A VOZ DA RAZÃO 3
– Sou Falwick, conde de Moën. E este é o cavaleiro Tailles de Dorndal.
Geralt inclinou-se com indiferença, olhando para os cavaleiros. Ambos usavam uma armadura sob
um manto carmim com o símbolo da Rosa Branca no braço esquerdo. Ficou um tanto surpreso, pois,
pelo que sabia, não havia sede daquela confraria nas redondezas.
Nenneke, com um sorriso aparentemente franco e despreocupado, notou sua surpresa.
– Esses senhores de nobre linhagem – disse friamente, ajeitando-se com mais conforto na poltrona
que mais parecia um trono – estão a serviço do magnânimo senhor destas terras, o duque de Hereward.
– Do príncipe – corrigiu-a com ênfase Tailles, o cavaleiro mais jovem, cravando na sacerdotisa os
olhos azuis-celestes, nos quais era nítida a hostilidade. – Do príncipe Hereward.
– Não percamos tempo com detalhes sem importância. – Nenneke sorriu de maneira zombeteira. –
Em meu tempo, costumávamos chamar de príncipes somente aqueles em cujas veias corria sangue
real. Mas hoje, ao que parece, isso não é mais levado em conta. Voltemos às apresentações e ao
esclarecimento do motivo da visita dos cavaleiros da Rosa Branca ao meu humilde templo. É preciso
que você saiba, Geralt, que o Capítulo está pleiteando a Hereward uma outorga para sua Ordem, e é
por isso que tantos cavaleiros da Rosa se colocaram a serviço do príncipe; muitos deles são destas
redondezas, como o aqui presente Tailles, que fez os votos e adotou esse manto vermelho que lhe cai
tão bem.
– Sinto-me honrado – disse o bruxo, inclinando-se novamente com a mesma indiferença.
– Duvido muito – afirmou friamente a sacerdotisa. – Eles não vieram para honrá-lo. Ao contrário.
Vieram exigir que você parta daqui o mais rápido possível. Em poucas palavras: vieram para expulsálo. Considera isso uma honra? Eu não. Para mim, é uma ofensa.
– Os nobres cavaleiros incomodaram-se à toa. – Geralt deu de ombros. – Não pretendo me
estabelecer aqui e irei embora em breve, sem a necessidade de empurrões nem estímulos.
– Imediatamente – rosnou Tailles. – Sem um momento de protelação. O príncipe ordena…
– No terreno deste templo, quem dá ordens sou eu – interrompeu-o Nenneke, com voz fria e
peremptória. – Em geral, tenho me esforçado para que elas, na medida do possível, não entrem em
conflito com a política de Hereward, desde que tal política seja lógica e racional. No caso em pauta,
ela é totalmente irracional, portanto não vou tratá-la com mais seriedade do que merece. Geralt de
Rívia é meu hóspede. Sua presença em meu templo me dá prazer e por isso Geralt de Rívia
permanecerá nele o tempo que desejar.
– Você ousa opor-se ao príncipe, mulher?! – gritou Tailles, jogando o manto para trás e deixando à
mostra o lavrado peitoral de bronze de sua armadura. – Ousa questionar a autoridade de seu poder?
– Silêncio – disse Nenneke, semicerrando os olhos. – Baixe o tom da voz. Tenha cuidado com o
que diz e a quem você se dirige.
– Sei bem a quem me dirijo! – vociferou Tailles, dando um passo à frente, enquanto Falwick, o
cavaleiro mais velho, segurava-o pelo cotovelo e apertava com tanta força que a luva da armadura rangeu.
Tailles livrou-se com um safanão.
– E minhas palavras expressam a vontade do príncipe, o senhor destas terras! Saiba, mulher, que
temos doze soldados no pátio…
Nenneke enfiou a mão numa bolsa que pendia de seu cinto e retirou dela um pequeno pote de
porcelana.
– Na verdade – falou com calma –, não sei o que poderá acontecer se eu quebrar este recipiente a
seus pés, Tailles. Talvez seus pulmões estourem. Talvez sua pele se cubra de pelos. Ou talvez as duas
coisas aconteçam concomitantemente. Quem poderá saber? Provavelmente, só a piedosa Melitele.
– Não se atreva a me ameaçar com suas feitiçarias, sacerdotisa. Nossos soldados…
– Se algum de seus soldados tocar na sacerdotisa de Melitele, todos acabarão enforcados, ainda
antes do pôr do sol, nas acácias que margeiam a estrada que leva à cidade. Eles sabem disso muito
bem, e você, Tailles, também. Portanto, pare de se comportar como um grosseirão. Assisti a seu parto,
seu fedelho! Tenho pena de sua mãe, mas não me obrigue a ensinar-lhe boas maneiras!
– Calma, vamos com calma – pediu o bruxo, entediado com toda a história. – Ao que parece,
minha humilde pessoa adquire proporções que poderão provocar um sério conflito, quando, na
verdade, não vejo motivo para que seja assim. Senhor Falwick, parece-me que o senhor é mais
equilibrado do que seu companheiro, que, pelo visto, está se deixando levar pelo ímpeto da juventude.
