Postagem 8. Em algum lugar do Passado
(Somewhere in Time, 1980, EUA)
Hélène, em seguida, começou a me mostrar algumas lindas pinturas, expostas nas paredes. Parecia uma jovem guia turística na sua primeira semana no novo emprego: toda empolgada, motivada!
Velhinha mega legal: queria quebrar aquele clima mega chato que ficou quando Leilene foi embora...
Minha anfitriã era uma companhia incrivelmente agradável, uma verdadeira artista da hospitalidade! Em alguns minutos eu já até havia me esquecido de meu primeiro encontro com “Madame Sou Grossa e Daí?”...
Aquela garota? Não passava de mais uma dondoca mimada numa lista enorme... Apenas mais uma peça num imenso rebanho pecuarista: vaca a mais, vaca a menos, que diferença faz num enorme pasto de agronegócio? Só mais um mugido numa multidão bovina...
Num recanto que parecia ser muito, mas muito especial, próximo a escadaria, Hélène me levou até duas pinturas.
Por que especial? Bom, da forma como aquele recanto tava organizado, ele parecia um verdadeiro altar!
Nele haviam dois vasinhos com flores, todas dark roses e shadows and justice roses, colhidas do jardim de Álex. Os vasinhos eram ricamente decorados em dourado – eu poderia até dizer que pareciam fios de ouro, que compunham lindos desenhos complexos, semelhantes a antigos símbolos mágicos sagrados! E ficavam bem aos pés das duas pinturas.
Haviam também, ao lado dos vasinhos de flores, um castiçal de vela pra cada pintura. Castiçais cravejados de pedras e gemas lindíssimas!
Se eu conhecesse rubis e diamantes, até diria que eram tais pedras que os enfeitavam... Pela parafina que havia neles, os castiçais certamente eram utilizados...
Hélène apontou pra pintura da esquerda.
Parecia ser antiquíssima!
Era o retrato de uma mulher egípcia, mas de uma beleza tal que parecia ter sido retirado do Museu do Cairo, no Egito!
Parecia ter sido pintado sobre um papiro!
Notei que a pintura tava dentro duma caixa de vidro, muito estreita e delicada, e que um tubo saía daquela caixa: atravessava a parede e sumia.
Não me aguentei:
- Hélène, por que essa caixa envolve essa pintura? E esse tubo, é o quê?
- Ah, Alexsander colocou este vidro para isolar a obra da umidade e microrganismos do ar. E este tubo serve para manter a temperatura e umidade constantes, mantendo também o ambiente estéril dentro da caixa. Temperatura, umidade, fungos, tudo isso destrói Arte...
Fiquei espantada! Pra que esse cuidado todo? A menos que aquele papiro fosse muito antigo... Não, capaz! Quem teria uma obra de arte tão antiga e valiosa em Happy Harbor, que precisaria de tantos cuidados com a umidade, a temperatura e os microrganismos? Lógico que era aquele típico exagero de colecionador, aquele extremo zelo neurótico, que certamente infectou o pai de Hélène...
A velhinha começou, então, a me mostrar os detalhes da obra de arte.
A mulher tava de perfil. Segurava nas mãos aqueles pequenos cajados sagrados da antiga religião egípcia.
Tava toda vestida de dourado e tinha uma dourada cruz Ankh no seu pescoço, pendente num colar vermelho.
Aquela mulher havia sido retratada naquele papiro, com uma riqueza de detalhes tão grande de seu rosto, que parecia ter sido impresso: nunca vi, em todos os livros de arte egípcia, um retrato tão perfeito de um rosto feminino!
Até os seus olhos tavam pintados em mínimos detalhes, e estes pareciam ser de uma cor incomum mas que eu conhecia bem: violetas...
Me impressionei com a beleza daquela obra de Arte!
Foi então que Hélène me contou:
- Estas duas pinturas foram as obras mais amadas por Alexsander... Hoje são as mais amadas por Álex! Não é a toa que elas estão nessa espécie de “altar”. É Álex mesmo quem arruma as flores! E assim como Alexsander, ele acende uma vela, uma vez por ano para cada uma das pinturas. Para esta pintura da dama egípcia, ele acende uma vela toda noite de 1° de junho... e para a outra pintura, ele acende uma vela toda noite de 21 de dezembro...
Eu tava tão admirada, vendo a pintura da dama egípcia, que mal ouvi o que a velhinha me falou...
Hélène, me vendo fascinada pela obra de Arte, disse:
- Esta dama retratada, Selene, parece que viveu aproximadamente por volta de quatro mil anos antes de Cristo...
O quê?
Quase ninguém sabe nada sobre o Egito antes do Antigo Império Clássico! Muito menos de sua Arte naquele período!
Não aguentei:
- Nossa! Essa obra é mais antiga que as primeiras dinastias conhecidas do Antigo Império egípcio! Ela é anterior até ao Rei Kufu, Quéops! Ela deveria valer muitos milhões de dólares se fosse uma pintura original, e não uma cópia, é claro...
Como eu sabia disso tudo do Antigo Egito?
Sou nerd, oras! Ou você esqueceu?!
Como eu já disse: sou tudo o que você quiser, menos burra...
Hélène me olhou, firme e segura:
- Não é uma cópia, Selene! Ela está com Alexsander desde que o conheci, em 1940! Em 1999, um professor de Arqueologia da National University, ex-aluno de meu falecido marido, retirou uma amostra dela. Ele ficou quase obcecado, tentando me convencer a doá-la para a Universidade pesquisá-la. A datação que a equipe daquele professor fez foi a mesma que Alexsander havia me contado: 4.200 anos a.C.!
Quê!? Quase tive um treco!
Eu fiquei abobada com aquilo!
A pintura era feita em papiro egípcio daquela época!
Um pedaço de papel da beira do Nilo... com mais de 6.200 anos de idade! Ali! Na minha frente! Admirado por meus olhos, ao vivo?!
Por isso ela tava dentro daquela caixa de vidro especial, climatizada e esterilizada: pra preservá-la perfeitamente!
Enquanto eu olhava – quase catatônica! – pra aquela relíquia, Hélène sorria. Um sorrisinho de cantinho de boca, matreiro:
- Alexsander era um maravilhoso contador de histórias... Naquelas epopéias que ele adorava criar, para atiçar minha imaginação infantil, narrava que esta pintura havia sido feita pelo próprio marido desta alta sacerdotisa egípcia... Alexsander era realmente um talentoso contador de histórias e eu, quando criança, sempre preferi acreditar naquelas suas lindas narrativas... e sonhar com suas histórias...
Eu não me aguentei! Perguntei como um raio:
- Que história ele lhe contava sobre essa pintura?
Hélène sorriu pra mim. Um sorriso visivelmente maroto, meio safado. Devia tá achando engraçada a minha curiosidade? Lógico que sim! Eu devia mesmo tá parecendo uma pirralha sapeca toda curiosa!
Mas, na real, aquilo foi meio incompreensível pra mim: por que aquele sorriso safado dela? Mas eu tava tão fascinada com aquela relíquia que ignorei aquele detalhe: simplesmente fiquei suplicando com os olhos pra que ela me contasse a história!
Hélène, então, como ótima discípula, seguiu a tradição de contadora de histórias de seu pai:
“Alexsander me contava que esta mulher da pintura se chamava An-het.
An-het, aos 13 anos, havia se mudado para a Capital, porque seu pai, ao ter caído nas graças de um familiar do rei do Egito, fora recém nomeado como um alto funcionário do Reino Egípcio. Era uma época, daquele povo, que os egiptólogos ainda hoje pouco conhecem...
An-het era uma mocinha que amava a Espiritualidade, a Natureza e as Forças Ocultas: seus mistérios a fascinavam! Ela queria entender o Universo!
Então, aos 13 anos, com a recente ascensão social da família, seu pai procurou alguém que pudesse educá-la muito bem. Ele realmente amava muito a filha!
Porém, nenhum sacerdote ou sacerdotisa, nenhum mestre renomado de templo algum queria educá-la, porque ela já era considerada velha demais: eles só admitiam crianças bem novas e, principalmente, as vindas de famílias nobres...
Não haviam mais esperanças de uma boa educação para a jovem... Até que o pai dela descobriu que, na Antiga Pedreira Proibida, onde jamais os construtores ousaram produzir novamente os blocos para suas criações arquitetônicas, morava o mago mais temido do Reino!
Seu nome era até mesmo proibido de ser mencionado, pois os altos sacerdotes morriam de medo dele! Diziam que ele podia andar no meio do Fogo sem se queimar e até o lançava pela boca... mas sendo um herege, por ter desdenhado dos poderes divinos do Rei do Egito, foi condenado pelos Deuses a viver jovem, para sempre... assim diziam os altos sacerdotes a todo o povo!
