, e com suas sobrancelhas franzidas, Chanyeol sustentou aquele olhar até o momento em que foi desperto por um aperto firme em seu ombro.
Um novo dia dava as caras, e este parecia servir apenas para um único propósito: tomar a decisão de encerrar de uma vez a fatídica estadia do grupo que permanecia escondido no antigo casarão. Yixing sentou-se na cadeira à sua frente, na varanda que Chanyeol costumava passar o tempo, e o encarou com uma sobrancelha erguida. O sorriso faceiro em seu rosto denunciou suas intenções quando olhou para as duas únicas pessoas presentes no local.
— Não quero nem imaginar o que está se passando pela sua cabeça. — Chanyeol foi o primeiro a dizer, antes que o amigo pudesse proferir alguma gracinha. — Vamos direto ao assunto, Zhang.
— Sim, Sargento.
O casarão tradicional, por mais que estivesse situado sobre um monte sinuoso, e afastado da região residencial, era terrivelmente acalentado pelos grunhidos e gemidos roucos provindos dos mordedores que perambulavam por seus arredores. O terreno era circundado por um muro baixo de pedras, que por sua vez, era circundado por uma floresta. Era uma região úmida e montanhosa, porém, nenhum pouco proveitosa para o grupo devido à escassez de recursos.
Estar próximo aos centros comerciais não era vantajoso para ninguém, mas precisavam estar ao menos em um lugar menos desolado que aquele, um lugar em que pudessem se desenvolver e buscar por recursos, cientes de que sua casa permaneceria segura em seu retorno. Chanyeol não sentia segurança em viver naquele lugar, e Yixing também concordava com ele, por isso, decidiram que o melhor a se fazer era buscar alternativas antes que fizessem uma reunião com o grupo, comunicando a decisão de que partiriam em breve.
Sabiam que tinham que sair dali imediatamente, os enlatados acabariam ao decorrer da semana, e o que os estava sustentando no momento eram as caças que Baekhyun realizava esporadicamente. Na primeira vez, caçou um veado-almiscareiro que os alimentou por dois dias; em sua segunda caça, teve a sorte de topar com um porco selvagem, mas agora, sobreviviam se alimentando de andorinhas. Algo estava afugentando os animais da região, e ambos sabiam muito bem o que aquilo significava. E a não ser que quisessem morrer por inanição, precisavam fazer algo para mudar a situação atual do grupo, entretanto, o fato de estarem distante dos centros urbanos não era apenas uma dádiva, mas uma pequena tormenta, afinal, como encontrariam suprimentos naquele fim de mundo localizado entre as montanhas?
Em meio a diversas indagações, Chanyeol estendeu o mapa da região sobre a mesa, este já com alguns rabiscos feitos em caneta vermelha, e em sua mão, havia o cotoco de um lápis.
— Não há nada para nós por aqui — declarou de uma vez, sem rodeios ou palavras cuidadosas. — Estamos vivendo em um ponto muito, muito ruim — Chanyeol circulou a região em que se encontravam, anotando o raio em quilômetros bem ao lado. — Durante todo o tempo em que estamos aqui, eu já percorri toda a região em um raio de vinte quilômetros e não encontrei nada valioso que pudesse nos sustentar durante um período mais longo. A cidade já foi saqueada a muito tempo, os veículos que restaram estão inutilizáveis, e há tantos mortos-vivos espalhados, que qualquer alarde que fizermos, pode juntá-los em uma horda e nos colocar com um alvo gigantesco em nossas costas. Estamos em uma situação ruim, cercados por todos os lados.
Yixing respirou fundo, seu olhar se perdendo por alguns segundos em algo além dos muros, e Chanyeol acompanhou o seu olhar. Eram zumbis, estes que se aproximavam lentamente e vinham pela floresta. Eram poucas criaturas, mas estavam surgindo com uma periodicidade preocupante.
— É uma merda, eu sei — Chanyeol continuou, requerendo sua atenção. — Eles estão surgindo com ainda mais frequência e eu não faço ideia do que os têm atraído, mas ficaremos em desvantagem caso venham em bandos ainda maiores. Não temos poder de fogo suficiente para lidar com muitos deles, e nosso grupo está defasado.
Era uma verdade dura demais para engolir, mas ainda assim, era verdade. Chanyeol, Yixing, Hyejin e Donghee tinham capacidade para lidar com os mortos-vivos, mas eram apenas quatro pessoas para proteger um grupo que ainda contava com dois idosos, uma criança indefesa e uma mulher completamente deprimida. Hyejin estava recém recuperada de uma torção no tornozelo, era uma mulher forte da qual conseguiam contar, mas não podiam exigir muito de si devido a sua recente recuperação. Donghee não tinha muito fôlego, suas condições físicas não eram as melhores no momento, mas era um homem esperto o suficiente para ajudá-los. E também havia Baekhyun, mas ele era uma incógnita, ainda estava em processo de recuperação, mas já estava aos poucos demonstrando do que era capaz.
Chanyeol queria contar com ele, seria uma boa adição ao grupo, demonstrava ser esperto o suficiente para ter sobrevivido ao longo dos dois anos de contaminação, e ainda tinha habilidades que eram invejadas. Queria confiar nele, com certeza, mas ainda estava avaliando-o. Seu temperamento era contestável demais para que pudesse confiar logo de cara.
— Também não temos recursos suficientes para permanecer por um longo tempo na estrada — Yixing contrapôs um tempo após, seu olhar tornando a se concentrar no mapa, ignorando os gemidos dos zumbis que agora se debatiam contra a parede de pedras, com seus braços estendidos para dentro do terreno devido a baixa estatura do muro. — É uma faca de dois gumes, morreremos se ficarmos, e também corremos o risco de morrer se partirmos.