Portanto, ouça o que tenho a lhe dizer: garanto-lhe que deixarei esta região em poucos dias. Garantolhe, também, que não pretendi nem pretendo trabalhar ou aceitar encargos ou encomendas nesta
região. Não me encontro aqui na qualidade de bruxo, mas por motivos puramente privados.
Falwick encarou Geralt, que imediatamente se deu conta de que cometera um erro de avaliação. O
olhar do cavaleiro da Rosa Branca estava cheio de ódio e rancor. O bruxo teve certeza de que não era o
duque de Hereward que o expulsava, mas Falwick e seus semelhantes.
O cavaleiro virou-se para Nenneke, inclinou-se respeitosamente e começou a falar, calma e
polidamente e de forma lógica. Geralt, porém, sabia que Falwick mentia como um cão.
– Venerável Nenneke, queira me perdoar, mas meu amo e senhor o príncipe Hereward não deseja
nem vai tolerar a presença do bruxo Geralt de Rívia em seus domínios. Não importa se Geralt de Rívia
está caçando monstros ou, como alega, encontre-se aqui por motivos privados. O príncipe sabe que
bruxos não podem ter motivos privados. Um bruxo atrai problemas assim como o ímã atrai limalhas.
Nossos feiticeiros estão se rebelando e enviando petições; até os druidas chegam a ameaçar…
– Não vejo razão para Geralt de Rívia sofrer as consequências da falta de comedimento dos
feiticeiros e druidas locais – interrompeu-o a sacerdotisa. – Desde quando Hereward passou a se
interessar pela opinião de uns e outros?
– Chega de discussão – empertigou-se Falwick. – Não estou sendo bastante claro, venerável
Nenneke? Permita, então, que fale mais claramente ainda: tanto o príncipe Hereward como o Capítulo
da Ordem da Rosa Branca não estão dispostos a tolerar por nem mais um dia a presença em Ellander
do bruxo Geralt de Rívia, mais conhecido como Carniceiro de Blaviken.
– Aqui não é Ellander! – exclamou a sacerdotisa, erguendo-se da poltrona. – Aqui é o templo de
Melitele! E eu, a suma sacerdotisa de Melitele, não posso tolerar por nem mais um instante a presença
dos senhores no terreno do santuário!
– Senhor Falwick – disse baixinho o bruxo. – Ouça a voz da razão. Não quero complicações e
imagino que vocês também não. Abandonarei esta região no máximo em três dias. Não, Nenneke, não
se meta nisso, por favor; eu ia partir de qualquer modo. Três dias, senhor conde. Não lhe peço mais do que isso.
– E você faz bem em não pedir – falou Nenneke antes que Falwick tivesse tempo para reagir. –
Ouviram, meninos? O bruxo ficará aqui três dias, porque assim o deseja. E eu, sacerdotisa da Grande
Melitele, serei sua anfitriã por esse tempo, porque assim o desejo. Digam isso a Hereward. Não, não a
Hereward, mas à sua esposa, a distinta Ermela, acrescentando que, se ela faz questão de continuar
recebendo regularmente os afrodisíacos de minha farmácia, é melhor acalmar seu duque. Que ela
reprima as presepadas e fanfarronadas do marido, que cada vez mais parecem sintomas de uma
idiotice crônica.
– Basta! – berrou Tailles, com a voz quebrando em falsete. – Não pretendo ficar ouvindo uma
charlatã ofender meu amo e sua esposa! Não deixarei esse insulto passar em branco! Agora, quem vai
mandar aqui será a Ordem da Rosa Branca, que acabará com este ninho de obscurantismo e
superstições! E eu, cavaleiro da Rosa Branca…
– Escute aqui, seu fedelho – interrompeu-o Geralt, com um sorriso desagradável. – Freie essa sua
língua descomedida. Você está se dirigindo a uma mulher que merece todo o respeito, principalmente
dos cavaleiros da Rosa Branca. É verdade que nos últimos tempos, para se tornar um deles, basta
pagar mil coroas novigradas ao tesoureiro do Capítulo, razão pela qual a Ordem está cheia de filhos de
agiotas e alfaiates… Mas quero crer que ainda sobreviveram algumas de suas antigas tradições, ou
será que estou enganado?
Tailles empalideceu e levou a mão à cintura.
– Senhor Falwick – disse Geralt, sem deixar de sorrir. – Se ele sacar a espada, vou tomá-la de suas
mãos e com ela açoitar-lhe o traseiro. Depois, vou pegá-lo e usá-lo como um aríete para derrubar a
porta.
Com as mãos trêmulas, Tailles tirou de trás do cinturão uma luva de ferro e atirou-a com estrondo
aos pés do bruxo.
– Lavarei a afronta à Ordem com seu sangue, mutante! – gritou. – Sobre chão batido! Saia para o
pátio!
– Você deixou cair alguma coisa, filhinho – falou calmamente Nenneke. – Pegue-a. Você está num
templo e aqui não se pode jogar lixo no chão. Falwick, leve embora esse imbecil para evitar uma
desgraça. Você já sabe o que deve dizer a Hereward… Pensando melhor, vou escrever uma carta
pessoal a ele; vocês não me parecem emissários dignos de confiança. E agora se ponham para fora.
Imagino que saibam encontrar a saída sozinhos, não é mesmo?