Mas o pai de An-het não se assustou com nada daquilo... ele acreditou que não passava de calúnia dos magos e altos sacerdotes da Capital contra alguém que certamente devia ser mais capaz do que eles...
E decidiu procurar aquele mago proscrito!
Reuniu alguns escravos e foi, em expedição com sua filha, até a Antiga Pedreira Proibida!
E numa agradável noite de Lua Cheia, Lua Branca a saudar a imensidão negra, ele encontrou o poderoso mago, no sopé da Antiga Pedreira!
Alexsander me contava, de forma tão bela, que foi assim...
Que foi naquela noite de Lua Branca... naquele luar beijando as escuras pedras gélidas, a primeira vez que o solitário mago proscrito viu An-het, iluminada pelos astros que rompiam as trevas do firmamento...
Ela estava trajando um delicado vestido de linho, e parecia exalar o suave perfume das flores mais viçosas que brotavam às margens do sagrado Nilo!
O pai da jovem apresentou-a ao mago.
Ele era calado.
Apenas ouvia as súplicas do pai da moça. E a observava, em silêncio.
Até que sua voz, triste, foi ouvida pela primeira vez. Numa curta pergunta para An-het:
- Por que tu queres aprender magia?”
- E ela disse o quê? – eu não me aguentava mais de curiosidade!
Hélène prosseguiu:
“O mago da Antiga Pedreira Proibida espantou-se com a pureza da resposta da moça!
Ela assim lhe respondeu:
- Eu quero aprender magia porque eu amo a Sabedoria. Porque acredito que só a Sabedoria pode levar ao Verdadeiro Bem: a Libertação... o Retorno para Casa...
Aquela resposta chocou profundamente o sombrio mago proscrito, pois vinha da boca de uma menina franzina de apenas 13 anos!
Uma moça que nunca havia recebido uma boa educação, mas que, numa única frase, havia sintetizado todo o sentido da vida esotérica egípcia!
O mago nada disse.
Estava emudecido! Jamais esperava aquilo, dito com tanta convicção!
E foi naquele momento!
Foi ali, naqueles instantes, que o mago percebeu... percebeu que o seu caminho já havia cruzado antes com o daquela até então simples menina franzina...
Foi naquele momento, justo naquele precioso instante, em que ele a reconheceu de um passado distante!
Chocado, ele olhou para o pai dela... e deu-lhe apenas um aceno positivo de cabeça, sem emitir uma única palavra...
Finalmente, An-het havia encontrado um mestre para educá-la!
Para tanto, ela necessitou morar por sete anos na pequenina aldeia que ficava próxima à Antiga Pedreira Proibida – local que a Arqueologia atual ainda sequer encontrou, assim me dizia Alexander...
E An-het necessitava ir, sempre acompanhada pelos escravos de maior confiança de seu pai como escolta – para sua proteção, por ordem do mago – a uma Rocha específica da Pedreira Proibida, talvez a mais antiga de todas... E ela fez isso todos os dias, daquele dia em diante... durante os sete anos.
O mago era tão exigente que as aulas se iniciavam no primeiro raio de Sol e terminavam apenas momentos antes do último raiar, no crepúsculo.
No início ela reclamava muito... Até mesmo palavras indecorosas ela dizia!
Mas, com o tempo, ela passou a amar aquela rotina! Pois, apesar de exigente, o mago era a companhia mais incrível que ela teve em toda a sua vida... e ela sentia que ele se preocupava muito com ela... que queria o melhor para ela... e An-het passou a esperar as aulas, a cada raiar de Sol, com cada vez mais ansiedade...”
- Nossa! E ela foi educada pelo mago até o fim, pelos sete anos?
Hélène sorria com a minha gigantesca curiosidade:
“Sim!
Aos 21 anos, An-het já era considerada uma sábia e poderosa maga da Capital, pela aclamação do povo!
Quando uma epidemia assolou a Capital, sua fama se espalhou rapidamente pelo Reino inteiro pelas curas que ela conseguia fazer usando os Dons das Águas! Diziam que até mesmo Anúbis lhe era respeitoso quando era ela quem cuidava da recuperação dos enfermos!
Foi então que, nesta epidemia, o filho primogênito do Rei do Egito contraiu a peste. O herdeiro!
Os magos e altos sacerdotes do Rei já davam o menino como perdido...
A Rainha lembrou dos rumores populares da grande curandeira, a maga que até a Divindade dos Mortos tratava com respeito!
Os sacerdotes se negaram a convocá-la! Chamavam-na de farsante: jamais aceitaram-na como sacerdotisa. Ela não vinha de uma nobre linhagem... Ninguém sabia quem fora seu mestre... Nem em qual Templo ela fora educada... Sua magia era acusada de ser herética... uma abominação!
Todavia, o Rei do Egito, sem mais esperanças de salvar seu filho, enfrentou seus altos sacerdotes: convocou-a!
An-het realmente provou ser respeitada por Anúbis: o filho do Rei foi curado! E, aos cuidados dela, nunca mais adoeceu!
Ela? Acabou por receber, pelo cetro do Rei do Egito e da Rainha, a contragosto de seus altos sacerdotes, o governo do mais famoso Templo de Cura à época!
Muito mais do que seu pai conseguiu um dia, sendo de uma família sem linhagem, ela obteve o que ele jamais sonhara... ela realmente caiu nas graças do próprio Rei do Egito! E quando este morreu, o herdeiro que ela salvou a tratava como uma princesa de sangue nobre!”
Exclamei:
- Puxa... e o mago da Antiga Pedreira Proibida? O que houve com ele?
Hélène deu novo sorrisinho de cantinho de boca, misterioso pra mim:
“An-het havia se apaixonado perdidamente por ele...
E ele... embora não admitisse facilmente... por ela...
Os dois acabaram se casando, às escondidas, numa madrugada, no Templo em que ela foi sagrada Sacerdotisa Mor... sem a benção dos homens... mas tendo Ísis por testemunha e amparo!
E foi justamente na noite do casamento deles que o misterioso mago da Antiga Pedreira confeccionou, em ouro, a cruz Ankh que ela então carregou para sempre no seu pescoço.
E naquele mesmo ano, o mago da Antiga Pedreira presenteou-a pintando seu retrato, que agora estamos vendo... Veja a Ankh de ouro, presente de casamento, no pescoço de An-het...”
Eu fiquei incrivelmente impressionada com aquela história!
Instintivamente, segurei a minha cruz Ankh – de prata, presente de Ayaan – que tava debaixo da minha camiseta negra da The Gothic Melody and Dark Roses.
Eu a segurei por sobre minha camiseta: a Ankh descansava entre meus seios...
Nesse instante Hélène me perguntou:
- Tudo bem com você? Algo de errado no seu peito?
Eu respondi, sem jeito:
- Não... é só um velho hábito meu... instintivamente, sem perceber, às vezes eu seguro isso...
E eu, com meu sobretudo negro aberto, puxei a minha Ankh e meu Pentagrama e os coloquei por sobre a minha camiseta preta, mostrando-as pra Hélène.
A velhinha fez uma cara de espanto:
- Oh! Então você entende de magia?
Eu sorri de leve:
- Bem... eu acho que eu sou uma Bruxa... ao menos tento ser... já fui de um coven, mas hoje tenho altar em casa, meus instrumentos e tudo o mais... faço os meus rituais seguidamente, com carinho...
Eu ainda tava muito curiosa com a história de An-het!
Indaguei, sem querer que Hélène mudasse de assunto:
- E depois que eles se casaram? O que Alexsander te contava que aconteceu com eles?
A velhinha sorriu, ainda mais amável:
“Eles viveram por muitos anos juntos, muito felizes! O mago da Antiga Pedreira passou a frequentar, sempre escondido, o Templo onde An-het vivia...
Sempre a visitava sem ser visto, pois ele não queria atrapalhar a vida de An-het na preconceituosa sociedade egípcia. Se ela fosse vista com ele, o mais temido mago, aquele cujo nome sequer podia ser mencionado, a vida dela estaria arruinada! Nem o Rei do Egito poderia salvá-la da ira dos altos sacerdotes...
Assim, eles viveram juntos, sempre se vendo às escondidas: se amando nos umbrais do Templo!
An-het realmente conquistara o que de mais belo havia no mago da Antiga Pedreira: sua Essência, seu Coração!
A primeira pessoa, em cada dia, que ele sempre buscava era An-het! Só depois de várias horas com ela é que ele partia... para cumprir com seus deveres... Honrar aquilo que ele chamava de seu Dever Sagrado: Proteger a Teia da Vida dos que a odiavam... Deveres que ele jamais revelou a An-het... ele queria muito protegê-la, não envolvendo-a em seu mundo sombrio tão perigoso...