— Não tem outro jeito, precisamos arriscar.
— Eu sei. Estou avaliando possíveis lugares, não podemos sair sem termos um rumo definido. Nosso grupo não aguentaria muitos dias na estrada, e eu temo pelo que possa surgir em nosso caminho. — Soou como uma confissão, e Chanyeol apenas aquiesceu, repousando o queixo em sua destra para ouvi-lo com ainda mais atenção. O chinês tinha o olhar um pouco quebrantado, parecia atormentado. — Você sabe, melhor do que ninguém, que eu não gostaria de estar nessa posição, não gostaria de tomar as decisões. Temo em ser aquele que vá nos levar para lugar nenhum, que colocará nossas vidas em perigo. Espero que você entenda o porquê quero compartilhar esse fardo com você, Chanyeol.
Chanyeol sabia, ele era quem mais o conhecia naquela porcaria de lugar, era o homem que enxugava as suas lágrimas quando o peso do mundo caia sobre si e Yixing apenas cedia, era quem avaliava as suas ideias, quem compartilhava seus pensamentos mais profundos e as piadinhas mais infames. Eram como irmãos.
— Pode parecer que sim, mas você não está sozinho, Yixing — o assegurou, tocando a sua mão por cima do mapa, em um carinho sem muita gentileza. Não era o melhor em demonstrar afeto, mas tentava lhe passar algum apoio quando necessário.
Entendia como o amigo se sentia, Yixing havia perdido a noiva a pouco tempo, e durante o mesmo período, ganhou tantas responsabilidades que conseguiu distrair sua mente. Agora, com o clima melancólico daquela cidade, poucas provisões e muitas preocupações, Yixing estava começando a sentir a dor da perda com ainda mais profundidade. Chanyeol estava ali por ele, por isso, estava sustentando o grupo a seu modo. Não era o melhor, tampouco o mais adequado, não fazia uso de palavras bonitas ou encorajadoras. Chanyeol era o tipo de homem que apenas fazia. Ele era quem se colocava em perigo para buscar suprimentos, era o homem que cedia do seu próprio alimento para que os demais pudessem comer, ele era aquele que se colocava na linha de frente sem aparentar medos ou receios.
Chanyeol era extremamente grato por tudo o que o Zhang já havia feito por ele, por tê-lo integrado ao grupo quando o encontrou vagando sozinho, por tê-lo dado uma posição importante para assumir nos grupos de busca por suprimentos mesmo com pouco tempo de agregação. Yixing não precisava confiar em si, mas confiou, e em pouco tempo, tornaram-se inseparáveis, participando das mesmas excursões, bebendo cervejas na calada da noite e confiando seus pensamentos mais profundos. Devia a ele mais do que poderia imaginar, mas o sentimento de dívida, com o tempo, foi sobreposto pela gratidão, e logo, por algo ainda mais fraternal. Passou a amar aquele cara com a sua alma.
— Todos estamos sozinhos, no final das contas. — Yixing interpôs, sustentando o seu olhar com certo pesar. — É a porra do nosso destino.
Detestava quando o Zhang se tornava lamentoso daquela forma, pois não conseguia ser aquele que o colocaria pra cima com meia dúzia de palavras bonitas, por isso, apenas franziu as sobrancelhas e meneou negativamente, seu olhar rumando para o outro lado do quintal, onde olhos curiosos observavam a sua interação. Mais especificamente, encaravam suas mãos juntas sobre a mesa.
Baekhyun estava com a sua atenção presa aos dois, e em seu olhar, não conseguiu encontrar nada além de uma breve curiosidade. Não carregava mais aquela pose desafiadora, e ao ser pego no flagra quando seu olhar foi retribuído, desviou a sua atenção para a mureta, estendendo o arco mais uma vez para mirar nos poucos zumbis que se amontoavam por ali.
Queria entender o que se passava por sua mente, mas apenas contemplou o momento em que a flecha cortou o ar e acertou com precisão o olho de uma das criaturas. Sangue espirrou e manchou a mureta de vermelho, escorrendo pelas pedras acinzentadas, e seu corpo cedeu entre os outros mortos-vivos, caindo desajeitado por sobre alguns. Baekhyun tinha uma mira certeira e postura invejável, com as pernas levemente separadas e a coluna reta, se parecia com um profissional. Chanyeol se perguntou sobre o seu passado, se aquilo um dia já chegou a ser um hobbie para si, ou se era apenas a sua maneira de sobreviver no novo mundo. De certa forma, ele era muito bom no que fazia.
Yixing virou-se a tempo de vê-lo pegar com destreza mais uma flecha em sua aljava, os dedos eram firmes e manejavam a arma com habilidade, e assim, mais um zumbi era abatido.
— O que acha dele? — O Chinês quis saber ao virar-se para o amigo, mudando de assunto repentinamente.
Chanyeol pensou antes de lhe dar uma resposta, o avaliando com algum cuidado. O que achava de Baekhyun? Sendo sincero consigo mesmo, sua única observação, desde o começo, era o comportamento arredio. Sentia certa implicância nele quando relacionado a si, coisa que não parecia ocorrer com os outros integrantes do grupo. Algo parecia o repelir, mas não sabia dizer o quê.
— É cabeça dura e mal encarado, mas tem alguma decência.
— Pareceu que estava se descrevendo.
Lá estava, novamente, o Zhang Yixing que conhecia. O cara que desperdiçava o seu tempo falando besteiras. Sentia falta dele.
— Não começa — o advertiu, não querendo estender o assunto.
— É sério. Quero saber se compartilhamos da mesma opinião.
