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História Tempos Modernos - A Volta - Desabafo (Fafá de Belém)


Escrita por: lidiabaldini

Notas do Autor


Capítulo mais aguardado por mim e crucial para a narrativa daqui para frente. Mudanças vem aí.

Capítulo 11 - Desabafo (Fafá de Belém)


 

         Há dez dias não ouço nada sobre Hélia. Desde a saída dela daqui do meu apartamento para viajar novamente. Parece que eles estão em lua de mel. Quando visitaram tal a amiga no interior de São Paulo, vieram com uma certa distância que parecia que o noivado não ia bem. Mas eu estava enganado. Deus, por que sempre fico assim com o relacionamento deles? É inveja por eles terem esse jogo de gato e rato, do mesmo jeito que tivemos? Ou despeito, como ouvi Justine “falar para seu grupo de amigas”? Bufo. Ela falou deliberadamente para eu ouvir. O que essa mulher tem contra mim, afinal? Gosto muito do meu carcamano do Sergipe, mas a mulher dele…

         Ouço o sininho anunciar que mais gente está chegando e me pego ansioso pensando se era finalmente ela. Quase todo mundo está aqui, mas nada dela. Até as pessoas que trabalham com ela estão aqui. As amigas dela não param de me olhar de rabo de olho, alguns olhares parecem que estão me avaliando, como se eu estivesse numa prova, e eu vejo esses mesmos olhares para Iolanda. Mas o da gringa da fala enrolada é mais pesado. Ela espera o pior de mim, eu sinto. Parece que estou andando na corda bamba e ela espera que eu caia. Para Iolanda também, é até mais pesado. Ela desconfia de cada coisa que minha noiva faz.

         Afasto meus pensamentos e continuo a tarefa que meus filhos me deram. Era o primeiro aniversário de Vivi, a primeira filha que meus filhos tiveram juntos. Eu sei que Nelinha ama Pedro como se fosse dela, mas é algo mais especial fazer o aniversário da primeira filha. Dela e de Zeca. Do amor deles. Por sorte Pedro não está aqui. Ficou com a mãe, que saiu recentemente da cadeia. Eu espero que ela não arrume mais problemas e tenha uma nova vida. Nara foi convidada para a festa, mas duvido que ela venha. Muitos aqui ainda não gostam dela e do que ela fez, mas o importante é que nossa família superou. Já passamos por muita coisa, para manter rancores.

         Cumprimento a família do Ramón que chegou mais cedo para ajudar e ainda mantenho uma pontada de decepção por não ser ela ainda. Há tanto para conversarmos e nunca encontramos tempo. Tanta coisa para esclarecer, dúvidas para acabar… Depois de escutar aquela conversa dela com o Zeca e um pedaço muito pequeno da conversa da Iolanda com a Goretti, eu preciso realmente conversar com a Hélia. Minha filha e minha noiva escondem algo de mim e sei que tem a ver com ela. Que pedido de desculpas é esse que Goretti deve a Hélia, se sou eu que devo, ao menos, um pedido de desculpas a ela? Uma conversa franca, como aquela que tivemos quando ela estava prestes a viajar com o falecido JP.

         Ouço o sininho novamente enquanto carrego os últimos enfeites de mesa para finalizar a arrumação. Não sei se estou fazendo certo, mas é o que minha filha pediu. Regeane está supervisionando e sei que ela colocará no lugar o que estiver bagunçado. O perfume dela é a primeira coisa que meu corpo capta, através da brisa leve, seguido da risada maravilhosa que ela tem. Hélia sempre foi calorosa do seu jeito e está ainda mais vestida com um vestido simples, cheio de detalhes verdes e brancos. Ela parecia leve, os cabelos balançando com o vento suave e com seus movimentos, ao cumprimentar todos os presentes pelo caminho. Ao contrário dos encontros anteriores, dessa vez ela está firmemente agarrada a uma Nara nervosa e completamente deslocada, conforme caminha para mais próximo a casa. Pedro há muito correndo por aí com as primas, procurando pai para mostrar o avião novo que ganhou da mãe.