Falwick, detendo com mão férrea o enfurecido Tailles, inclinou-se com um tinido da armadura.
Depois, cravou os olhos no bruxo, que respondeu com um sorriso. O cavaleiro jogou para trás o manto
carmim.
– Esta não foi nossa última visita, venerável Nenneke – disse. – Nós voltaremos.
– É exatamente o que temo – retrucou a sacerdotisa com frieza. – O desprazer será todo meu.
O MAL MENOR
I
Como sempre, os primeiros a reparar nele foram os gatos e as crianças. Um gato listrado que
dormia sobre um monte de lenha aquecida pelo sol se agitou, ergueu a cabeça, abaixou as orelhas,
soltou um miado e sumiu no meio das urtigas. Diante de sua choupana, o filho do pescador Trigla, um
garotinho de três anos chamado Dragomir, que fazia o possível para emporcalhar ainda mais sua já
imunda camiseta, abriu o berreiro, fixando os olhos cheios de lágrimas no cavaleiro que passava à sua
frente.
O bruxo cavalgava lentamente, sem tentar ultrapassar a carroça com feno que bloqueava a
ruazinha. Atrás dele, esticando o pescoço e puxando a corda amarrada ao arção da sela, trotava um
sobrecarregado burrico. Além dos costumeiros alforjes, o orelhudo animal transportava no dorso um
grande vulto enrolado numa manta. Os acinzentados flancos do burro estavam cobertos por negros
veios de sangue coagulado.
A carroça entrou finalmente numa ruazinha lateral que levava a um celeiro e a um cais, de onde
soprava uma brisa cheirando a piche e urina de boi. Geralt apressou o passo. Não reagiu ao abafado
grito da vendedora de verduras que olhava fixamente para a ossuda pata com garras que, descoberta
pela manta, sacolejava ao ritmo do trote do burrico. Também não se virou para ver a excitada
multidão cada vez maior que se juntava à sua passagem.
Como costumava acontecer, havia muitas carroças paradas diante da casa do intendente. Geralt
pulou da sela, ajeitou a espada às costas e amarrou as rédeas de sua égua à pequena cerca de madeira.
A multidão que o seguira formou um semicírculo em torno do burrico.
Os gritos do intendente podiam ser ouvidos do lado de fora.
– É proibido, estou lhe dizendo! Proibido, com todos os diabos! Será que não entende o que estou
lhe dizendo, seu canalha?
Geralt entrou. Diante do intendente – um homem baixinho e rechonchudo, naquele momento
vermelho de raiva – um camponês segurava um ganso vivo pelo pescoço.
– O que foi agora… Ah, é você, Geralt? Ou será que meus olhos me enganam? – disse o intendente
e, virando-se de novo para o camponês, voltou a gritar: – Leve isso daqui, vagabundo. Ficou surdo de
repente?
– É que andaram dizendo – balbuciou o homem, olhando de soslaio para o ganso – que, se não se
fizer um agrado a Vossa Excelência, dificilmente…
– Quem andou dizendo? – gritou o intendente. – Quem andou insinuando que sou subornável? Não
permito, estou lhe dizendo! Fora daqui! Salve, Geralt.
– Salve, Caldemeyn.
O intendente apertou a mão do bruxo com uma mão e lhe deu um tapinha amigável no ombro com
a outra.
– Já devem ter se passado dois anos desde a última vez que você esteve aqui, Geralt. Por que não
consegue ficar num mesmo lugar por muito tempo? De onde está vindo? Não precisa responder; tanto
faz de onde. Ei! Tragam cerveja! Sente-se, Geralt, sente-se. Aqui está uma confusão, porque amanhã
teremos uma feira. Como você está? Conte!
– Contarei depois. Antes, vamos sair.
Do lado de fora a quantidade de pessoas dobrara, mas o espaço em torno do burro não diminuíra.
Geralt afastou a manta. A multidão soltou um grito sufocado e recuou. Caldemeyn ficou boquiaberto.
– Por todos os deuses, Geralt! O que vem a ser isso?
– Uma quiquimora. Não deveria haver alguma recompensa por ela, senhor intendente?
Caldemeyn, meio sem jeito, observou a figura em forma de aranha coberta por uma camada de
pele negra e ressecada, os olhos vidrados com pupila na vertical e as afiadas presas na bocarra
ensanguentada.
– Onde… De onde…
– No quebra-mar, a quatro milhas daqui. Nos pântanos, Caldemeyn, onde devem ter desaparecido
muitas pessoas. Crianças…
– É verdade. Mas ninguém… ninguém podia suspeitar… Ei, vocês, voltem para casa e para seus
afazeres! Isto não é um espetáculo! Cubra essa coisa, Geralt. Está atraindo moscas.
De volta à sala, o intendente pegou um caneco de cerveja e sorveu o conteúdo de uma só vez.
Suspirou fundo e aspirou ruidosamente o ar pelo nariz.
– Não há recompensa – disse, soturno. – Ninguém sequer podia suspeitar que uma criatura dessas
estivesse escondida nos pântanos. É verdade que algumas pessoas desapareceram naquelas bandas,
mas poucas vagueiam pelo quebra-mar. Aliás, como você foi parar lá? Por que não tomou a estrada
principal?