Yixing passou a batucar sobre a mesa, ignorando o mapa completamente e retornando toda a atenção a si. Não pôde deixar de reparar em suas olheiras, maiores e muito mais profundas do que o habitual.
— Qual é a sua opinião, afinal? — ergueu as sobrancelhas, o direcionando a palavra.
— É um jovem habilidoso, e parece ser mais que apenas um sobrevivente. Leva jeito pra coisa, sabe? É forte, passou por umas merdas e já está de pé. Tenho um apreço por pessoas assim.
— Deve ser a sua sina encontrar fodidos por aí e integrar ao grupo, então.
Yixing soprou uma risada descontraída, mas estava falando sério sobre as suas impressões.
— Tenho algumas ressalvas, é claro, mas o saldo pra mim é positivo, e pra você?
— Gastamos muitos recursos com ele…
— Não encare dessa forma. — O advertiu.
— Como eu estava dizendo, gastamos recursos com ele, e com isso eu quero dizer que ele precisa nos retribuir. — Chanyeol queria chegar em um ponto. — Precisa de muito mais que apenas caçar para ter a minha afeição, é sobre isso que eu quero dizer. Ele é instável e tem dificuldade em criar laços, tem a boca mais suja que eu já conheci e tendência a nos desafiar. Não gosto dos traços de personalidade, mas sim, ele é forte, corajoso e sabe o que está fazendo.
Foi fácil revelar os seus pensamentos ao amigo. Era sempre fácil com o Zhang, e sentiu-se mais leve, como se um peso saísse de seus ombros com a confissão. Já estava guardando aqueles pensamentos a um tempo, temia externá-los por parecer apenas uma implicância, mas o reconhecimento de Yixing o fez entender que não era apenas isso. Compartilhavam da mesma opinião.
— De certa forma, ele me lembra um pouco você — Yixing deu de ombros, parecia estar se divertindo com a sua irritação. — Talvez seja por isso que vocês fiquem se bicando por aí, são parecidos, de certo modo. Por isso se repelem.
— Que seja, mas não estou a fim de falar sobre ele agora. Temos uma decisão a tomar — deu o assunto como encerrado, desviando brevemente o seu olhar para o mais novo, que ultrapassava os portões em busca de suas flechas, após ter dado fim a todos os mortos-vivos que tinham se aglomerado no muro. Queria retornar ao assunto inicial antes que precisasse sair. — Lembra-se da fazenda por onde passamos um tempo atrás, nas extremidades do condado?
— Hagwon Farm, a fazenda de cevada?
— Não, a menor — negou, apontando a localização no mapa, eram relativamente próximas uma da outra. — Do milharal podre.
— E cheia de corvos. — Yixing fez uma careta com a lembrança, mas concentrou o seu olhar no mapa. — É bem distante.
— Mas é uma possibilidade. Fica distante o suficiente do centro para nos manter em segurança quanto às hordas, e próxima a uma cidade que ainda não exploramos.
— É na outra extremidade do estado, se eu me recordo bem, é quase na divisa com Jeolla do Sul. — Yixing não parecia muito contente. — É uma viagem e tanto para se fazer sem um veículo.
— Por isso precisamos estudar essa possibilidade. Podemos seguir pelas trilhas na floresta, caminhar durante todo o dia e montar acampamento à noite. — Chanyeol tentava soar convincente, mas a ideia era absurda até para si mesmo. — Precisamos tentar de alguma forma, não há outras opções, e vagar sem um rumo definido é como dar um tiro no escuro.
Yixing meneou positivamente, e respirando fundo, desviou o olhar novamente para Baekhyun, que agora limpava as flechas ensanguentadas sentado à sombra do Bordo Japonês, tentando não parecer atento sobre a conversa particular entre os dois amigos. Percebeu o quão observador ele parecia ser, atento aos detalhes, aos olhares em sua direção, e considerou aquilo como sendo um benefício, apesar do incômodo gerado pelo peso do seu olhar.
— E o que faremos com ele? Quero que ele se junte a nós, quero poder confiar em suas habilidades, mas ainda não sei em que terreno estamos pisando. Quero ter certeza sobre ele antes de convidá-lo a partir conosco.
— Posso continuar sondando o moleque. Ele seria uma boa adição, apesar dos pesares.
Chanyeol não curtia muito a ideia, mas não poderia negar que o resultado final seria positivo. Teria que engolir o orgulho por seu próprio bem. Pelo bem do grupo, pensou.
— Faça isso! Não quero ter mais dores de cabeça. Irei avaliar todos os contras essa semana e estudar possíveis rotas. Tentarei manter o grupo unido e esperançoso, acho que já está na hora de voltar a ativa.
— Sabe que tem o meu apoio, não sabe? Independente da decisão que tomar, respeito a sua palavra.
— Claro que eu sei, Chanyeol. Você é o filho da puta que mais me apoia nessa merda de mundo.
Deram a conversa como encerrada quando Chanyeol se ergueu, recolhendo o mapa com cuidado e buscando sua mochila que estava no chão, apoiada na parede. Estava pronto para partir em sua busca por suprimentos, tinha avaliado alguns lugares em uma de suas últimas saídas e conversado com Yixing sobre suas expectativas em conseguir algo. O amigo não foi contra, e apesar de temer mais uma de suas saídas solitárias, confiava em suas habilidades para retornar para casa em segurança.
— Toma cuidado, porra. Sabe que eu não sei viver sem você, certo? — Yixing foi quem o puxou para um braço, batendo em suas costas com mais força do que o necessário. Um sorriso despontou em seu rosto quando bagunçou os cabelos arrumados do Chinês, praticamente o engolindo em seus braços devido a diferença de altura entre os dois.