         – Espero não ter chegado muito tarde, tem alguma coisa para fazer?  – Hélia diz com um sorriso culpado, cumprimentando a nora e a minha filha Regeane.

         – Não, dona Hélia, você já fez muito indo atrás do que te pedi. Deu certo? – Nelinha pergunta após sair do abraço e recebe um aceno como resposta. – Que bom que veio, Nara. É muito importante para nós que viesse. Principalmente para nosso Pedro. Ele estava que não se aguentava falando sem parar em trazer você aqui. Sinta-se à vontade. Você está entre família. – Disse olhando bem nos olhos da outra mulher. Ontem ela nos fez garantir que Nara não fosse destratada. Eu estou tão orgulhoso da minha filha e olho para Hélia que olhava para a antiga nora com um olhar de “eu te avisei”.

         – Bom, não gostaria de fazer isso, mas… Eu avisei. – Rimos. – Alguém não estava querendo muito acreditar em mim… – Acariciou o braço de Nara e foi abraçar Regeane. Veio em minha direção e meu coração errou uma batida. Virei um velho idiota obcecado pela ex? – E você? Fazendo algo que preste, fingindo ou usando a desculpa que está aposentado de trabalho?

         – Ao contrário de você, – digo abraçando-a – eu coloquei a mão na massa. Arrumei as mesas aqui fora, carreguei uma porção de caixas…

         – Ah, está explicado trabalho meia boca… – Olha ao redor. Suspira. – Vai fazer obra, vai, querido. – Aponta para as mesas. – Homens, zero talento para arrumação. Vai carregar caixa, vai. – Me dá um empurrão de leve.

         – Ei, abusada, mal chegou e já está me criticando? – Empurro ela de leve com os ombros. – Faz melhor, então?

         – É um desafio, querido? Olha essas toalhas, todas tortas. – Aponta os defeitos e vejo as três mulheres abafando o riso. – Aquele enfeite ali está torto, aquele ali não combina e eu tenho certeza que aqueles dois ali são da mesa principal. – Regeane bufa e coloca a mão na boca, fingindo tosse.

         – Foi o vento que derrubou ali, naquela mesa foi SEU neto que não para quieto um minuto e eu tenho certeza que puxou você nisso. – Eu olho para ela segurando o riso pela cara que está fazendo, pensando em todos os xingamentos que quer me dizer.

         – Leal, vá a merda! – Ela se vira, mas retorna. – Não, quer saber? Vem – me puxa pelo braço – que eu vou te mostrar como se arruma uma mesa de forma decente. Eu devia deixar tua filha te matar por arrumar tudo igual sua cara velha e sem graça.

         Ouço as meninas rirem à medida que andamos e Hélia continua resmungando sobre os defeitos que encontra. Eu continuo falando que ela está exagerando e ela continua me arrastando e resmungando, me chamando de burro e inimigo da arrumação decente. E meu coração pula desgovernado, pensando a todo momento que parecemos um velho casal discutindo por tudo e qualquer coisa.

         Impossível não reparar em todos a nossa volta rindo de nossas implicâncias, se divertindo às nossas custas e colocando pilha, como minhas filhas e minhas netas. Mas, como nada é bom a todo momento, sinto olhares hostis à nossa interação. Olhando através do espelho do enfeite, vejo o italiano e a gringa conversando olhando para nós. Pigarreio, tentando fazer descer a sensação ruim na ponta da minha língua e, infelizmente, isso chama atenção dela.

         – Desculpa por isso. – Ela aponta para eles e me olha, me desafiando a continuar fingindo que não sei o motivo do pedido de desculpas. – Mas se serve de consolo, ela não é muito fã de nenhum dos dois.

         – Ela é uma boa amiga, então. Amigos ficam ao seu lado, não importa o que aconteça. – Forço um sorriso.

         – Isso não dá a ela o direito de ser indiscreta, eu vou conversar com ela. – Ela parece hesitar um pouco. – Leal, eu…

         – Ei, vocês dois – viro e vejo Iolanda acenar – parem de implicância e vem aqui dentro rapidinho. Nelinha está surtando porque Vivi não para de chorar porque não quer sair do banho e todo mundo sabe que vocês são os culpados por isso.