O “monstro” da Antiga Pedreira Proibida, o temido e odiado mago proscrito, “o Tenebroso, a quem até o terrível Seth, o Cão do Deserto, temia enfrentar!” conforme o povo e os altos sacerdotes o pintavam: a mais sórdida mentira aos olhos de An-het! Para ela, seu mago era sim o mais nobre leão! O Leão Negro, que protegia os indefesos rebanhos do mundo dos ferozes dentes dos verdadeiros lobos e cães do deserto. Ele era o seu Leão Negro de Fogo, o Protetor da Teia da Vida!
Mas An-het descobriu que apenas uma daquelas coisas horríveis ditas pelos altos sacerdotes era verdadeira... a maldição que diziam haver sobre o mago: An-het envelhecia com o passar dos anos e poderia um dia libertar-se nos braços de Osíris... mas seu amado não conseguia envelhecer ou morrer... ele estava para sempre preso em seu corpo e em seu dever... Osíris jamais o receberia...”
Isso era horrível! Pra nós, pós-modernos? Sonho de consumo!
Afinal, nós, os ocidentais, somos uns hedonistas bestões que não enxergamos um palmo além dos nossos prazeres imediatos mais burros... Porém, pros antigos sábios egípcios, morrer, após uma vida abençoada em Sabedoria, era a verdadeira Libertação... Voltar pra Casa...
Compreendi imensamente a dor de An-het e seu amado!
An-het envelhecia... mas será que ela manteve o milagre da vida?
Perguntei:
- E eles... tiveram filhos?
A velhinha riu! E me disse:
- Eu fiz a mesma pergunta para Alexsander, quando era criança! Ele me dizia que a maldição que havia sobre o mago, além de o condenar a nunca mais descansar de seu imenso dever, o impedia também de ter filhos...
Eu suspirei, mega desapontada:
- Que pena... mas e o que aconteceu depois?
“An-het viveu até os seus 123 anos... Conhecer os mistérios da cura, pelos Dons das Águas, lhe deu uma vida longa e muito próspera em Sabedoria e Amor!
Ela e o mago da Antiga Pedreira Proibida conviveram por 110 anos... viveram juntos, como casal, por 101 anos... e ele, mesmo quando ela envelhecia, nunca havia tomado outra esposa...
Até que, num triste crepúsculo para o mago, numa data que seria em nosso calendário atual o dia 1° de junho, quando ele chegou ao Templo da Cura ao fenecer do último raio de Sol, encontrou An-het muito pálida, em seu leito... respirando com muita dificuldade... incrivelmente abatida, sem forças...
Foi naquela madrugada... Nenhum dos incríveis conhecimentos do mago funcionaram... ele tentou de tudo... Tudo! Até que sentiu que os próprios Deuses bloqueavam todas as suas tentativas: Eles a chamavam... Eles a chamavam para onde o mago não poderia ir...
An-het, bem velhinha, se despediu do mago naquela madrugada... deu seu último suspiro em seus braços, momentos antes do nascer do Sol...
Ela, contra a sua vontade, o deixou... Foi-se aos braços dos Deuses...
E ele mergulhou em profunda tristeza... na antiga tristeza em que An-het havia lhe retirado, naquela especial noite de Lua Branca, junto à Antiga Pedreira Proibida, quando ela tinha 13 anos...
Conforme a tradição da antiga religião egípcia, ela foi mumificada... sua melhores e mais próximas discípulas cuidaram de tudo...
Por ela ser extremamente amada e respeitada, construíram para ela uma tumba num lugar remoto, enquanto ainda vivia, onde ela havia escolhido... foi lá onde sua múmia repousou... e aquele lugar, muitos séculos depois, seria um dia conhecido como o Vale das Rainhas...
Após o cortejo público, quando o silêncio se fez... na solidão da alta madrugada, o mago adentrou a tumba e lá colocou todos os objetos pessoais que possuíram juntos... exceto esta pintura, neste papiro, e a cruz Ankh que ele havia lhe dado e que ela havia usado por 101 anos...
Ela... a pessoa mais amada daquela época... ele, a criatura mais odiada daquele tempo... o amor entre os dois, que nasceu na Antiga Pedreira e vicejou nos umbrais daquele Templo, chegou ao fim...
O eternamente jovem mago foi, finalmente, embora do Reino Egípcio... para sempre... Dizem que ele nunca mais pisou naquelas areias e nada levou consigo... apenas a roupa de seu corpo... a cruz Ankh de An-het, em seu pescoço, e esta pintura...”
Eu não sei explicar o porquê... Não sei... mas meus olhos tavam completamente cheios d’água...
Lágrimas grossas ameaçavam cair de mim...
Hélène me fitou, delicada:
- Quando Alexsander me contou essa história, como que se narrasse um livro... eu também chorei, Selene...
Eu tentei disfarçar as lágrimas. Mas não consegui...
Eram grossas... pesadas...
Droga! Aquilo era só uma historinha inventada sobre uma obra de Arte arqueológica...
Mas por que me doía tanto agora?
Por que eu tava sentindo aquele imenso sentimento de perda naquele momento, após Hélène se calar? Por que aquilo tava tão forte?
Como se eu tivesse perdido alguém... como se me tivessem tirado dos braços de alguém... Eu... não entendia... Não fazia sentido!
Mas por que algo tão sem sentido tava me fazendo chorar daquele jeito... me fazendo sentir aquilo, aquela imensa sensação de perda?
Lágrimas chatas... Odeio lacrimejar na frente de alguém!
Lágrimas: vazamento de emoções... hemorragia de sentimentos...
Precisava retomar minha compostura! A todo custo!
Lágrimas... as sequei rapidamente com as próprias mangas do meu sobretudo, sorrindo completamente sem jeito pra Hélène...
Precisava disfarçar! Resolvi puxar outro assunto...
Apontei pra aquela outra pintura que tava ao lado do papiro de An-het.
Não queria que a velhinha me visse daquele jeito, chorando como uma boboca, por causa duma historinha inventada por seu pai...
Não mesmo! E a minha pose de guria forte, que sobrevive a qualquer coisa, ia ficar onde, heim?!
Tenho minha reputação pra zelar!
Sim! A outra pintura! Sim, vamos lá!
Chega de lágrimas, finish nesse fiasco todo!
A pintura da direita...
Let’s go!
Ela era em estilo renascentista. Nela havia uma mulher trajando um lindo vestido medieval, todo cheio de detalhes em dourado! A cor principal? A segunda melhor dentre todas: o vestido era vermelho!
Pois qual é a primeira cor, a melhor dentre todas? Preto, lógico!
Era uma mulher jovem.
Longos cabelos pretos e lisos. A pele mega branquinha.
Perguntei pra Hélène, com as lágrimas contidas a custo, fazendo de tudo pra velhinha falar sem olhar pra mim, até que minha hemorragia de sentimentos ficasse bem reprimida:
- Quem é a mulher dessa pintura aí?
Porcaria... Meu tiro saiu pela culatra...
Perguntei pra Hélène justo pra ela olhar aquela pintura e falar sem me fitar, mas aconteceu o contrário! Quando eu perguntei aquilo, a velhinha olhou pra pintura rapidamente, fez uma cara de assombro, e olhou justo pra mim:
- Senhor Deus, o Múltiplo! Agora é que compreendi porque eu achei seu rosto tão familiar, desde que pus os olhos em você, Selene! E agora sinto que Leilene também deve ter imaginado o mesmo, pois ela ficou espantada ao ver você, e muito espantada! Você é a imagem desta moça da pintura, Selene!
Quê? Como é que é?
Eu fiz uma careta.
Não captei a sua idéia, não, velhinha! Não mesmo!
Olhei pro rosto da mulher da pintura... Nada a ver!
Era uma morena de cabelos longos, e mega bonita, bem diferente de mim! Eu tenho espelho em casa – meu conhecido altar do Muro das Lamentações! – e tenho ótimos olhos: não uso óculos de grau, no estilo “fundo de garrafa”, Hélène!
E tenho o bom senso da autocrítica! Não delira, não, velhinha!
Neguei, óbvio:
- Bem capaz, Hélène! Nada a ver...
Ela? Desistiu? Capaz...
- É sim, menina! Olhe bem o tom de pele, a cor dos cabelos, o delinear do nariz, os lábios carnudos, o contorno dos olhos, as sobrancelhas, os cílios, o formato do rosto! E até a cor e expressão dos olhos: violetas, faiscantes, tempestuosos! Eu me criei vendo estas pinturas, Selene! Conheço cada detalhe delas, de cor e salteado! E Leilene também!
Eu resolvi olhar melhor pro rosto da mulher da pintura...
Bem... talvez a velhinha tivesse alguma remota razão... remota, eu disse, ok?!
Acho que se um fotógrafo tivesse, por inesperado milagre, a sorte de conseguir um bom ângulo de mim, talvez eu ficasse até parecida com aquela guria bonita que tava pintada ali...