— É melhor você superar essa paixão, Zhang — brincou, ao passo em que o soltava e avaliava o seu estado. Yixing conseguiria lidar com o grupo por mais aquele dia fora, acreditava nele para que sim. — Até amanhã, e fica de olho naquele moleque.
Chanyeol não olhou para trás quando recolheu sua mochila e partiu, com seus passos pesados arrastando poeira pelo quintal e o olhar ainda mais pesado de Baekhyun seguindo em sua direção. O Park apenas desejou que voltasse com vida, e com provisões suficientes para que não precisassem mais se preocupar tanto com o futuro.
•••
O gotejar incessante o estava tirando do sério.
Os cabelos negros como ébano eram longos o suficiente para que descessem como cascata pela borda da banheira, contrastando com a cerâmica branca. O corpo estava tão pálido, que em um primeiro momento quase não a reconheceu.
O jovem, vestido com seu uniforme estudantil, não teve outra reação a não ser o choque que o tomou com a cena. Seus joelhos cederam, fracos, e nem mesmo a dor da queda foi suficiente para o despertar. Sentiu um aperto no peito, e então, não conseguia respirar mais.
Baekhyun levou a mão ao peito, na altura do coração, sem conseguir desviar o olhar, seu pulmão doía e ardia como o inferno. Não percebeu estar chorando, até que sentiu o sabor salgado das lágrimas quentes que morriam em seus lábios. Nunca tinha experimentado a dor da perda, e aquela foi a primeira vez em que a experienciou. Queria gritar, queria fazer algo para mudar aquele destino indubitável, mas não tinha forças. Estava acabado. Já sabia que, uma hora ou outra, ela iria partir. Desejou uma cura, desejou que ela passasse mais tempo ao seu lado, mas o destino era tão cruel que não os deu muito tempo após o diagnóstico, e tudo o que Baekhyun mais desejava, era que pudesse descansar eternamente ao seu lado.
Odiava, com todas as forças, o som das gotas caindo. Uma por uma sobre a água da banheira, até que ela passasse a transbordar e Baekhyun perdesse a noção do tempo. Sentia a água gelada em seus pés, e então, sua consciência parecia reconhecer um chamado, algo distante, mas forte o suficiente para que se permitisse respirar após tanto tempo sem ar.
Algo o resgatava, então Baekhyun não era mais aquele menino enfrentando, mais uma vez, a sua primeira perda, mas as gotas continuavam a cair quando, abruptamente, sentiu um chacoalhão em seus ombros.
Assustado, o jovem se sobressaltou e não pensou muito quando puxou a arma que escondia por debaixo do travesseiro, apontando-a para aquele que se encontrava a sua frente e que o tirou de mais uma lembrança em forma de pesadelo. Em um primeiro momento, Baekhyun não o reconheceu, apesar de ser início da manhã, ainda estava escuro no cômodo e a única coisa que conseguia visualizar era a silhueta daquele que o despertou.
— Aponte essa porra pra mim novamente apenas se quiser virar ração para os mortos, moleque! — ditou, arrancando a Glock 9mm das mãos trêmulas do mais novo em um movimento bem calculado, retirando o pente carregado de munição para devolvê-la vazia ao jovem que apenas bufou em desagrado. — Onde você a conseguiu?
— Vá se foder — bradou em desagrado.
As gotas ainda estavam ali, Baekhyun percebeu, havia uma goteira bem acima da sua cama que vazava em seus pés. Chovia do lado de fora, e o som das gotas contra o vidro da janela era tão assustador quanto o vento que parecia uivar e empurrar as portas de madeira. Era uma tempestade, constatou, recolhendo os pés molhados antes de direcionar o seu olhar ao homem a sua frente, que continha uma expressão de desagrado em seu rosto, os cabelos molhados estavam grudados na testa assim como as roupas que se moldavam em seu corpo. Havia acabado de voltar de sua busca por suprimentos.
Com pouco tempo de estadia, percebeu que Park Chanyeol não era nada mais, nada menos do que um grande pé no saco. Ele era o homem que salvara a sua vida, entretanto, também era o homem que parecia querer a infernizar, como um breve lembrete de que estava vivo graças a ele. E apesar do mais velho não precisar lembrá-lo de tal feito, as memórias estavam marcadas a ferro quente nas lembranças do Byun, sempre retornando como esporádicos pesadelos para atormentar ainda mais a sua decadente existência sobre a face da terra.
— Onde a conseguiu, Baekhyun?
Insistiu, sendo mais incisivo ao se aproximar. Baekhyun ergueu-se da cama de uma vez, sem temer a aproximação. O ferimento em seu abdômen agora era apenas uma cicatriz, não sentia mais dor, mas o incômodo ainda estava presente em cada movimento. Tentou disfarçar ao respirar fundo, não queria parecer fraco ao seu olhar.
— Não importa, essa arma era minha — respondeu com voz altiva. — O que quer comigo?
Sabia que Chanyeol estava ali pelo seu pesadelo, já imaginava que ele tinha presenciado o seu sono conturbado, entretanto, aguardou pela sua resposta.
O mais novo havia sido mais uma vez vítima do seu inferno pessoal, sendo agraciado pelos seus tormentos que vinham a si em forma de sonhos ruins. Eram pesadelos difusos que misturavam os piores acontecimentos de sua vida, e que o acompanhavam desde a sua adolescência. Pensou estar curado dos pesadelos quando retornou a terapia, e aos poucos, passou a ter noites mais tranquilas, mas com o tempo, com o fim do mundo em que conhecia, os sonhos ruins estavam se tornando cada vez mais frequentes.