         – Eu? Deve ser tua, sua intrometida, ou desse velho aqui. – Dá um tapa na minha cabeça. – Você sempre influencia suas netas a fazer bagunça.

         – Eu? – Esfrego minha cabeça. – Você que disse que uma mulher tem que demorar no banho e ficar bem cheirosa.

         – E eu menti? – Ela coloca as mãos na cintura e eu vagueio meu olhar pelo seu corpo, vendo ela estremecer. – Anda logo, seu velho idiota.

         – Sim senhora, general. – Faço posição de sentido e recebo um tapa dela. 

         Caminhamos lado a lado, com ela me cutucando o tempo todo. Antes de entrarmos ela olha para seu noivo e sua amiga, que os deixa em alerta. Dona de um temperamento bem forte, herdado com toda certeza da bailarina explosiva ao meu lado, nossa netinha fez de tudo para não sair da banheira dos pais, o que resultou em dois avós encharcados, ouvindo aos risos, reclamações de dois pais completamente irritados.

         É por mais momentos como esses que eu sinto cada vez mais em mim o desejo de conversarmos direito e nos despedir das mágoas que ainda insistem em se fazer presentes. Ainda há faíscas entre a gente, nossas implicâncias oscilaram entre brincadeiras e farpas sérias, às vezes pesadas, causando silêncios constrangedores entre a gente e quem quer que escutasse. E eu só consigo pensar na música que eu ouvi no rádio com a Tertuliana há dois dias:

 

Por que é que eu fico calado

Enquanto você me diz

Palavras que me machucam

Por coisas que eu nunca fiz

 

         Enquanto me trocava para poder participar da festa, me lembro do que Tertu me disse sobre essa música, o que ela achava dela e realmente faz sentido. Nós, eu e Hélia, vivemos uma relação que mais nos fazia mal do que bem, um amor intenso, doloroso e cheio de contradições, mas ao mesmo tempo indispensável. Mesmo nos ferindo, não sabemos viver sem ele. Afugentei esses pensamentos, não era hora disso. Saí do quarto e, por coincidência, ao mesmo tempo que ela. Perdi o fôlego ao vê-la com um vestido branco florido, com as mangas mais soltas e uma abertura na perna. O cabelo solto, com essa cor que sempre me paralisa pois ainda não me acostumei com ele, rindo de alguma coisa.

         – Ei, finalmente estamos apresentáveis de novo. – Ela riu e estendeu o braço para mim. –  Me ajude com essa pulseira aqui.

          –  Pronto, linda como sempre.  –  Ofereço o braço a ela e consigo arrancar um sorriso daqueles que me deixam de joelhos no chão. Andamos pelo corredor em um silêncio confortável, não parecendo que a alguns momentos antes farpas eram trocadas por nós, em vez das brincadeiras leves de lá de fora. Ela para no final do corredor.

         – Nós teremos nossa conversa, mas não hoje onde celebramos o aniversário da nossa princesa. Eu sei que é importante, mas vamos fazer isso em nosso tempo, ok? –  Aceno. Eu jamais negaria algo a ela, quando ela me pede desse jeito meigo. Ela abaixa a cabeça.

          –  Está tudo bem. –  Levanto seu queixo. –  Não precisamos de pressa, precisamos do momento certo. E ele virá.

         Nos afastamos devagar, ambos oscilam a visão entre nossos olhos e nossas bocas, como fazíamos no passado. Mas nos afastamos em um acordo selado sem palavras. Não vamos cometer o mesmo erro do passado. A festa ocorre lindamente e nossa pequena princesa se diverte com cada atenção que recebe. Alguns convidados vão embora, ficando eu, meus filhos, minha noiva e Hélia. Afinal, não tinha muito espaço. As Marias foram com Tertuliana e meus genros, Maria Eunice mais do que empolgada com a filha da amiga da Hélia, o que era bom para ela ter alguém da idade dela para ficar.