Mas eu ainda continuava mega desconfiada da opinião de Hélène: acho que ela já tava é precisando de uns bons óculos... Tadinha da velhinha! Catarata é foda...
Mudei o rumo da prosa!
Afinal, ia ficar mega chato ficar discordando de minha anfitriã tão amável, né?!
Perguntei, então:
- E qual a história desta pintura? Alexsander criou alguma história dela também? Ele lhe contava algo?
A resposta de Hélène me deixou espantada:
- Antes de lhe narrar o que Alexsander me contava, Selene, quero falar para você sobre dados bem concretos desta obra!
Hélène silenciou. Fiz cara de curiosa. Tava curiosa mesmo, ué!
Ela começou:
- Sobre esta pintura, Selene, talvez você não acredite... Afinal, ela parece ter sido feita por um mestre renascentista italiano, não é?... Mas na realidade, conforme estudos que eu financiei aos pesquisadores da National University – pouco depois da datação do papiro de Ah-het – quando os experts pesquisaram a origem, datação e natureza da tinta, bem como o substrato onde foi pintada, descobriram que esta tela foi feita no leste europeu, por volta de 1470...
Fiquei calada. Comecei a fitar a pintura com um interesse que começou a me consumir!
Que droga! Hélène tinha o dom de me tornar insaciável por ouvi-la!
E, lógico, ouvi mesmo:
- Selene, esta pintura foi feita numa terra muito distante da pujança cultural patrocinada pela Itália dos Médici, e é quase contemporânea da Mona Lisa de Da Vinci... Quando foi datada, qual não foi a minha surpresa ao me afirmarem logo esta data: “meados de 1470”!
Minha língua coçou:
- Por que surpresa com essa data?
Hélène e suas caras de mistérios... Velhinha terrível: sabia como me deixar doidinha! Ainda mais quando ela fez aquele silêncio... que intermináveis instantes, que agonia, putz!
Até que, finalmente, ela resolveu afagar minha curiosidade:
- Bem... é que Alexsander, lá naqueles distantes anos 1940 de minha infância... quando estávamos, apenas ele e eu neste Casarão, imersos naquelas frias noites de inverno, próximos à lareira, quando ele me entretia contando as suas histórias... Bem... ao falar deste retrato, ele me disse que este foi pintado por um bravo cavaleiro do extremo leste europeu... e que este retrato foi dado como presente à esta moça, no aniversário dela, na primavera de 1471!
Arregalei os olhos!
Hélène emendou, em sintonia com meus olhos:
- Fiquei mesmo muito surpresa, Selene, quando os laudos da Universidade confirmaram não apenas a data, mas também o local em que Alexsander dizia que esta obra foi produzida...
Brevíssimo silêncio. E ela arrematou:
- Eu imaginava que as pessoas de quem Alexsander comprava essas obras deviam ser mesmo muito sérias e confiáveis para lhes repassar informações tão precisas... informações que pude averiguar, com apoio de pesquisadores, apenas muitos anos depois...
Eu?
Eu já tava tão... seduzida? Sim! Seduzida pela imagem daquela pintura, seduzida pela aura que emanava daquela tela – uma deliciosa aura habilmente criada pela velhinha – que nem percebi o sutil sorrisinho maroto que minha anfitriã deixava escapar...
Sedução... faz a gente se perder pra valer, sempre deixando aquele gostinho de “quero mais”.
Lógico: minha curiosidade atingiu o auge!
- Você sabe quem foi essa moça, Hélène?
Ela suspirou fundo... e me disse:
- Sim... eu sei quem ela é... sei pela história que Alexsander me contava... mas é uma história bem triste...
Triste.
Ah, depois do fiasco que eu fiz ouvindo a história de An-het, agora eu já tava pronta pra qualquer coisa!
Chorar? Capaz! Agora eu já tava prevenida!
Prevenida e... sedenta de curiosidade!
Olhei pra Hélène daquele jeitinho... Você sabe: com aquela carinha de súplica do Gato de Botas do Shrek!
Lógico! Implorei com meu olhar pra que ela me contasse duma vez a história!
Funcionou:
“Junto àquela lareira, Alexsander me contava que esta moça se chamava Saraí...
Saraí era uma cigana, nascida numa região da Europa que hoje pertence à Romênia.
Ela não era apenas uma cigana... era bem mais do que isso... Saraí era uma grande bruxa cigana, e uma grande parteira e curandeira!
Desde pequenina, muito novinha, ela já demonstrava especiais dons para extrair os maus fluidos dos doentes e realizar rituais místicos de cura com a Água Doce... Na adolescência, ela já era muito respeitada por seu grupamento, seu clã... Onde havia um caso de difícil cura, em que a pestilência fincava suas patas e não arredava o pé, era para Saraí que as pessoas acorriam! Pessoas doentes vinham de longe à procura dela, muitas pagando bem por seus serviços, o que por vezes fazia o clã fixar-se por mais algum tempo em certos locais...
Diziam até que Saraí conhecia tão bem os fluidos que, em noites em que a Lua estava muito Branca lá no céu, ela era até capaz de fazer as águas de lagos e riachos dançarem conforme sua vontade... Por causa disso, as pessoas também passaram a chamá-la de uma expressão daquele dialeto cigano, expressão que significava... “Lua Branca”...
Até que, infelizmente, por causa da extrema violência das guerras entre cristãos e islâmicos, com o forte avanço turco sobre a península, o clã de Saraí buscou refúgio numa região que diziam ser muito defendida por um príncipe implacável contra o invasor... as pessoas estavam muito apavoradas, fugindo daquelas horrorosas batalhas que não poupavam nem mesmo as crianças e os bebês do fio da espada...
Saraí tinha 16 anos quando seu clã buscou refúgio naquela terra onde diziam que os islâmicos não ousavam marchar: Transilvânia...
Transilvânia?
Transilvânia! A terra que Bram Stoker narrou ser a pátria do Conde Drácula? Justo ali Saraí foi morar!?
Minha cabeça já começava a dar voltas!
Aquela história deveria ser simplesmente incrível!
Mas permaneci atenta a cada palavra da velhinha, tentando calar a boca dos meus pensamentos, pra não perder nadinha:
O clã de Saraí acabou fugindo da panela... para cair no fogo!
Acreditando que estariam protegidos naquelas terras, o território do implacável Príncipe Cristão, Senhor dos Cavaleiros da Ordem do Dragão, não sabiam que as tropas turcas evitavam saquear aquela região justamente porque aquele senhor feudal era mais cruel do que qualquer califa jamais havia sonhado nos seus mais temíveis pesadelos além das Mil e Uma Noites!
O Príncipe Cristão, Senhor dos Cavaleiros da Ordem do Dragão, não era cruel apenas com o invasor: também o era com seu próprio povo!
E foi assim que aconteceu...
Foi numa madrugada... o clã de Saraí foi atacado, numa expedição punitiva, pelos cavaleiros do Príncipe Cristão, porque eles não foram capazes de pagar os altos impostos exigidos para permanecer na região...
E foi então que, da escuridão da madrugada, ele surgiu!”
Meu coração já tava batendo forte! Mega forte!
Meus olhos brilhavam! Não sei se a velhinha percebeu:
“Enquanto o clã de Saraí era atacado, emergiu da escuridão da noite, montado em um cavalo todo negro – um cavalo assustador: possuía crinas e rabo de Fogo, e os olhos e os cascos das patas eram pura chamas! – e vestindo uma armadura toda negra, com uma enorme capa vermelha e branca, aquela lenda viva!
O cavaleiro que só era visto quando um ímpio seria punido ou uma criatura das Trevas seria executada!
Aquele cavaleiro, do alto de seu cavalo infernal, empunhava um estandarte cujo brasão era um sol negro em chamas. O estandarte que originou seu nome e sua lenda: a Lenda do Cavaleiro Sol Negro!
Ele surgiu perante a tropa do Príncipe Cristão, como que se viesse de dentro das profundezas das chamas que crepitavam na fogueira do acampamento! Do nada!
Os Cavaleiros da Ordem do Dragão o temiam muito! Perante sua presença, desejaram fugir! Mas para onde? Jamais poderiam retornar se fugissem, pois o Príncipe Cristão jamais aceitaria uma derrota e os torturaria até a morte!
Acuados, os cavaleiros do sanguinário senhor feudal resolveram atacar o Cavaleiro Sol Negro!
E, em alguns minutos, Sol Negro, como que se suas duas espadas dominassem o Fogo e o Trovão, derrotou todos os seus oponentes!
Ele deixou apenas um cavaleiro vivo, o que tinha o pior karma: este seria seu arauto para que fosse levar ao Príncipe Cristão a sua mensagem!