— Estava se debatendo sobre a cama. — Chanyeol ignorou a grosseria mais uma vez, mas a respiração pesada denunciava a sua irritação. — Tem tido pesadelos com certa frequência.
— Não é algo que eu consiga controlar — se defendeu. — Mas tentarei não te incomodar mais, se é isso o que te irrita.
— Não me incomoda — negou com apenas um movimento de cabeça. — Fico apenas preocupado.
Baekhyun bufou, descrente, mas decidiu não implicar com a sua resposta.
— Sabe que pode conversar comigo caso algo esteja o atormentando. — Chanyeol decidiu dizer de uma vez, com as mãos apoiadas na própria cintura, mas o olhar conectado ao do mais novo.
— Sei?
Erguer uma sobrancelha foi o suficiente para que Chanyeol entendesse que ele não cederia tão facilmente. Havia um muro à sua volta que ele não poderia ultrapassar, isso estava bem claro, mas o quão disposto estava para tentar derrubar aquela muralha?
— Do que tem tanto medo, Byun? — insistiu, abrindo um sorriso zombeteiro em seguida, deixando morrer qualquer tensão que pudesse pairar na conversa entre os dois. — Prometo não zombar de você. Tem medo de escuro?
Baekhyun não conseguiu evitar, soprou uma risada sincera com o seu questionamento, e aquela foi a primeira vez em que Chanyeol vislumbrou a sombra de um sorriso em seu rosto.
Quando criança, Baekhyun temia o escuro. Não o escuro propriamente dito, e sim as criaturas que poderiam emergir da tão abominável escuridão. Segundo a sua fértil imaginação infantil, era na escuridão que se escondiam as criaturas mais horrendas, aquelas que tinham como única intenção propagar o mal pela humanidade e puxar o seu pé a noite.
Já havia imaginado, diversas vezes, que surgiriam mãos pútridas por debaixo de sua cama e que essas mãos o iriam arrastar para o submundo, onde seria atormentado por toda a eternidade. E era por conta daqueles pensamentos que o garoto passava noites em claro, com o abajur ligado e o corpo embaixo das cobertas, inspecionando cada canto de seu quarto apenas com o olhar assustado para se certificar de que estava seguro, de que nenhuma criatura viria buscar a sua alma ou algo do gênero.
E agora, com seus completos vinte anos de idade, Baekhyun vinha sendo atormentado novamente pelo escuro, pois era a partir dele que as lembranças vinham o assombrar, e o seu suplício recomeçava quando se entregava de vez ao cansaço e finalmente dormia. Baekhyun odiava dormir, e odiava mais ainda quando não conseguia se libertar de seus pesadelos.
Seu pai costumava dizer, desde cedo, que ele não tinha culhões e que não honrava o sobrenome que carregava. Deveria ser um homem de verdade e se portar como tal, era o que sempre dizia, deveria dá-lo um orgulho imensurável, não vergonha.
Era um medo irracional, sabia disso, e quando criança, costumava entrar em estado de alerta ao cair da noite. As feições angelicais que adornavam o rosto infantil se tornavam duras e assustadas, os olhos curiosos tornavam-se vigilantes e percorriam todo o ambiente, as mãos tremiam e as pernas ficavam bambas instantaneamente. Era incompreensível o motivo de tanto pavor, ele apenas sentia o terror e o seu corpo reagia como se estivesse programado a adotar aquela postura ao escurecer. Era a sua armadura, sua forma de se defender dos possíveis fantasmas.
E isso não é tão diferente de como vive atualmente, mas agora o pesadelo é real e caminha pela face da terra com seus corpos pútridos em busca carnificina. Esse era o seu verdadeiro terror.
Baekhyun, então, afastou todos os seus pensamentos com um breve movimento de cabeça, afastando juntamente a sonolência que ainda recaia sobre si, e encarou o Park ostensivamente, estava cansado de toda a ladainha.
— O que quer? — perguntou mais uma vez, sua cabeça doía.
Chanyeol apenas aceitou que não conseguiria lhe arrancar nenhuma confissão, e consternado, suspirou profundamente. Suas mãos foram diretamente para a alça da mochila, retirando-a de suas costas para buscar algo em um dos bolsos externos.
— São pra você.
O estendeu, com certo descontentamento, o conteúdo que ocupava a mochila. Eram flechas profissionais, com penas em suas hastes e pontas rosqueáveis. Baekhyun já era familiarizado com elas, mas há muito tempo não colocava suas mãos em algo tão profissional quanto aquela infinidade de flechas. Eram dezenas, e junto a elas, Chanyeol o estendeu uma caixa repleta de pontas para que usasse nas flechas. Haviam várias delas, desde pontas militares, até pontas para a caça de peixes.
Sentiu um aperto em seu coração quando se deu conta do presente, e com as mãos trêmulas, os apertou contra o peito. Perdeu suas flechas profissionais logo no começo da infecção, e com o passar dos meses, precisou aprender a entalhar as suas próprias para não precisar aposentar sua melhor arma. Aprofundou a técnica com o tempo, até que suas flechas passaram a ser quase tão boas quanto as profissionais. O segredo estava na sua habilidade com o arco, na estabilidade de seu tiro, mas com flechas profissionais seria quase imbatível.
O gesto de Chanyeol, de certa forma, tocou o seu coração. Não esperava nada dele além da tão costumeira indiferença, das palavras bruscas ou do olhar de repreensão. Foi surpreendido pelo seu ato de gentileza, e percebeu que aquilo era algo dele. Chanyeol não colocava em palavras, mas seus atos diziam muito sobre si, poderia até estar enganado sobre suas percepções quanto a ele, mas sentiu que aquele humilde presente representava algo. Talvez uma trégua.