         Dividimos as tarefas e ficamos eu, Zeca e Hélia do lado de fora e as meninas e Iolanda do lado de dentro, tentando embalar as comidas que levaríamos de volta. Hélia disse que ficaria do lado de fora para garantir que eu não quebrasse nada da decoração, mas claramente era uma desculpa para fugir das outras mulheres como ela fez durante toda a festa. E é óbvio que eu falei isso para ela, que me devolveu dizendo que era maluco, onde devolvi dizendo que ela era uma madame metida a besta e ela me xingando cada vez mais, tudo ao olhar atento e risonho de nosso filho. Eles cochicharam entre si e Zeca saiu, após guardar as mesas e cadeiras no canto onde a empresa que ele alugou deixou e buscaria de volta.  Só ficaram duas mesas que eu e Hélia usamos para colocar as caixas dos enfeites que estamos embalando.

          – Eu pedi ao Zeca para nos deixar a sós. – Ela começou, visivelmente nervosa.

         – Eu imaginei. – Espero ela iniciar como o covarde que sou.

         – Eu sei que você disse para esperarmos o momento certo, mas eu tenho uma viagem de trabalho daqui a dois dias e eu não quero postergar mais isso. Preciso encerrar esse capítulo, fui rude mais cedo. Meus amigos foram rudes também e eu não acho certo. Nós dois estamos errados igualmente, acertamos igualmente e eu não acho…

         – Hélia, respira. – Segurei seus ombros, depois de tirar cuidadosamente o enfeite de sua mão e colocar na caixa, finalizando nosso trabalho aqui fora. – Estamos quites, então. Porque minha filha não foi exatamente gentil também. Nem sua assistente. Regeane também perdeu um pouco a paciência. Nelinha, Zeca… Iolanda soltou algumas farpas, eu imagino.

         – Nós fizemos uma bagunça e tanto, – ela ri secamente – para nossos amigos e noivos se meterem e se transformarem em aliados no meio de uma guerra. – Ela desvia o olhar. –  Eu estou tão cansada disso. 

         – Por isso você estava fugindo? – Ela volta a me olhar. – Passou o aniversário todo andando de um lado para o outro.

         – Como você…

         – Eu também fiz isso. – Ri. Coloquei minha cadeira próximo a ela e pedi que ela se sentasse também. – Todo mundo querendo dar pitaco, incentivando nossas implicâncias e brincadeiras, o que foi divertido no início. –  Nós rimos de verdade dessa vez.

         – Até não ser mais.

         – Até não ser mais. – Estendi a mão e ela colocou a dela em cima. – Sabe, tem dois dias que escuto sem parar uma música que mexeu comigo. Ela lembrou a gente e esse abismo entre nós. Me fez ter muitas perguntas, muitas perguntas que exigem respostas e me sufoca não ter. Vamos responder essas perguntas?

         – Só se me contar que música é essa que te fez pensar. O velho Leal que eu conheço era mais de ação do que pensamentos. Que música é essa que te mudou tanto assim? – Ela brinca, mas é daquela maneira daquele ditado popular: toda brincadeira tem um fundo de verdade.

         – Essa. – Retiro meu celular do bolso e coloco naquele aplicativo que minhas netas me ensinaram a mexer. Ela ri. Coloco o celular na mesa em frente a nós.

         – Alguém está bem moderninho, hein! Você sabe mexer no youtube, Leal? 

Eu apenas a encaro, reconhecendo a zombaria nada sutil dela. Ela parece engoli em seco ao ouvir a música. Cada linha cantada pela Fafá atravessa a gente. Eu sinto de novo, talvez até pior, a mesma angústia que senti da primeira vez que ouvi e vejo isso refletido nos olhos verdes que me engole. 

 

Por que me arrasto a seus pés?

Por que me dou tanto assim?

E por que não peço em troca

Nada de volta pra mim?

 

         Respiramos fundo e vejo seus olhos derramar as mesmas lágrimas que eu. O aperto em minha mão fica forte e sua cabeça cai em meus ombros, mas ela rapidamente se recompõe ao ouvir as últimas linhas cantadas.