– Nas estradas principais não é fácil ganhar a vida, Caldemeyn.
– É verdade; tinha me esquecido – respondeu o intendente, estufando os lábios para reprimir um
arroto. – E dizer que esta região era tranquila! Até os duendes raramente mijavam no leite das
mulheres. E eis que, sem mais nem menos, quase juntinho de nós, aparece uma quiquimora. Bem, o
máximo que posso fazer é expressar-lhe minha gratidão, pois não disponho de fundos para pagar por
ela.
– Que azar! Alguns trocados viriam a calhar para passar o inverno – falou o bruxo, dando um trago
no caneco e limpando a espuma da boca. – Estou a caminho de Yspaden, mas não sei se conseguirei
chegar antes de a neve bloquear a estrada. Talvez fique retido numa das cidadezinhas à beira da
estrada de Luton.
– E você pretende ficar muito tempo em Blaviken?
– Pouco. Não posso me demorar. O inverno se aproxima.
– E onde vai se hospedar? Quer ficar em minha casa? Tenho um quarto vago no sótão. Por que se
deixar roubar pelos albergueiros, que não passam de um bando de ladrões? Conversaremos um pouco
e você me contará o que se passa no mundo.
– Com prazer. Mas o que sua Libusza dirá? Da última vez percebi que ela não morre de amores por
mim.
– Em minha casa, as mulheres não têm voz. Porém, cá entre nós, não faça diante dela o que fez da
última vez, durante o jantar.
– Você está se referindo ao fato de eu ter atirado o garfo num rato?
– Não. Refiro-me ao fato de você tê-lo acertado no escuro.
– Pensei que seria engraçado.
– E foi, mas não faça esse tipo de coisa na frente de Libusza. Quanto à qui… qui…
– Quiquimora.
– Você precisa dela?
– Para quê? Se não há recompensa, pode mandar jogá-la na cloaca.
– Excelente ideia. Ei, Karelka, Borg, Narigango! Algum de vocês está aí fora?
Apareceu um guarda municipal com uma alabarda no ombro, cuja lâmina bateu com estrondo na
verga da porta.
– Narigango – falou Caldemeyn –, com a ajuda de um dos rapazes, pegue o burro com aquela
porcaria empacotada na manta, leve-a para trás dos chiqueiros e atire-a na cloaca. Compreendeu?
– Sim, senhor intendente. Mas…
– Mas o quê?
– Talvez, antes de dar sumiço nessa coisa hedionda, pudéssemos mostrá-la ao Mestre Irion. Quem
sabe se ela não lhe teria alguma utilidade?
Caldemeyn bateu na testa com a palma da mão.
– Você não é tão tolo quanto parece, Narigango. Geralt, talvez nosso feiticeiro acabe pagando por
esse cadáver. Os pescadores vivem lhe levando os mais estranhos espécimes do mar: lulas, polvos,
peixes-do-gelo, equinodermos… E ele costuma pagar por eles. Venha, vamos dar um passeio até a
torre.
– Vocês conseguiram um feiticeiro para a cidade? Permanente ou temporário?
– Permanente. O Mestre Irion mora em Blaviken há um ano. É um mago poderoso, Geralt; só de
olhar para ele você se dará conta disso.
– Duvido que um mago poderoso pague por uma quiquimora. – Geralt fez uma careta. – Pelo que
sei, ela não serve para a produção de elixires. O mais provável é esse tal Irion acabar me insultando.
Bruxos e feiticeiros não morrem de amores uns pelos outros.
– Jamais ouvi dizer que o Mestre Irion tivesse insultado quem quer que fosse. Não posso garantir
que ele lhe pagará, mas vale a pena tentar. Pode haver mais quiquimoras nos pântanos, e aí o que
poderemos fazer? Que o feiticeiro examine essa criatura e, por via das dúvidas, lance alguma
mandinga sobre aqueles charcos.
O bruxo pensou por um momento.
– Muito bem, Caldemeyn – disse finalmente. – Quem não arrisca não petisca. Vamos arriscar um
encontro com o Mestre Irion.
– Então vamos. Narigango, afaste essa garotada e pegue o burrico pela corda. Onde está meu
gorro?
II
A impressionante torre, construída com blocos de granito polido e coroada por ameias, dominava
as telhas e os colmos que cobriam as casas e choupanas.
– Vejo que ele a reformou – comentou Geralt. – Com feitiços ou botando vocês para trabalhar?
– Com feitiços, principalmente.
– Como é esse tal Irion?
– Decente. Ajuda as pessoas, mas é caladão e solitário. Quase nunca sai da torre.
No portão com roseta de madeira clara havia uma grande aldrava na forma da cabeça de um peixe
chato e de olhos salientes, com uma argola de bronze pendurada na boca provida de dentes afiados.
Caldemeyn, claramente acostumado ao funcionamento do mecanismo, aproximou-se da porta,
pigarreou e recitou:
– Saudações do intendente Caldemeyn, que deseja tratar de um assunto com o Mestre Irion.
Acompanhando-o e querendo tratar do mesmo assunto, o bruxo Geralt de Rívia saúda o Mestre Irion.