— Tem feito um bom trabalho, mas acho que fará um ainda melhor quando aposentar aquelas flechas de madeira. — Aquela era a forma que encontrou para agradecê-lo, e percebeu, em seu jeito meio torto de falar, que ele tomava um cuidado absurdo para não o ofender.
Durante longos segundos, Chanyeol sustentou o seu olhar e esperou. O silêncio era quase palpável no cômodo, denso e incômodo entre os dois. Aguardou, e Baekhyun se amaldiçoou por não encontrar palavras que pudessem transmitir o quão agradecido estava. Não era bom com essas coisas, tinha uma grande dificuldade em engolir o seu próprio orgulho, mas era hora de agir de maneira correta.
O mais velho recolheu a própria mochila e com calma lhe deu as costas antes que pudesse dizer qualquer coisa. Baekhyun não pensou muito, apenas segurou o seu pulso, fazendo-o parar no lugar antes que ele saísse do cômodo.
— Chanyeol… — Sua voz ameaçou tremer, mas seu olhar ainda era firme. O encarou nos olhos antes de engolir a seco. — Obrigado.
Queria lhe dizer que estava agradecido por tudo o que havia feito, não somente por pensar em si em sua busca por suprimentos. Permaneceu entalado em sua garganta um pedido de desculpas pelo seu jeito grosseiro e enfadonho, mas não foi preciso dizer mais nada quando ele sustentou o seu olhar e apenas meneou a cabeça.
Ele o compreendia, pensou, e recolhendo seu orgulho, acenou positivamente e soltou o seu pulso, a quentura da pele de Chanyeol contrastava com a frieza de sua mão, mas o toque ainda permaneceu como um fantasma em sua lembrança quando ele partiu.
Baekhyun se deu conta da chuva que agora parecia dar uma trégua, e recolhido em sua insignificância, soltou o ar que não percebeu estar preso. O silêncio carregava muitas implicações, mas Baekhyun tinha apenas uma certeza:
Iria embora antes que se apegasse demais aquele grupo miserável.
•••
A chuva se fez presente por mais alguns dias, os enclausurando no casarão e impossibilitando que Baekhyun retornasse à floresta para caçar. Sentia uma certa animação ao admirar suas novas flechas, quase como se estivesse mais uma vez em um campeonato, carregando consigo apenas o peso de levar a sua equipe a vitória. Se fechasse os olhos e se concentrasse o suficiente, conseguiria sentir a vibração do público na sola dos seus pés, e em seguida, assim que seu nome fosse anunciado, a animação se transformaria em silêncio para que pudesse se concentrar.
Conseguia até mesmo vislumbrar a corda pressionando a ponta de seus dedos, e se respirasse fundo, poderia se concentrar no compasso das batidas de seu coração, e no intervalo entre elas, era quando fazia o seu nome. Quando o dava um significado maior.
— Sonhando acordado? — Sohyun o interceptou, estava sentado em uma das cadeiras da varanda, com o braço direito repousando sobre a mesa, admirando a chuva densa que caia sobre a floresta em sua solitude.
Apenas negou, dignando-se a encarar a senhora que cuidou de si em sua primeira semana de recuperação. Devia muito a ela.
— A chuva é um ótimo calmante — A senhora começou a dizer, colocando sobre o tampo uma xícara de chá fumegante para em seguida puxar a cadeira do outro lado da mesa para que pudesse sentar em sua companhia. — Mas sinto que não está tão calmo quanto aparenta.
Ela estava certa, e apesar de não querer conversar, não poderia ser rude para tentar afastá-la. Não com ela. Observou, com certa curiosidade, a xícara que ela estendeu em sua direção, próximo o suficiente para que ficasse subentendido que aquela gentileza era para si. Nada precisou ser dito quando o mais novo segurou na alça da porcelana bonita, com desenhos em tons azuis, e soprou o líquido até que estivesse em uma temperatura adequada para beber. A quentura tomou o seu corpo em seguida, junto ao sabor da camomila em seu paladar.
— Sinto falta de estar em movimento — admitiu um tempo depois, com seu olhar focado na imensidão da floresta a sua frente. — Gosto de caçar.
— É ótimo no que faz, filho.
Baekhyun não a agradeceu, apenas aguardou pelo que ela teria para lhe falar. Não era comum que as pessoas simplesmente quisessem bater papo consigo, e percebeu isso quando os pedidos começaram a surgir. Em uma certa manhã, Donghee interrompeu seu treinamento para questioná-lo se ele não conseguiria caçar algo maior, com mais carne. Ficou tentado a mandá-lo a merda, mas seu silêncio foi suficiente para que ele entendesse o recado. Em outro momento, Lee Deokhwa, um velho ranzinza e meio enxerido, o pediu para que trouxesse algumas ervas quando saísse, descrevendo onde ele as encontraria e o aspecto ideal das folhas.
Então Sohyun surgia em seu caminho, com um olhar pesaroso e muitas intenções por trás de suas palavras aparentemente despretensiosas.
— Acho que já está por aqui a tempo suficiente para conhecer o Woojin — Sohyun começou a finalmente falar o que gostaria, quando percebeu que Baekhyun não deixaria margem para conversas despretensiosas. — É um menino que passou por coisas demais para alguém da idade dele, ele presenciou a morte do pai… E acho que você já deve estar entendendo onde eu quero chegar…
— Na verdade, não. — Foi sincero, tomando um gole de seu chá antes de mover a cabeça em sua direção, para que finalmente pudesse encará-la.