 

Mas acontece que não sei viver sem você

Às vezes me desabafo me desespero porque

Você é mais que um problema é uma loucura qualquer

Mas sempre acabo em seus braços na hora que você quer

 

         – Eu também, coincidência ou não, ouvi essa música por dois dias seguidos. –  Ela seca os vestígios das lágrimas derramadas com os poucos guardanapos que estavam em cima da mesa. – Nello gosta desse álbum, ele é um grande fã do Rei. O de verdade. 

         – Eu também sou de verdade, você foi rainha uma vez, não vem tirar minha coroa porque você não tem mais.

         – Quem disse que não tenho? – Ela ergue uma sobrancelha e eu fico sem entender. – Eu sou a melhor bailarina, meu querido. Sou, portanto, uma rainha. – Nós rimos.

         – Então, ainda estamos ligados na mesma energia. – Volto para nossa conversa, antes que ela se esquive mais um pouco. – Pronta para responder às minhas perguntas?

         – Não, mas não há como evitar. E eu também tenho muitas perguntas. Mas começa você. – Assenti.

         –  Eu tenho muitas, mas a que mais me corta é… Por que você não me disse que tem crises de ansiedade? – Ela me olhou rapidamente. – Eu ouvi você e Zeca. – Falei antes que ela tirasse conclusões precipitadas. – Eu ouvi você confessar a ele. Eu imaginei que a sua reação a tal matéria tinha mais coisa embaixo. Não era só aquilo.

         – Não fazia o menor sentido te contar.

         – Como não? Eu te fiz muito mal. – Baguncei meu cabelo, frustrado. – Mas sabe de uma coisa? Acho que eu sempre soube. Não com detalhes, não com toda essa dimensão, com essa gravidade. Eu fui buscar entender sobre isso com uma especialista e, Hélia, eu não tenho palavras para descrever o quanto eu sinto muito. Eu não sabia disso na época, mesmo escolhendo me afastar de você. Mesmo depois do nosso último momento juntos como um só no teatro…

         – Você escolheu me afastar? Em qual das vezes? Foram muitas! Espera, que momento foi esse? Eu só lembro daquela despedida sem sentido, daquele emaranhado de palavras que diziam e não diziam adeus.

         – Nosso… Você não se lembra? No palco, nós… – Ela se levantou assustada.

         – Não, não, não, não… – Andava de um lado para o outro, mexendo nos cabelos soltos pelo movimento repetido. – Eu achei que foi um sonho! – Riu em meio às lágrimas grossas escorrendo pelo seu rosto. Eu olhei para ela sem entender. – Eu acordei naquela cama de cenário, meu Deus!

         – Por que eu te coloquei lá. Eu me arrependi de…

         – Você se arrependeu de transar comigo? – Ela grita e eu olho para trás vendo se alguém escutou.

         – Claro que não! – Digo num tom baixo e firme. – Eu nunca me arrependeria de fazer amor com a mulher da minha vida! – Ela se calou, com os olhos arregalados. – Meu arrependimento foi porque isso causaria mais confusão, mais dor, mais frustração. Nós decidimos ficar separados, não podíamos fazer aquilo.

         – Por que você quis, droga! Eu não queria… Eu não queria o fim. Eu esperei, eu rezei para que você lutasse pela gente, como fiz várias e várias vezes. Eu esperei cada minuto naquele aeroporto, mesmo que isso me custasse a oportunidade da minha vida. Deus, esperei você indo para lá, pegando um avião da mesma forma que pegou para ir atrás da sua filha sei lá onde. – Ela riu sem entusiasmo. – Que idiota que eu fui! Você jamais faria isso, não é?

         – Eu não podia. – Levantei e ela se afastou de mim. – Como eu poderia? Me diz.

         – Claro que não! Eu certamente não valia o esforço, não é? Sabe, sua noiva tem razão, a gente - apontava para nós dois – endeusou demais isso que a gente teve. Que tipo de amor é esse tão unilateral? – Ela olha para o meu telefone em cima da mesa. Aponta para ele. – Agora entendi porque essa música mexeu tanto comigo a ponto de eu querer falar com você.