Depois de um longo momento, a cabeça de peixe moveu a boca dentada, soltando uma baforada de
vapor.
– O Mestre Irion não está recebendo visitas. Vá embora, boa gente.
Caldemeyn olhou de soslaio para Geralt, que deu de ombros. Narigango, sério e concentrado,
limpava o nariz.
– O Mestre Irion não está recebendo visitas – repetiu metalicamente a aldrava. – Vá embora,
boa…
– Não sou boa gente – interrompeu-a rudemente Geralt. – Sou um bruxo. Aquilo lá, no lombo do
burro, é uma quiquimora que matei próximo da cidadezinha. Todo feiticeiro residente tem a obrigação
de zelar pela segurança da região. O Mestre Irion não precisa honrar-me com uma conversação,
tampouco me receber, se esse é seu desejo. No entanto, deve examinar a quiquimora e tirar as
conclusões que achar cabíveis. Narigango, desamarre a quiquimora e jogue-a aqui, diante da porta.
– Geralt – sussurrou o intendente –, você vai partir, mas eu terei de…
– Vamos embora, Caldemeyn. Narigango, tire o dedo do nariz e faça o que mandei.
– Esperem – falou a aldrava, em outro tom de voz. – Geralt, é você mesmo?
O bruxo praguejou baixinho.
– Estou perdendo a paciência. Sim, sou eu mesmo. E daí?
– Chegue mais perto da porta – pediu a aldrava, soltando uma nuvenzinha de vapor. – Sozinho.
Vou deixá-lo entrar.
– E quanto à quiquimora?
– Ao diabo com ela. É com você que quero conversar, Geralt. A sós. Desculpe-me, senhor
intendente.
– Não tem de quê, Mestre Irion – respondeu Caldemeyn. – Até breve, Geralt. Vejo você mais tarde.
Narigango! Jogue o monstro na cloaca!
– Sim, senhor intendente.
O bruxo aproximou-se do portão, que se abriu apenas o suficiente para que ele pudesse passar e
logo se fechou, deixando-o na mais completa escuridão.
– Ei! – gritou ele, sem esconder a irritação.
– Já vai! – respondeu uma voz estranhamente familiar.
O que Geralt viu em seguida foi tão inesperado que ele cambaleou e estendeu o braço procurando
por um ponto de apoio. Não encontrou. Diante dele florescia um pomar branco e rosa, cheirando a
chuva. O céu era cortado pela multicolorida curvatura de um arco-íris que ligava a copa das árvores
aos distantes picos de montanhas azuladas. Uma casinha aninhada no pomar, pequena e modesta,
estava praticamente afundada em malvas. Geralt olhou para suas pernas e constatou que estava
mergulhado até os joelhos em arbustos de tomilho.
– Venha, Geralt. Aproxime-se – falou a voz. – Estou diante da casa.
Geralt adentrou o pomar. Notou um movimento à esquerda e se virou. Uma deslumbrante loura,
nua em pelo, caminhava através dos arbustos, carregando um cesto cheio de maçãs. O bruxo prometeu
solenemente a si mesmo que nada mais o surpreenderia.
– Finalmente. Seja bem-vindo, bruxo.
– Stregobor! – espantou-se Geralt.
Em sua conturbada vida, o bruxo encontrara ladrões que pareciam vereadores, vereadores que
pareciam mendigos, meretrizes que pareciam princesas, princesas que pareciam vacas prenhas e reis
que pareciam ladrões. No entanto, Stregobor sempre teve, de acordo com todas as regras e costumes, a
aparência de um feiticeiro: alto, magro, corcunda, com espessas sobrancelhas grisalhas e grande nariz
aquilino. Para completar a figura, trajava uma longa túnica negra de mangas inacreditavelmente largas
e segurava na mão um comprido cajado encimado por uma esfera de cristal. Nenhum dos feiticeiros
que Geralt conhecera tinha o aspecto de Stregobor. O mais surpreendente de tudo, porém, era o fato de
Stregobor ser mesmo um feiticeiro.
Sentaram-se em poltronas de vime, ao redor de uma mesa com tampo de mármore branco, numa
varanda cercada de malvas. A desnuda loura com o cesto de maçãs aproximou-se, sorriu, deu meiavolta e retornou rebolando ao pomar.
– Isso também é uma ilusão? – perguntou Geralt, observando o balanço dos quadris.
– Sim, como tudo aqui. Mas, meu caro, são ilusões de primeira classe. As flores exalam perfume,
as maçãs são comestíveis, as abelhas podem picá-lo, e quanto a ela – o feiticeiro apontou para a loura
–, se quiser…
– Talvez mais tarde.
– Certo. O que você está fazendo por estas bandas, Geralt? Continua ocupado matando
representantes de espécies em extinção em troca de dinheiro? Quanto lhe pagaram pela quiquimora?
Provavelmente nada, senão você não teria vindo até aqui. E pensar que há pessoas que não acreditam
na força do destino… a não ser que você soubesse de mim. Você sabia?
– Não. Este é o último lugar que eu imaginaria encontrá-lo. Se não me falha a memória, você vivia
em Kovir, numa torre semelhante a esta.
– Muitas coisas mudaram desde aqueles tempos.