— Serei sucinta — externou. — Woojin tem a nós para cuidar dele, e estamos todos a disposição para mantê-lo a salvo, mas temo que Jeongyeon não esteja em suas plenas faculdades mentais para cuidar do filho. O menino está ficando em segundo plano em sua vida após a morte do marido, e não podemos contar com ela para cuidar dele como deveria.
Yoo Jeongyeon ainda era uma figura desconhecida para si. Topou com a mulher pouquíssimas vezes durante a sua breve estadia, e não trocaram nenhuma palavra até o momento. Era reservada demais, mas a compreendia em seu sofrimento. Algumas pessoas não conseguiam lidar tão bem com certas perdas, era compreensível para si.
— E onde eu entro nisso?
— Woojin o admira. Já deve ter percebido que apesar dele não falar muito, o segue como uma sombra. Ele está de olho no que faz, nos seus passos, e eu confio demais em você, Baekhyun. — Sohyun tocou a sua mão, esta que repousava sobre o tampo de madeira da mesa, e a levou em sua direção para que pudesse segurá-la com as suas. Percebeu a diferença entre os dois, as rugas que denunciam os anos bem vividos e o leve tremor em seus dedos. — Quero apenas que seja mais uma das pessoas em que ele possa confiar. Não sabemos quanto tempo mais Jeongyeon precisará para se recuperar, e o garoto está sofrendo com toda essa mudança. Ele é somente uma criança, e eu quero apenas ter a certeza de que você também estará aqui por ele no que ele precisar. Já temos o Chanyeol e o Yixing o ajudando em tudo, são praticamente seus tios, eram amigos de Minho e viram o garoto crescer, mas quero poder confiar em você também. É um rapaz admirável.
Queria dizê-la que não iria se envolver com nada extraordinário, que o filho dos outros não era um problema seu, mas diante do seu olhar esperançoso, Baekhyun foi capaz apenas de assentir. Percebeu como a face da senhora pareceu se iluminar com a sua decisão, e se odiou por ceder daquela forma. Não queria criar vínculos de forma alguma, mas estava sendo quase colocado contra a parede.
— Eu sabia que poderia contar com você, Baekhyun.
O beijo que recebeu no topo da cabeça quando Sohyun se levantou para deixá-lo a sós foi inesperado, assim como a mão que arrumou seus cabelos desgrenhados, tal qual sua avó fazia consigo em sua infância. Não repudiou o toque, mas não se sentia confortável com aquelas demonstrações de afeto tão exageradas. Não disse mais nada até que ela se retirou e Baekhyun pode mais uma vez ficar em silêncio com seus próprios pensamentos.
Um dos seus maiores medos era que vínculos fossem criados. Era grato pelo que fizeram por si, por tê-lo salvo, e agora, tentava retribuir à sua maneira. Tinha consciência de que não era o suficiente, mas era o que estava ao seu alcance. Iria embora em menos de uma semana, e com um plano já bem consolidado em sua mente, Baekhyun aguardava somente pelo momento certo para que rumasse para o norte do país, onde poderia viver isolado dos demais.
Não se orgulhava por ir embora assim, por querer partir na calada da noite, levando consigo parte dos suprimentos e suas próprias armas. Tentava retribuí-los com suas caças esporádicas e pequenos pedidos que realizava para os demais, sabia que não era o suficiente, mas ao menos amenizava um pouco a culpa em seu coração.
Baekhyun já estava a tanto tempo alimentando medos infundados, sofrendo por suas perdas recentes e sendo atormentado por pesadelos que se tornavam cada vez mais frequentes, que tudo o que mais queria era se pôr em movimento para que ficasse finalmente sozinho. Apreciava a solidão, e depois de tanta desgraça, sentia que não poderia mais se apegar a ninguém. A morte era inevitável, uma hora ou outra, aquelas pessoas morreriam, e percebeu, tardiamente, que fazia parte de seu destino ser o último homem de pé.
Estava cansado daquele sentimento. Era desolador. Se não se apegasse a ninguém, a dor seria menor. Era melhor assim.
Construir muros era difícil com aquelas pessoas ao seu redor, que insistiam em construir pontes para chegar até si. E com o tempo, percebeu que não era tão duro quanto deveria quando se pegou rindo de alguma gracinha que Hyejin disse sobre a sopa de algas insossa que a avó fez para que pudessem jantar certa noite, e surpreendeu-se com o som da própria risada, mesmo que contida. Fazia muito tempo que não se permitia sorrir, e naquela noite, dormiu com um sabor amargo em seus lábios ao recordar-se do olhar esperançoso da mulher em sua direção, quase afetuoso.
Woojin também era outra pessoa que vivia em seu encalço, e conversar com Sohyun serviu para que percebesse que o menino realmente o seguia com o olhar. Com o passar do tempo, notava os sinais, percebia como ele parecia preocupado quando o via trocar suas bandagens, ou o quão admirado ele ficava todas as vezes em que o via treinar sua pontaria com o arco. A criança não falava consigo, era tímida demais para isso, e alguns dias após tanto matutar se seria realmente uma boa ideia, Baekhyun decidiu o presentear.
— Não se acostume, criança. Não é um brinquedo, é apenas para você treinar. — Justificou quando lhe estendeu o presente, o embrulho mal feito estava amassado, mas suas intenções eram as melhores. — Algum dia, em um futuro muito distante, poderá tentar ter uma pontaria melhor que a minha, mas terá um longo caminho até lá.
O menino pareceu maravilhado quando rasgou a embalagem e se deparou com um arco pequeno feito em madeira, entalhado pelo próprio Baekhyun, junto a algumas poucas flechas sem ponta para que não se machucasse. Teve o cuidado de entalhar o nome do menino na madeira, Lee Woojin, e percebeu em seu olhar quando ele admirou o entalhe, passando os dedos pequenos por cima do relevo e lendo-o em voz alta. Estava estupefato.