         – Hélia, olha para mim.

         – Não, chega, eu não quero mais isso. Já tive o suficiente. Não quero continuar, deixa para depois. – Ela tenta se afastar, mas eu a segurei em meus braços.

         – O que você queria que eu fizesse, Hélia? Eu não podia ficar com você. Eu não podia ficar com a mulher que eu destruí. – Minha voz falha e isso parece fazê-la parar de lutar em meus braços... – Eu não podia ficar com você sabendo no que eu te transformei. Eu destruí você. Você não era desse jeito. Você era linda, leve, voraz, com apetite de viver. – A soltei, envergonhado. – Você não era mais assim. E, depois de muitos anos, é que enxerguei o que eu fiz com você. Nos envolvemos em meios a mentiras e segredos, em meio a mágoas que nunca foram curadas. Eu tentei, juro que tentei. Mas eu não poderia fazer de novo. 

         – Leal… – Sua voz também é falha. Sento na cadeira derrotado e ela faz o mesmo.

         – Eu te machuquei muito, me machuquei no processo. Você me machucou. Eu precisava me despedir das mágoas, das amarras, de tentar viver no passado. Nós vivemos no passado quando reatamos. Tentamos viver o que vivemos por uma noite. Não era justo. Nunca conversamos sobre nosso passado, nossas dores. Sempre passamos por cima sem esclarecer. Imagina, imagina se a gente tentasse e não tivesse aquela despedida há três anos. Imagina que a gente estaria aqui, como casal? Felizes? Sem mágoas? Você imagina?

         – Não, não imagino. Não sem uma terapia de casal. Sem uma conversa franca. Como… – Ela pausa e enxuga minhas lágrimas que nem percebi que estava escorrendo. – Então por que não se abriu como assim antes? Por que não tivemos essa conversa antes, Leal? Por que a gente nunca conversou? Você foi… Você é o grande amor da minha vida, meu Deus, então por que foi tão difícil sermos honestos um com o outro? Por que sempre no final saímos os dois machucados? Iolanda estava certa em dizer que enchíamos nossas bocas para falar desse grande amor, mas não tivemos capacidade de vivê-lo. Sempre presos a um dia. Você não me destruiu sozinho. Eu deixei. Eu não fui forte o suficiente para não deixar você me destruir, para não me deixar te destruir também. Você não fez sem o meu aval, sem o meu consentimento. Eu te machuquei na mesma medida que me machucou, ou pelo menos parecida. Nenhum de nós teve maturidade para conversar. Para sanar dúvidas, desejos e carências e… – Ela inala o ar com força e eu fico em alerta.

         – Hélia, eu…

         – Eu preciso… Eu… Deus isso é tão irônico! Mesmo você não indo atrás de mim no aeroporto, mesmo esperando você indo a Nova York atrás de mim… Num belo dia… Eu descubro que eu provei do meu próprio veneno. E dói, Leal, dói tanto. – Ela coloca a mão no peito, tentando se acalmar. – Eu passei por aquilo que eu fiz no passado… Eu esperava…  Eu esperava qualquer coisa, qualquer coisa vinda de você, mas não isso. Eu me sinto burra, cega por ter deixado você me taxar de louca.

         – Do que você está falando? – Olhei para ela sem entender.

         – De você ter me traído com a Iolanda. De ter me traído quando eu te alertei do que ela poderia ser capaz. Você desconversava, você dizia que eu estava vendo coisas. Deus, eu passei por louca ciumenta, de neurótica, desconfiada e estava certa o tempo inteiro!

         – Como você sabe disso? – Eu fiquei em pânico.

         – E isso importa? Você está tão preocupado em saber como eu descobri, do que pelo fato de eu descobrir sua traição? Eu estava tão cega em relação a você? – Joguei a cabeça para baixo de tanta vergonha. – Sabe o mais louco disso tudo? Eu nem posso reclamar. Eu fui sua amante. Uma hora isso voltaria para mim, não é? A lei do retorno. 