– A começar por seu nome. Agora você é Mestre Irion.
– É o nome do construtor desta torre, falecido há mais de duzentos anos. Achei adequado
homenageá-lo de alguma forma ao ocupar sua moradia. Sou o feiticeiro residente desta região. A
maior parte dos moradores vive em função do mar e, como deve estar lembrado, além do ilusionismo,
minha especialidade é meteorologia. Algumas vezes, acalmo ou evoco uma tempestade; outras vezes,
faço o vento ocidental trazer cardumes de bacalhau para mais perto da costa. Graças a isso, é possível
viver… Aliás, era.
– Por que “era”? E o que o fez mudar de nome?
– O destino tem muitas faces. O meu é lindo na superfície, mas horrendo no interior. E agora ele
estendeu em minha direção suas garras ensanguentadas…
– Você não mudou nada, Stregobor – disse Geralt, irritado. – Continua falando difícil, com ar
inteligente e superior. Não consegue se expressar normalmente?
– Consigo – suspirou o feiticeiro. – Se isso o deixa feliz, posso falar de maneira clara e objetiva.
Vim para cá fugindo de um ser monstruoso que quer me matar. Mas minha fuga foi malsucedida,
porque ele me encontrou. Ao que tudo indica, tentará matar-me amanhã ou, na melhor das hipóteses, depois de amanhã.
– Ah, bem – falou o bruxo, impassível. – Agora compreendo.
– Parece que minha morte iminente não causou a mínima impressão em você.
– Stregobor, o mundo é assim mesmo. Quando se viaja tanto quanto eu, vê-se muita coisa. Dois
camponeses se matam por causa dos limites de um terreno cultivado que, já no dia seguinte, será
pisoteado por cavalos de dois exércitos em guerra. Homens enforcados pendem das árvores na beira
das estradas, enquanto bandidos degolam mercadores nas florestas. Nas cidades, a cada passo tropeçase num corpo caído na sarjeta. Nos palácios, as pessoas se agridem com punhais e, nos banquetes,
sempre alguém cai roxo debaixo da mesa, por envenenamento. Já me acostumei com isso; portanto,
por que ficaria impressionado com uma ameaça de morte, principalmente se ela é dirigida a você?
– Principalmente se ela é dirigida a mim – repetiu sarcasticamente Stregobor. – E pensar que eu o
considerava um amigo e contava com sua ajuda…
– Nosso último encontro aconteceu na corte do rei Idi, em Kovir – recordou Geralt. – Fui até lá
para receber o pagamento por ter matado uma anfisbena que aterrorizava a região. Você e seu
confrade Zavist ficaram competindo pelo termo mais ofensivo para mim: charlatão, impensante
máquina de matar e, se me lembro bem, devorador de carniça. Por isso Idi não só não me pagou um
tostão como ainda me deu doze horas para abandonar Kovir, e, como sua clepsidra estava quebrada,
quase não consegui. E, agora, você conta com minha ajuda? Diz que está sendo perseguido por um
monstro. De que tem tanto medo, Stregobor? Se ele o pegar, diga-lhe que adora monstros, que os
defende e zela para que nenhum bruxo devorador de carniça perturbe sua paz. Na verdade, se
encontrasse você e o devorasse, ele se revelaria um grandíssimo ingrato.
O feiticeiro virou a cabeça e permaneceu calado. Geralt soltou uma gargalhada.
– Ora, não fique todo inchado como um sapo – falou. – Conte-me do que se trata e vamos ver se é
possível fazer alguma coisa.
– Você ouviu falar da Maldição do Sol Negro?
– É lógico que ouvi, só que sob outro nome: Mania de Eltibaldo, o Louco, em homenagem ao
mago responsável por toda aquela confusão que terminou com o assassinato ou aprisionamento de
dezenas de donzelas de altas estirpes, inclusive reais. Segundo ele, tais donzelas estariam possuídas
por demônios, amaldiçoadas e contaminadas pelo Sol Negro, pois foi assim que vocês, com seu
pomposo linguajar, denominaram um simples eclipse solar.
– Eltibaldo, que nunca foi louco, decifrou as inscrições nos menires dos dauks e nas lápides das
necrópoles de Wozgor, estudou as lendas e as tradições dos bobolacos e chegou à conclusão de que
todas se referiam ao eclipse de maneira inequívoca. O Sol Negro anunciaria a vinda de Lilith, ainda
venerada no Oriente como Niya, e a aniquilação total da raça humana. O caminho de Lilith deveria ser
preparado por “sessenta mulheres com coroas douradas, cujo sangue encherá os vales”.
– Sandices – retrucou o bruxo. – Além do mais, as palavras não rimam. Toda profecia digna desse
nome é rimada. É público e notório o que interessava a Eltibaldo e ao Conselho de Magos. Vocês se
aproveitaram dos devaneios daquele maluco para reforçar seu poder, fazer alianças, romper coligações
e criar cizânia entre as dinastias, em suma, para manipular ainda mais as marionetes coroadas. E você
vem me falar de profecias das quais se envergonharia qualquer contador de histórias que costuma
frequentar as feiras.
– É possível ter reservas quanto à teoria de Eltibaldo e à interpretação da profecia, mas não se
pode negar a terrível mutação observada nas jovens da nobreza nascidas pouco tempo depois do
eclipse.