— Como se fala com o tio, Woojin? — A voz grave de Chanyeol surgiu entre eles, e Baekhyun virou-se a tempo de vê-lo fumando encostado na parede, apenas observando sua interação com os braços cruzados. Um sorriso pequeno adornava o seu rosto.
— Muito obrigado, tio Baekhyun — agradeceu sem conseguir tirar os olhos de seu presente, com uma euforia que não lhe cabia em seus poucos metros de altura. — Eu amei o presente. Obrigado!
Foi pego de surpresa quando ele abraçou as suas pernas, e sem saber muito bem o que fazer, apenas trocou um olhar com o Park que parecia muito satisfeito com a interação entre os dois. O sorriso o denunciava, e apesar de tentar pedir socorro a ele com um pedido mudo e um olhar apavorado, o mais velho apenas o incentivou com um leve menear, e com mãos desajeitadas, acariciou os cabelos do menino.
— Não pisa na bola com ele. — Foi o que conseguiu ler dos lábios de Chanyeol quando ele pronunciou bem baixinho.
Não estava acostumado com o carinho. Não tinha muito disso em sua vida, e temeu que estivesse sendo brusco ou desajeitado demais durante os curtos segundos em que bagunçou os fios de cabelos de Woojin. Não durou muito tempo, para a sua sorte, pois o garoto logo se desvencilhou para brincar, o pedindo para lhe ensinar a usar o arco e flecha.
Não teve outra alternativa, e sob o olhar vigilante de Park Chanyeol, se permitiu ao menos uma vez não se preocupar com laços sendo feitos ou expectativas sendo criadas.
Gostava de ser implicante com Woojin para que o garoto não se apegasse demais a sua pessoa, mas naquela tarde, sob o sol tímido após longos dias chuvosos, deixou isso de lado. Ainda assim, não queria representar nenhum tipo de figura para ele, deixava esse papel para Chanyeol e Yixing, que sempre estavam à disposição do menino. Sempre os via brincando com ele ao longo dos dias, e quando o clima não estava para brincadeiras, tentavam ao menos incluí-lo em alguma de suas funções, como cozinhar ou cortar lenha. Os admirava de longe pois achava incrível que ainda existissem pessoas dispostas a manter conexão umas com as outras.
Eram como uma família, e Baekhyun percebeu isso logo em seus primeiros dias de estadia. Sentia-se como um intruso entre eles, era inevitável, mesmo que a todo momento tentassem o integrar em suas dinâmicas, parecia simplesmente errado. Tinha a sua própria família disfuncional, e mesmo que tivesse escolhido seguir um caminho diferente, ainda os amava e desejava que, onde quer que estivessem, que fosse em segurança.
Naquela mesma tarde, após separar os seus pertences para um banho rápido com a água que recolheu da chuva, Baekhyun foi interceptado por Yixing no corredor do casarão.
Ainda não estava escuro o suficiente para que não o reconhecesse, mas se assustou com a aparição repentina à sua frente, dando alguns passos para trás em sobressalto.
— Não queria te assustar. — Foi o jeito que o Zhang encontrou para se desculpar. Baekhyun apenas assentiu, abraçando as roupas dobradas em suas mãos, as apertando contra o seu corpo. — Faremos uma reunião ao amanhecer, e quero que esteja presente, Baekhyun.
A confirmação estava ali, naquele convite explícito para participar de uma reunião do grupo. Yixing queria que ele fizesse parte pois estava contando com ele, estava confiando em si, mesmo após ter dado todos os motivos para que não o fizesse. Sentiu sua cabeça doer com a constatação.
— Não sei como eu seria de ajuda.
— Não se faça de bobo — soprou uma risada descrente. Via em Yixing a postura de uma autoridade, com uma pose altiva da qual não lhe dava muita coragem para enfrentar ou fazer piadinhas. Ele era diferente dos demais, conseguia impor respeito somente com a sua presença, sem precisar de nada mais. — Quero que você faça parte do grupo, tem como ficar mais claro do que isso?
Baekhyun tinha poucas certezas em sua vida, mas uma delas era a de que precisava ir embora daquele lugar o quanto antes. Recuperou-se em poucas semanas, com muito esforço, mas falhou com tudo o que tinha arquitetado em sua mente. Evitar criar laços não deveria ser tão difícil assim, era o que tinha imaginado, mas estava enganado mais uma vez.
— Eu não pertenço a esse lugar, Yixing. — Foi o que conseguiu responder, ainda sem olhar em seus olhos. — Nunca irei pertencer, e você sabe disso. Sabe de onde eu vim.
— Então a que lugar você pertence, afinal? — questionou, com certo pesar. — Sinto em dizer, mas o seu grupo foi liquidado. Você está sozinho no mundo.
— É melhor assim — expôs, engolindo a seco. Não o revelaria nada mais sobre o seu grupo, sobre os sobreviventes daquela guerra, não precisava levar aquela história adiante. — Talvez eu não pertença a lugar nenhum, e isso só o tempo dirá.
— Você é grandinho o suficiente para tomar suas próprias decisões, mas quero que entenda que é bem-vindo entre nós — Yixing deu a conversa como encerrada, ele era sucinto e reservado, e no fundo, tinha um apreço por ele, por não insistir em uma decisão que já estava tomada. — A reunião será após o desjejum, junte-se a nós e me dê ao menos uma chance para lhe fazer mudar de ideia.
Apenas assentiu, não havia mais o que ser dito entre os dois, e com o coração apertado no peito, entendeu que estava chegando a hora de dizer adeus.
Continua...
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