         – Hélia, eu…

         – Por favor, não…Sabe, sabe o que é tão fodido nisso tudo? Por um momento, por maldito momento irracional e mantive uma… Eu tinha a tola esperança de você, quando eu falasse sobre isso, de você… Deus, isso é tão ridículo! – Ela enxuga as lágrimas. – Por um momento, Leal, eu desejei uma mentira bonita. Como eu te pedi antes, quando você mentiu para mim sobre estar doente, depois não estar, para no fim… – Bufou. – Eu mantive a… Eu queria tanto… – Apertei sua mão, encorajando-a a me dizer o que eu imaginava. Ela olhou para nossas mãos unidas e se afastou.  – Eu queria que você me dissesse que não foi importante, que você não sentiu nada, que foi um momento de fraqueza e carência porque estávamos longe um do outro… Eu até queria que você negasse, mesmo no fundo não acreditando nem um pouco porque… Leal, esperava isso. Eu sentia isso no meu coração, que você não seria fiel a mim. Eu sabia que você cederia. Em algum momento você cederia. Eu só… Eu… – Sua voz embarga. – Eu imaginei que o movimento seria dela. Que a iniciativa partiria dela. Doeria da mesma forma que está doendo agora e que doeu quando eu soube, mas… Seria algo esperado por todos. Todo mundo sabia que isso aconteceria, não é possível que você estava cego a esse ponto! – Ela grita, mas logo se acalma. – E o pior de tudo é que nem a decência de me contar você teve. Inúmeras vezes, Leal, inúmeras chances e você não foi honesto comigo. Você me deu todas as lições de moral sobre honestidade e não foi honesto comigo. Deus, eu me senti um lixo por todos esses anos e me sinto um lixo por não ter te contado sobre o Zeca, por pensar nele antes de mim, por proteger ele da forma que eu pude porque isso tirou anos e momentos preciosos entre vocês… E é assim que você paga? Se você não estava satisfeito comigo, por que não terminou? Por que me deixou…? Por que me fez eu me sentir tão pequena? Tão indigina? – Ela para tentando recuperar o fôlego, tentando clarear seus pensamentos. E eu assisto impotente porque nada do que eu disse será suficiente. Ela tem toda razão de se sentir assim.

         – Me perdoa. Eu sei que não mereço, mas me perdoa. Eu não quero viver com pontas soltas, com mais mágoas. Eu não vou justificar o que fiz porque não tem explicação o suficiente. Eu fui leviano ao te trair, principalmente depois de tudo. Eu não te mereço e agora entendo toda a profundidade disso. Eu só peço que me perdoe e não me odeie.

         Eu não consegui mais prender as novas lágrimas. Puxei ela até mim e a abracei até ela devolver o abraço. Ficamos assim por um bom tempo, apenas deixando o alívio tomar conta da gente. Como eu precisava disso. Ela se afasta um pouco e eu seguro sua cabeça, fazendo ela me olhar.

         – Eu estou tão cansada, Leal, estou tão cansada… Eu não quero te odiar, não quero odiar o que tivéssemos, não quero ter medo de me envolver com outra pessoa, achando que isso vai acontecer de novo… Eu estou exausta… Não quero mais pensar que tudo o que vivemos foi em vão, que foi um erro e não um grande e bagunçado amor… Eu…

         – Uma vez eu disse que você foi meu grande amor, mas menti. Você é o grande amor da minha vida. E eu não quero mais te machucar. Eu não quero mais te ver sofrer por minha causa. Eu sempre vou te amar, Hélia. Uma parte de mim sempre será sua. – A abracei de novo.

         – O mesmo aqui. – Sua voz saiu abafada pelo abraço. 

         – Eu sei. – Me afasto e dou um beijo em sua testa. – Eu te amo e quero que seja feliz. Por mais que me doa um pouco, eu sei que ele te faz feliz. Eu só queria esclarecer as coisas. Eu quero que fique bem. Eu não odeio você, jamais conseguiria nem que você tentasse muito.


 


Notas Finais


Até terça.


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