Ao apavorado sobrevivente da batalha, lhe entregou uma carta com seu selo – um sol enegrecido! – e nela assim estava escrito:
‘O sangue destas pessoas não será mais drenado! E não podeis crer que a balança do karma penda a vosso favor para sempre. Ai de vós o dia que a balança fazer o que fazem todas as balanças: balançar!’
E disse, em alta voz, ao seu arauto:
- Nunca mais quero ver nenhum Cavaleiro da Ordem do Dragão em meu território de caça, entendeu? Se sequer aproximarem-se dessas pessoas, sentirão o peso da minha ira!
E o único cavaleiro sobrevivente saiu em disparada – levando a mensagem escrita nas suas mãos e a mensagem ditada atordoando seus pensamentos! – cavalgando como se fugisse da bocarra fumegante do próprio inferno!
‘O sangue destas pessoas não será mais drenado!’
Eis o porquê do Cavaleiro Sol Negro ter escrito tais palavras:
Corriam boatos de que o Príncipe Cristão era um vampiro!
Porém, madrugada após madrugada, eis que Sol Negro surgia, protegendo os justos do apetite do senhor feudal... E a região, em que a capa vermelha e branca do Cavaleiro Sol Negro tremulava, protegendo os justos, cada vez mais se expandia...
O território de influência do terror, do sanguinário Príncipe Cristão, diminuía a cada madrugada...
Foi então que surgiu um outro boato:
De que Deus havia enviado o Grande Justiceiro!
E, de lábios em lábios, o povo sussurrava – durante os dias ensolarados nos trabalhos nos campos e, nas trevosas noites, nas parcas horas de descanso ao redor das fogueiras – que aquele cavaleiro, o portador do estandarte do Sol Negro, era o Grande Justiceiro enviado pelo próprio Deus...”
Eu?
Já tava era quase subindo pelas paredes!
Pirando com aquela história de vampiros e cavaleiros!
Piradinha! Olhinhos brilhando!
Justo na Transilvânia! E, ainda por cima, a cereja do bolo, a última bolachinha do pacotinho: um vampiro cristão sendo caçado por um Grande Justiceiro!
Minha língua? Linguinha safada: não parava de comichar!
E comichava tanto porque minha curiosidade tava incendiando:
- E o que aconteceu depois que o Cavaleiro Sol Negro salvou o clã cigano de Saraí?
Hélène e o Corpo de Bombeiros: vã tentativa de apagar minhas chamas...
- Bem, depois que aquele misterioso cavaleiro salvou os ciganos, as videntes do clã concluíram que ele era mesmo o Grande Justiceiro enviado por Deus! E resolveram lhe pagar um tributo, em sinal de gratidão...
Tributo? Me conta, Hélène, vai:
- E que tributo era esse?
Hélène sorriu. E disse com uma carinha indecifrável:
- Oferendas! E descobriram justamente quais as que o Grande Justiceiro mais gostava através da vidência e de seus Tarot Ciganos!
Putz! Que mão boa pra Tarot aquelas antigas ciganas tinham, heim!?
Mas e daí? Não para de contar a história não, velhinha! É crueldade me deixar assim, toda curiosa! Ah, vai, continua:
- E o que aconteceu?
Beleza! Hélène continuou alimentando minha fome por aquela história:
“Bem, os ciganos acharam que, para agradar ao seu protetor, ele devia ser oferendado seguidamente... mas ele era muito formoso! E formosura exigiria formosura, pensaram as videntes!
Assim, acreditaram que para a Oferenda ser bem aceita, seria a jovem mais bela e importante do clã quem deveria levar para ele a Oferenda, bem no alto de uma colina, onde havia uma imensa Rocha encravada...
E, obviamente, quem foi a escolhida: Saraí!”
Nossa! Eu tava pirando:
- E ela!? Levou mesmo a Oferenda? Ela não teve medo?!
A velhinha deu uma gostosa risada:
- Selene, eu fiz as mesmas perguntas para Alexsander! E na sua história, ele assim me contava...
“Quando Saraí levou a Oferenda pela primeira vez, ela estava terrivelmente assustada!
Na verdade, a adolescente estava em pânico! Mas não podia fugir de seu dever com seu clã: aquela Oferenda, se garantisse a benção de seu novo protetor, podia ser a diferença entre a vida ou a morte de todos a quem ela amava!
Quando o Sol se pôs, Saraí, no alto daquela colina, com a Oferenda nas mãos, já estava tomada pelo pânico! Seu coração batia quase em desespero! Sua respiração não dava mais conta de lhe trazer o ar, sufocando-a!
Nisso, ela ouviu repentinamente, atrás de si, o relinchar do cavalo negro – que exalava Fogo pelas ventas!
Ela virou-se, apavorada!
E cavalo e cavaleiro estavam bem diante dela!
O Grande Justiceiro segurava, imponente, seu estandarte do Sol Negro na mão esquerda!
Cravou o estandarte no solo da colina!
Finalmente, ele olhou para ela... e olhou para a Oferenda.
Ela, tomada pelo pânico, não sabia se ajoelhava-se em súplica, implorando que aquela criatura temível poupasse sua vida, ou se fazia uma reverência respeitosa!
Mas Saraí jamais se ajoelharia perante ninguém, nem mesmo diante da morte certa! Ela só se ajoelharia perante seus Deuses e Deusas!
Com aquela coragem que só o mais crítico momento de dificuldade pode oferecer, ela assim agiu:
Fez uma respeitosa reverência... Olhou muito firme nos olhos do Grande Justiceiro – com uma coragem que ela nunca imaginou ser capaz de ter! – e lhe disse, dissimulando seu pavor e pânico, em tom muito firme:
- Eis nossa Oferenda de gratidão a você, criatura sobrenatural!
Sol Negro a encarou!
Fitou demoradamente Lua Branca!
E fez uma cara de incrível espanto... e de profunda intriga!
Ele chegou a inclinar o seu rosto, pois assim o fazia, instintivamente, sempre que sentia uma profunda dúvida sobre algo...”
Nossa! Quando Hélène me disse isso...
Como um raio... imediatamente veio na minha mente o rosto de Álex!
Aquela sua expressão, indecifrável, que ele me dirigiu naquela noite, no Cemitério de New Bethlehen...
Parecia que eu tava enxergando a mesma expressão, descrita agora por Hélène, pro Grande Justiceiro encarando Saraí!
Minha cabeça começou a dar voltas...
Psiu! Chega de viajar, garota!
Presta atenção na história!
Mesmo falando isso pra mim mesma, tive muita dificuldade pra tentar calar a boca da minha mente e prestar atenção em Hélène, que prosseguia narrando a história:
“O Grande Justiceiro, com aquela expressão de profunda dúvida no rosto, após muito tempo em silêncio, perguntou para Saraí, com uma voz aveludada e amável:
- Nós já nos conhecemos de algum lugar?
Saraí jamais imaginava que a criatura sobrenatural, como suas primeiras palavras para ela, lhe dissesse algo assim! E naquele tom extremamente gentil, tão belo!
Aquelas palavras, imersas naquela voz inesperadamente tão bonita, doce e amável, começaram a acalmar a moça... E, mais calma, Saraí assim conseguiu responder, respeitosa:
- Não, meu senhor. É a primeira vez que o vejo de tão perto...
O Grande Justiceiro desceu de seu cavalo de crinas flamejantes.
Se aproximou de Saraí...
Quando estava a centímetros dela, ergueu lentamente suas mãos... devagar... com um sorriso delicado no rosto... de forma que a moça não se assustasse ainda mais com ele... desejando que ela não o temesse...
E, erguendo seus braços em direção à Oferenda, que Saraí segurava, enquanto a recebia em suas mãos, as pontas dos seus dedos suavemente tocaram nas mãos da jovem cigana...
Foi então que, nesse momento, aconteceu!
Algo como um... choque elétrico... Sim, um choque elétrico – porém imerso em saudoso prazer, algo que há incontáveis eras o Grande Justiceiro nunca mais havia sentido! – percorreu por todo o seu corpo...”
O quê?!
Como é que é?!
Para! Para tudo!
Minha cabeça começou a pirar quando a velhinha falou aquilo...
Choque elétrico!?... Prazer!?
Seria algo... seria algo semelhante ao que eu senti quando...
Não, não podia ser! Eu tava fantasiando!
Eu tava ficando muito impressionada com as histórias daquela velhinha...
Não, não! Que bobagem a minha...
Selene, Selene, cala essa boca dos teus pensamentos! Para de delirar, menina!
Juro que tentei calar de novo a boca da minha mente... prestar atenção à Hélène, que prosseguia contando aquela história que seu pai adotivo lhe contava...
Calar a boca da minha mente? Complicado: que tarefinha mais danada de difícil... Mas fiz de tudo pra continuar prestando atenção:
“Quando sentiu aquela inesperada onda de prazer, o Grande Justiceiro deixou a Oferenda cair ao chão e se virou bruscamente!