– E por que não se pode negar? Eu, por exemplo, ouvi algo bem diferente.
– Presenciei a autópsia de uma delas – contou o feiticeiro. – Geralt, o que achamos no crânio e na
medula era algo indescritível, uma espécie de esponja vermelha. Os órgãos internos estavam
totalmente fora de lugar, e até faltavam alguns. Tudo coberto de pelos em constante movimento, uns
fiapos rosa-acinzentados. O coração tinha seis ventrículos, dois deles praticamente atrofiados, mas,
assim mesmo, seis. O que diz sobre isso?
– Que vi seres humanos com garras de águia em vez de mãos ou com presas iguais às dos lobos…
Homens com juntas, órgãos e sentidos a mais… Todos resultantes da lambança que vocês fizeram ao
se meter com magia.
– Você diz que viu muitos mutantes… – falou o feiticeiro, erguendo a cabeça. – E quantos deles
você matou por dinheiro, seguindo sua vocação de bruxo? Porque é possível ter presas de lobo e não
fazer com elas nada mais do que exibi-las às garotas nas estalagens, como também ter natureza lupina
e atacar criancinhas. E esse foi o caso das meninas nascidas depois do eclipse. Todas apresentaram
uma quase insana tendência a maldades, agressões, acessos de raiva e temperamento explosivo.
– E não se pode dizer o mesmo sobre qualquer mulher? – zombou Geralt. – Aonde pretende chegar
com essa baboseira? Você me pergunta quantos mutantes matei, mas por que não está interessado em
saber quantos desenfeiticei, livrando-os de sua maldição? Eu, o bruxo que tanto desprezam. E o que
fizeram vocês, poderosos feiticeiros?
– Usamos a magia superior, tanto a nossa como a dos sacerdotes dos mais diversos templos. Todas
as tentativas resultaram na morte das jovens.
– O que projeta uma imagem negativa sobre vocês, e não sobre as garotas. E, assim, temos as
primeiras mortes. Espero que as necropsias tenham ficado limitadas somente a elas, certo?
– Não, não somente a elas. Por que está me olhando desse jeito? Sabe muito bem que houve mais
mortes. Mas não eliminamos todas as jovens, como decidido no início, e sim em torno de quinze, que
foram dissecadas, uma delas ainda viva.
– E vocês, filhos de uma cadela, ousam criticar os bruxos? Ah, Stregobor, saiba que um dia as
pessoas vão abrir os olhos e querer arrancar a pele de vocês.
– Não creio que esse dia chegará tão cedo – falou o feiticeiro, acidamente. – Não esqueça que
estávamos agindo em defesa das pessoas. As mutantes teriam afogado em sangue países inteiros.
– Isso era o que afirmavam vocês, magos, com nariz empinado e aura de infalibilidade. Aliás,
certamente não vai afirmar que não se enganaram uma só vez no decurso de suas caçadas.
– Já que você faz tanta questão de saber – disse Stregobor, após um longo silêncio –, vou ser
sincero, embora não devesse, para meu próprio bem. Sim, enganamo-nos… e mais de uma vez. O
método de seleção era muito difícil e foi exatamente por isso que paramos de… eliminá-las e
passamos a mantê-las isoladas.
– Em suas famosas torres – rosnou o bruxo.
– Sim, em nossas torres. No entanto, esse foi outro erro. Nós as subestimamos e muitas
conseguiram escapar. Foi então que entre os príncipes, principalmente os mais jovens, que não tinham
o que fazer e muito menos perder, surgiu a estúpida mania de libertar belas jovens aprisionadas em
torres. Por sorte, a maior parte deles quebrou o pescoço nessas tentativas.
– Pelo que sei, as prisioneiras das torres morriam rapidamente, o que, segundo se comentava, não
teria ocorrido sem uma mãozinha de vocês.
– Isso não é verdade. O fato é que elas logo ficavam apáticas e perdiam a vontade de comer…
Curiosamente, às vésperas da morte, apresentavam o dom da vidência, mais uma prova de que eram mutantes.
– Cada prova que você menciona é menos convincente que a anterior. Não há algumas mais
concretas?
– Tenho. Silvena, a senhora de Narok, da qual não conseguimos sequer nos aproximar, porque ela
assumiu o poder muito rapidamente e agora coisas horríveis se passam em seu território. Fialka, filha
de Evermir, que fugiu da torre usando suas tranças como corda e hoje aterroriza o Velhad Setentrional.
Bernika de Talgar, libertada por um príncipe idiota que, cegado, está trancado numa masmorra,
enquanto a visão mais comum em Talgar é a de uma forca. Há mais exemplos.
– É claro que há – falou o bruxo. – Em Jamurlak, reina o velho Abrad. Ele sofre de tuberculose
linfática, não tem mais um dente sequer, deve ter nascido mais de cem anos antes daquele eclipse e só
consegue adormecer se alguém é torturado até a morte em sua presença. Já dizimou todos os parentes
e despovoou a metade de seu país, tudo em indescritíveis ataques de fúria. Há ainda indícios de seu
temperamento libidinoso… Parece que, quando jovem, era chamado de Abrad, o Levanta-Saia. Ah,
Stregobor, como a vida seria linda se fosse possível explicar todas as crueldades dos governantes
como sendo mutações e pragas!