Afastou-se rapidamente de Saraí...
Ocultou-se do olhar da bruxa cigana...
Pois, de costas para ela, Sol Negro chorava!
Antigas lágrimas, há muito represadas, fugiam do antigo cárcere de seu peito... mas ele não deixou a cigana perceber isso, de forma alguma!
Então lhe disse isso, com a voz muito firme e solene, ainda de costas para ela:
- Eu aceito a vossa Oferenda, e tu e tua gente terão sempre a minha proteção.
E dito isso, o Grande Justiceiro foi até seu cavalo. Montou seu corcel negro que exalava Fogo por todos os poros!
Ele fitou demoradamente os olhos violetas de Saraí.
Foi então que ele percebeu... que ele sentiu... sentiu que a moça não estava mais com medo...
Abandonando o tom firme e solene de sua última frase, ele finalmente disse, com uma voz incrivelmente terna e sedosa, as palavras que Saraí jamais esqueceria:
- Se tu, assim o quiseres, gostaria que fosse sempre tu a me trazer as Oferendas... mas tu és livre para não o fazê-lo...
Dito isso, o Grande Justiceiro esporou seu cavalo negro, que relinchou feroz!
Desceu a colina em disparada – queimando a relva por onde os cascos do corcel de Fogo passavam – desaparecendo rapidamente...
Quando Saraí voltou a si – após aquele incrível encontro com a criatura sobrenatural que a deixou... estática! – ela se virou para a Rocha, aonde a Oferenda havia caído ao chão... Foi quando ela viu que nada dela restava! Havia apenas uma marca no chão, como se uma fogueira tivesse consumido a Oferenda completamente!”
Hélène foi cruel: fez uma pausa!
Não faça isso, não!
Disparei:
- E o que Saraí fez? O que ela fez!? Heim?!
A velhinha deu uma sonora risada:
- Na semana seguinte Saraí estava lá de novo, com Oferendas nas mãos, no alto daquela colina... e na outra semana, lá estava Saraí... e na outra semana também, e na outra, e na outra...
Nossa! Não me aguentei da risada e do jeito que Hélène me contou o que aconteceu! Eu também ri:
- Quer dizer que ela perdeu mesmo o medo do Grande Justiceiro, é?!
- Bem mais do que isso, Selene... foi bem mais do que meramente perder o medo... Foi isso que aconteceu:
“Diferentemente das outras pessoas, Saraí conseguia ver com uma estranha e imensa facilidade através dos olhos do Grande Justiceiro...
Os olhos: o Espelho da Alma... como se conhecesse muito bem aqueles olhos, de há muito tempo...
Ela o fitava... e naqueles encontros, no alto daquela colina, ela lhe dizia o que via... sua Alma...
Lhe dizia que sentia muita virtude em seu coração... um coração pulsante, forte, nobre... límpido!
Mas lhe dizia que também via um coração oprimido por um imenso Senso de Dever... como se uma responsabilidade imensa lhe pesasse, insuportável, por sobre seus ombros...
Aquilo que Saraí dizia enternecia o Grande Justiceiro, de um modo sem igual...
Todos, em toda a parte, o temiam!
Tudo o que respirava o temia... Todos!
Todos, exceto Saraí!
As semanas foram passando...
Sol Negro e Lua Branca sempre se viam no alto daquela colina...
As semanas se transformaram em meses...
E Sol Negro começou a revelar à Lua Branca seus antigos segredos...
Magias muito antigas... de tempos há muito sepultados nas areias do esquecimento...
Conhecimentos Secretos sobre o que crepita no Fogo, o que baila no Ar, o que fixa-se na Terra.. o que dança na intimidade da Água...
Como ele sabia de tudo aquilo?
Lua Branca descobriu que ele já havia sido um Príncipe Mago... antes de ser condenando a vagar eternamente atrás daqueles que fizeram as Trevas nascerem...
Nascido em um tempo muito antigo, que há muito não mais existia... sabedor de coisas que se perderam na ampulheta das eras...
E Lua Branca ficava fascinada com as histórias que Sol Negro lhe contava, quando estavam deitados naquela colina, sob o manto das Estrelas... pessoas, cidades, povos e terras longínquas que ela jamais havia conhecido!
E sob a abóbada estelar, sob o manto daquele luar os abençoando, naquela colina, os dois acabaram se apaixonando...
Todavia, eles jamais conseguiram se casar...
Embora o Grande Justiceiro a desejasse muito, realmente querendo tomá-la por esposa, ele temia muito pela segurança de Saraí.
Sol Negro não temia que o Príncipe Cristão soubesse do amor dos dois...
Não... o senhor feudal não o intimidava... o sanguinário Senhor dos Cavaleiros da Ordem do Dragão só estava ainda vivo porque alguém muito pior lhe dava sustentação e conselhos... Alguém que ele não poderia enfrentar diretamente em sã consciência...
Era esse alguém que Sol Negro temia... ele temia que ela descobrisse o amor que ele nutria por Lua Branca!
Ela... a Princesa das Trevas! A Suserana das Trevas, de quem o Príncipe Cristão era um poderoso vassalo...
Ela... a Princesa... a Devoradora de Homens!
Assim, Sol Negro manteve seu amor pela cigana em absoluto segredo...
E enquanto isso, no clã de Saraí...
Como sentiam-se muito seguros, protegidos pelo Grande Justiceiro, fixaram-se naquelas terras, enquanto os campos de batalha da península inteira eram tingidos do rubro sangue de cristãos e islâmicos... Graças ao seu protetor, nas Trevas daquela guerra, o clã de Lua Branca havia encontrado paz!
Os meses se transformaram em anos!
Por sete anos Saraí levou as Oferendas para o alto daquela colina... e por sete anos Lua Branca e Sol Negro se amaram...
Em um aniversário de Saraí, Sol Negro lhe presenteou com esse retrato, que hoje vemos nessa parede...
Ele fez essa pintura sem que sua amada sequer necessitasse posar para ele! Cada detalhe de seu corpo e de seu Espírito já estavam impressos na Alma dele! E através das antigas tintas desta tela, imortalizavam-se aquelas noites de amor entre Sol Negro e Lua Branca...
Por sete anos eles viveram verdadeiramente... Por sete anos, sentiram-se completos... sentiram-se como se tivessem finalmente retornado para Casa!
Até que...
Até que, em dezembro de 1476, a Princesa das Trevas descobriu o amor entre Sol Negro e Saraí...
Finalmente! Ela havia encontrado uma forma de ferir aquele que era invulnerável...
O intocável Sol Negro, que a perseguia há incontáveis eras sem descanso, agora era tocável: a forma para derrotar o seu maior e mais poderoso inimigo havia sido descoberta!
E as Trevas da Devoradora de Homens utilizou-se das Trevas humanas...
O Abismo e a Inquisição: um antigo casamento selado com um beijo nos covis das fossas abissais...
A Devoradora de Homens controlava o Inquisidor da Igreja... e conseguiu que este ordenasse rapidamente, por seus subordinados, a prisão de Saraí por prática de Bruxaria.
No alvorecer daquele dia, quando os primeiros raios de Sol despontavam, prenunciando um lindo dia, Saraí foi presa pelos Cavaleiros da Ordem do Dragão e levada aos sacerdotes inquisidores locais da Santa Madre Igreja...
Perante os homens de Deus, os doutores da Doutrina da Fé, ela realizou sua confissão: sob tortura...
Cortaram seus cabelos... utilizaram diversos instrumentos de vil metal em seu corpo, para purificá-la com a confissão...
Com o Sol brilhando forte, ao meio-dia, os defensores da Doutrina da Fé já possuíam farto material para a execução da cigana, como autora de uma imensa lista de crimes...
E, no entardecer daquele mesmo dia, 21 de dezembro de 1476, quando o Sol ainda se negava a deixar-se morrer, na praça central do vilarejo, nada mais de Saraí restava, senão as suas cinzas... as labaredas da fogueira a engoliram, perante o olhar atento dos Doutores da Fé que oravam para salvar sua alma...”
Minha Deusa!
Quando eu ouvi isso... um arrepio horrível percorreu todo o meu corpo!
Comecei a sentir como se apertassem meus dedos com alicates... e outras coisas horríveis...
Comecei a sentir como se uma fumaça de madeira verde me sufocasse junto com um enorme calor...
Eu comecei a passar muito mal, mas muito mal mesmo!
Comecei a ficar com dificuldade pra respirar, como se tivesse começado uma... crise de asma!
Eu nunca tive asma!
Comecei a suar frio... olhei pra Hélène... Ela tava fitando, absorta, a pintura de Saraí... ótimo! Ela não tava olhando pra mim!
Aquilo ia passar. Tinha que passar!
Por que aquele mal-estar súbito? Aquelas sensações horríveis percorrendo meu corpo?
Elas tinham que passar!
Me apoiei de leve num móvel atrás de mim, pra recuperar um pouco meu equilíbrio... sem que a velhinha desconfiasse do que eu tava fazendo...
Fiz de tudo pra ela não olhar pra mim até que eu conseguisse me recompor... Usei pra isso a estratégia de lhe fazer perguntas.
Sim! Ela tava tão absorta lembrando das histórias de seu pai adotivo, olhando pra aquela pintura, que se eu estimulasse ela, a velhinha nem olharia pra mim até terminar a história.
Disparei:
- E o que houve depois?
Beleza! Ela caiu na minha jogada, nem olhou pra mim!
Ganhei tempo pra me recompor sem que ela percebesse, enquanto ela prosseguia sua narrativa:
“Naquele crepúsculo de 21 de dezembro, quando finalmente o último raio de Sol morria no horizonte, Sol Negro surgiu no alto da colina, conforme o combinado...
Foi a primeira vez, em sete anos, que Saraí havia se atrasado... ela sempre estava lá antes do crepúsculo.
Sol Negro sentiu que algo estava errado, muito errado...
Uma sensação horrível lhe varreu o peito!
Ele cavalgou rapidamente para o acampamento cigano.
Foi quando o clã de Saraí lhe disse, chorando muito, que os Cavaleiros da Ordem do Dragão a levaram pela manhã, acusada de Bruxaria! Seus parentes estavam desesperados atrás de informações, mas foram ameaçados de morte pelos Cavaleiros do Príncipe Cristão se fossem até o vilarejo.
Sol Negro mal ouviu aquelas palavras e saiu cavalgando em disparada! Destroçando qualquer Cavaleiro da Ordem do Dragão que ousasse cruzar em seu caminho!
Até que chegou no vilarejo e, na praça central, encontrou as cinzas de uma fogueira inquisitorial, ainda fumegantes!
O Grande Justiceiro desceu de seu cavalo como um forte sopro de vento, e ajoelhou-se perante aquelas cinzas!
Ergueu sua mão direita e tocou-as.
Foi quando aconteceu!
Ao tocar as cinzas, ele sentiu... ele sentiu tudo...
Tudo! Em fração de segundos!
Sentiu Saraí sendo levada pelos soldados no alvorecer do Sol... sentiu-a perante os intimidadores inquisidores... sentiu seu medo... sentiu-a sendo levada para o calabouço, onde os instrumentos de confissão a esperavam... sentiu as dores em seu corpo... sentiu a imensidão do sofrimento de cada violação que lhe impuseram... sentiu seu sangue e lágrimas escorrendo... sentiu-a amarrada no poste da fogueira... sentiu os seus gritos! Seus gritos horríveis sendo consumida pelas chamas!
Sua Saraí foi assassinada!
Sua Lua Branca!
Tudo o que restava dela... estava agora nas suas mãos... cinzas... um punhado de cinzas fumegantes!
Seus cabelos que ele um dia acariciou... seu rosto, que ele amava nele perder-se... sua voz, que lhe acariciava o coração... seus sonhos, que sonhavam em comunhão com ele...
Nada mais restava... senão aquelas cinzas em suas mãos...
Sua amada Lua Branca não existia mais!
Foram os segundos mais terríveis de toda a longa vida de Sol Negro...
Ele desabou em profundo desespero!
Prostrou-se de joelhos, no meio das cinzas... as segurava desesperadamente entre seus dedos, tentando acariciá-las... mas elas escorriam de suas mãos, fugindo...
Jogou seu rosto sobre as cinzas e chorou, como nunca se imaginou que um ser vivo fosse capaz de chorar... Suas lágrimas misturavam-se às cinzas...
Diz a Lenda que ele deu gritos de dor e horror que acordaram todos os mortos sepultados no cemitério daquela vilarejo!
Após os gritos, houve um silêncio sepulcral... Nada se ouviu por um tempo tenebrosamente longo... nenhuma ave noturna... nenhum grilo... os pios das corujas, o movimento dos morcegos, tudo pareceu estar suspenso no ar...
Até que se ouviu algo!
Um rugido! Um rugido de puro ódio! Não se sabia se era um rugido humano, pois ninguém sabia se até mesmo o ser humano mais furioso poderia rugir com tamanho fel de ódio!
Após aquele rugido, ouviu-se o relinchar do cavalo flamejante. E o som das patas do animal queimando a relva enquanto cavalgava para um lugar que todos temiam por demais: o castelo do Príncipe Cristão!
Diz a lenda que o Grande Justiceiro destruiu tudo o que havia em seu caminho até o castelo, engolindo tudo e todos que ousassem encará-lo, em chamas de puro ódio!
Ele havia perdido completamente o controle!
Quando ele destruiu como um Trovão as muralhas do castelo, com as mãos nuas, e o adentrou, surpreendeu a Princesa das Trevas e o Príncipe Cristão em comemoração antecipada à vitória contra o Sol Negro...
A Princesa não imaginava que Sol Negro ficasse invencível sustentado por um ódio que nunca houve nele... e ele a caçou, como o leão caça a zebra, nos labirínticos corredores daquele castelo!
Nada o detinha, nada! Nem Fogo, nem Terra, nem Ar, nem Água, nem Madeira, nem Metal, nem Éter!
Ele conseguiria destruí-la para sempre, vencer com as mãos nuas a mais poderosa criatura das Trevas que já existiu, se o Príncipe Cristão não surgisse e a protegesse!
Os dois combateram, como duas bestas-fera! Presas enormes pendentes de suas mandíbulas rasgavam a carne um do outro! A manipulação dos mágicos Elementos da Natureza era igualmente feroz!
A Princesa fugiu enquanto os dois lutavam... vaidosa por sua extrema beleza, ela porém não escapou sem máculas: ela, a mais poderosa e antiga criatura das Trevas, ficou marcada para sempre com uma pequena cicatriz no lado direito de sua testa... uma cicatriz que lembrava o desenho de um “A”...
Enquanto a Princesa das Trevas fugia, Sol Negro derrotou o Príncipe Cristão!
Ele estava tomado de tanta fúria, sem nenhuma consciência, tal como a mais pura besta-fera, sentindo as dores e ouvindo os gritos de sua amada naquela fogueira que, dizem, Sol Negro derrotou o sanguinário Príncipe Cristão arrancando-lhe sua cabeça à dentadas...
Assim terminou aquela horrível noite...
E, depois disso, o Grande Justiceiro, o protetor dos justos, nunca mais lá foi visto...
Ele havia desaparecido para sempre!”
Eu só me lembro que eu ainda sentia as minhas pernas até a hora que a velhinha falou a frase “arrancando-lhe sua cabeça à dentadas”...
Daí pra frente, tudo começou a escurecer... minhas pernas afrouxaram completamente...
E eu não me lembro de mais nada!
De repente eu senti o carpete macio da sala, nas minhas costas...
Senti uma coisinha no meu rosto... parecia uma suave brisa... um ventinho...
Era Hélène, me abanando com um jornal!
A velhinha tava com o rosto mega preocupado:
- Menina! Menina! Tudo bem?
Eu apoiei o meu braço no carpete macio.
Tava tentando me sentar no chão...
Hélène percebeu a minha intenção. Me ajudou a me sentar ali no chão.
Perguntei, com uma voz toda boboca, como se tivesse chapada:
- O que aconteceu comigo? Como eu vim parar no chão?
Hélène, com os olhos mega espantados, falou:
- Você desmaiou, menina! Sem mais nem menos! Você está bem?
Desmaiei?
Que droga! Que fiasco!
Não sabia agora onde me enfiar, tamanha a vergonha!
Só consegui dar um horroroso sorriso amarelo...
Que fiasco que eu fiz!
Senti um calor subindo pelo meu rosto...
Sim... Droga! Eu já tava vermelha como um pimentão maduro!
Só consegui gaguejar:
- Desculpa, Hélène! Eu sou uma bobona, me impressiono fácil!
Eu tentei sorrir algo melhor pra aquela velhinha assustada, algo menos pior que um sorriso amarelo...
Lógico que só saiu uma das minhas clássicas caretas...
Hélène me sentou na poltrona.
Em instantes eu já tava me sentindo bem... tudo funcionando normal de novo...
Checando o sistema: todos os instrumentos on line novamente...
Mas que trabalho eu tive pra convencer aquela velhinha de que eu realmente tava bem de novo...
E agora eu tava era morrendo de vergonha!
Onde eu ia esconder a minha cara vermelha de pimentão?!
Rápido, garota, rápido! Uma saída! Uma desculpa gentil pra você dar o fora!
Perguntei pra velhinha quais horas eram.
Hélène me respondeu.
Fingi surpresa e espanto.
Menti, afirmando que tinha um compromisso de família muito importante, dentro de apenas uma hora, e que eu tinha mesmo que ir agora.
Precisava tomar meu caminho senão chegaria muito atrasada!
Ainda demorei uns bons minutos pra convencer a velhinha de que eu tava em condições de dirigir a minha moto...
Ela disse:
- Não quer que Leilene te leve para casa na pick-up dela? Colocamos sua moto na carroceria da pick-up!
Nossa, a coisa não cansava de piorar! Agora até a fera selvagem da loira da propaganda de cerveja e frete pra minha Luna já tavam na jogada!
Droga, Droga! Porcaria!
Sua bobona, porque tinha que passar mal e desmaiar ouvindo só uma historinha?!
Consegui me desdobrar em argumentos, até que tirei aquelas idéias da cabeça da velhinha!
Mas ela ainda tentou me convencer a ficar. Não queria que eu me acidentasse na moto de jeito nenhum:
- Álex em breve estará em casa. Não quer esperar mais um pouquinho para dar um “oi” para ele? Até lá, você realmente se recuperou de verdade! Está tão branquinha ainda!
Lógico que eu neguei! Usei o compromisso de família como desculpa.
Mas... que droga! Por que a velhinha tinha que colocar Álex na pauta da conversa, heim?
Droga, droga, ela pegou no meu ponto fraco:
- Álex não ficaria irritado se soubesse que eu vim aqui incomodar ele?
Sua idiota! I-di-o-ta! Isso era coisa pra se falar?!
É só ouvir o nome “Álex” e você já começa a fazer besteira? Pega a Luna e vai embora duma vez, antes que faça ainda mais fiascos!
Eu tava me massacrando, mas Hélène ao invés de participar disso, deu um sorriso mega amável pra mim, dizendo:
- Imagina, menina! Que incomodar o quê! Você é exatamente como ele me descreveu: uma moça muito educada e gentil! Ele iria adorar conversar com você!
Ai... ai...
Dei um sorriso... e todo desajeitado!
Minha vergonha aumentou ainda mais!
Eu me despedi da velhinha com um abraço igual a mim: esquisito, inadequado e desajeitado!
Hélène me acompanhou até o portão do Casarão.
Montei na minha Luna, com a cabeça girando – muita coisa falando ao mesmo tempo dentro da minha cabeça! – mas abanei pra Hélène, tentando sorrir enquanto colocava o capacete...
Foi então que a velhinha me disse, mega gentil:
- Você é muito querida, Selene! Venha nos visitar sempre que quiser, está bem? Não precisa ter vergonha alguma: seja sempre você mesma!
Eu sorri, acenando afirmativamente com a cabeça, só por educação...
Porque na real eu não entendi foi nada... parecia que ela tava falando a língua do Espírito Santo dum culto duma Igreja Evangélica, ou sei lá o que, porque tinha tanto barulho na minha mente que eu nem ouvia nem entendia nada...
Eu queria era sair dali a mais rápida possível!
Que vergonha, que vergonha!
Liguei o motor da Luna e fui embora!
Até que enfim. Consegui fugir!
Enquanto minha moto acariciava o asfalto de Lamy Village, minha cabeça tava zoando, zonzando, e todas as palavras com “z”, como “zigue-zague”...
Eu tava como que... completamente desencaixada do meu corpo!
Eu não conseguiria dirigir muito daquele jeito, não mesmo!
Decidi ir até a praia de Lamy Village... Ficaria lá uns instantes, até conseguir me reencaixar de volta em mim mesma!
Acho que a prainha de Água Doce deveria tá linda com os reflexos daquele Sol refletindo nas águas do Guayhba River, mas eu não percebi nada disso não...
Desliguei minha moto.
Desci dela. Tirei meu capacete.
Me sentei no chão, na areia amarelinha da praia.
Fiquei recostada na Luna.
Olhei pros lados. Eu tava sozinha.
Ótimo, ótimo! Eu precisava muito ficar sozinha...
Não queria, de jeito nenhum, Homo sapiens algum perto de mim naquela hora...
E foi então que aconteceu...
De repente, não sei explicar o porquê, eu comecei a chorar!
E como eu chorei!
Sem motivo nenhum!
Simplesmente meu peito tava se sentindo mega oprimido... pesado... como doía!
E eu chorei tanto, mas tanto... que até cheguei a soluçar!
Não tenho a menor idéia de quanto tempo eu fiquei naquela praia chorando...
Eu secava minhas lágrimas com a barra da minha camiseta negra da The Gothic Melody and Dark Roses, mas parece que não parava mais de vir lágrimas...
A única vez que eu chorei daquele jeito foi no sepultamento de Rachel, quando o caixão dela baixou a sepultura... mas agora eu chorava sem motivo nenhum!
Eu não tinha a menor idéia do que tava acontecendo comigo!
Quando a imagem daqueles retratos... de Ah-het e Saraí... me vinham na mente... chorava, chorava!
Como se eu tivesse perdido alguém muito importante pra mim... como se eu tivesse deixado alguém que eu amava muito, completamente contra a minha vontade...
Que sentimento horrível! Como aquilo doía!
E era... indecifrável... impossível de entender!
Minha mente não conseguia compreender aquilo... mas meu peito sentia...
Eu nem sei quanto tempo fiquei assim, naquela praia...
No final das contas, a barra da minha camiseta já tava toda molhada... na beira de um rio de Água Doce, garanto que eu era a única pessoa do mundo que conseguia ficar com a camiseta molhada por Água Salgada...
Só podia acontecer comigo mesma uma coisa dessas! Grande...
Olhei pra minha camiseta com a barra ensopada... meu olhar tava meio perdido ainda...
Até que comecei a perceber melhor a paisagem...
Comecei a perceber o Guayhba River...
Tão vasto... suas águas bailavam devagar sob uma suave correnteza, de mãos dadas com as ondinhas feitas pelo vento... cresci vendo aquele Rio... por vezes tão largo a ponto de não se conseguir ver a outra margem... alguns desavisados até o confundiriam, por vezes, com um lago...
O vento criando aquelas ondinhas nas suas águas, que eu sempre amei vislumbrar...
Aquelas garças bem branquinhas voando, de forma delicada, silenciosas...
O perfume gostoso das suas Águas se misturando com o cheiro da vegetação próxima à margem, como numa dança de amor entre a Mata e as Águas, embaladas pelo Vento...
Foi só então que eu percebi que eu tava calma...
Percebi que eu não tava mais tonta...
E que não chorava mais...
Mas eu devia tá com os olhos mega vermelhos e inchados! Chorei muito mesmo!
Fiquei mais algum tempo olhando pra aquela paisagem que eu amava... que me acalmava...
Cresci olhando pra ela... Quando a coisa ficava feia pra mim, era aquela dança das Águas e do Vento, fazendo amor, que sempre me acalentava...
Fiquei ali, assim, sei lá quanto tempo... absorta...
Jamais desconfiei que, num local impossível de ser vista por mim – no alto duma árvore próxima! – Leilene me observava por todo aquele tempo... muito atenta a cada respiração minha...
Naquela prainha fiquei... Até que tomei coragem de tomar a estrada.
Peguei minha garrafinha de água da minha mochila e a tomei quase toda, duma vez só!
Tava sedenta... como se eu tivesse expulsado toda a água do meu corpo através das minhas lágrimas...
Olhei pro sanduíche na minha mochila. Ele me embrulhou o estômago!
Eca! Sem fome!
Guardei a garrafinha de água. Fechei minha mochila.
Montei a Luna. Coloquei meu capacete e peguei a estrada, rumo ao Norte de Happy Harbor.
Eu não conseguia pensar em nada...
Finalmente, minha cabeça tava completamente vazia...
Sem todo aquele barulho de pensamentos martelando minha mente...
Finalmente: um pouco de Paz!
Naquele abençoado Silêncio Interior, como o de um lama tibetano meditando – que momento abençoado! Era tão raro conseguir aquele Silêncio tão precioso dentro de mim! – eu tava só olhando a estrada e as avenidas pelas quais eu passei...
Nenhum pensamento.
Nenhum conceito.
Nenhum rótulo.
Nenhuma interpretação.
Nenhum barulho dentro de mim...
Apenas aquela Paz de estar Presente, dentro de Mim Mesma, bem encaixada em mim, atenta à estrada, às avenidas, ao trânsito.
Apenas observando o que ocorria no asfalto, sem julgar absolutamente nada... nem ser julgada...
Que Paz!
Quando cheguei na casa de Pink Pig, guardei a Luna no meu quartinho.
Tranquei a minha porta e me atirei na cama.
Eu me sentia exausta.
Mega, mas mega cansada mesmo, como se tivesse corrido uma maratona...
Nem tirei meu sobretudo... e com botas e tudo me virei pro lado e em instantes adormeci...
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