– Ouça, Geralt…
– Não tenho a mínima intenção de ouvi-lo. Não conseguirá me convencer de suas razões nem de
que Eltibaldo não foi um psicopata assassino. Voltemos ao monstro que, segundo você, o ameaça. Pelo
prólogo que acabou de fazer, quero preveni-lo de que a história não me agrada, mas a ouvirei até o
fim.
– Sem me interromper com observações irônicas?
– Isso é algo que não posso prometer.
– Muito bem – disse Stregobor, enfiando as mãos nas mangas folgadas. – Já que é assim, meu
relato durará mais tempo. Tudo começou em Creyden, um pequeno reino ao norte. A esposa de
Fredefalk, o príncipe de Creyden, era uma mulher inteligente e instruída, chamada Aridea. Ela
descendia de uma família que teve muitos adeptos da arte da feitiçaria e assim, certamente por
herança, ficou de posse de um raro e possante artefato: um Espelho de Nehalena. Como você sabe, os
Espelhos de Nehalena são usados sobretudo por adivinhos e profetas, já que eles preveem o futuro
infalivelmente, embora de maneira enigmática. Aridea consultava o Espelho com frequência…
– Imagino que com a tradicional pergunta: “Espelho, espelho meu, existe no mundo uma mulher
mais bela do que eu?” – interrompeu-o Geralt. – Pelo que sei, os Espelhos de Nehalena podem ser
divididos em dois grupos: o dos bajuladores e o dos quebrados.
– Você está enganado. Aridea estava mais interessada no destino do país, e o Espelho respondia a
suas perguntas prevendo uma morte terrível para ela e muitas outras pessoas pelas mãos ou por causa
da filha que Fredefalk tivera com a primeira esposa. Aridea fez com que essa profecia chegasse ao
Conselho de Magos, que me enviou para Creyden. Não preciso acrescentar que a primogênita de
Fredefalk nascera pouco depois do eclipse. Durante um curto espaço de tempo, fiquei observando
discretamente a garotinha. Ela torturou até a morte um canário e dois cachorrinhos recém-nascidos,
além de furar o olho de uma camareira com a haste pontuda de um pente. Realizei alguns testes com
fórmulas mágicas, e todos confirmaram que a garota era mutante. Levei essa informação a Aridea,
pois Fredefalk tinha verdadeira loucura pela filhinha. Aridea, como lhe disse, não era tola…
– E, na certa, não morria de amores pela enteada – interrompeu-o novamente Geralt. – Preferiria
que o trono passasse para os filhos dela. Posso adivinhar o resto da história. O que me causa espécie é
não ter aparecido alguém que torcesse o pescoço dela e, aproveitando a ocasião, também o seu.
Stregobor soltou um suspiro e ergueu os olhos para o céu, no qual o arco-íris continuava a brilhar multicolorido e pictórico.
– Eu era da opinião de que a garotinha devia ser apenas isolada, mas a princesa decidiu
diferentemente. Despachou-a para a floresta na companhia de um guarda-florestal e assassino de
aluguel. Encontramo-lo alguns dias depois, no meio de um matagal. Estava sem calças, de modo que
não foi difícil reconstituir o que se passara. A menina enfiara-lhe o pino de um broche no cérebro
através da orelha enquanto ele estava com a mente ocupada com outra coisa.
– Se acha que estou com pena dele – resmungou Geralt –, está redondamente enganado.
– Organizamos uma batida – continuou Stregobor –, mas não encontramos rastro algum da
garotinha. Além disso, tive de deixar Creyden às pressas, pois Fredefalk começou a ficar desconfiado.
Somente quatro anos mais tarde recebi notícias de Aridea. Ela havia encontrado o rastro da garotinha e
descobrira que ela vivia em Mahakam com sete anões, os quais convencera de que era melhor assaltar
mercadores nas estradas do que poluir os pulmões numa mina. Era conhecida na região como
Picança*, por gostar de empalar vivas suas vítimas. Aridea contratara diversos assassinos de aluguel,
porém nenhum voltara com vida. Depois, foi ficando cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas
àquela tarefa, porque a pequena, já bastante famosa, aprendera a manusear a espada a tal ponto que
poucos homens poderiam fazer-lhe frente. Fui chamado a Creyden, aonde cheguei secretamente
apenas para descobrir que Aridea fora envenenada. As pessoas comentavam que o envenenamento fora
contratado pelo próprio Fredefalk, que estava interessado numa mulher mais jovem e mais fogosa,
mas eu tinha certeza de que aquilo fora obra de Renfri.
– Renfri?
– Era assim que a garotinha se chamava. Como ia dizendo, foi ela quem envenenou Aridea. Pouco
tempo depois, o príncipe Fredefalk morreu num acidente de caça muito estranho, e o primogênito de
Aridea sumiu sem deixar vestígio. Aquilo também deve ter sido obra da pequena. Digo “pequena”,
mas àquela época ela já devia ter em torno de 17 anos e era bastante desenvolvida.
Depois de uma pausa, o feiticeiro prosseguiu com seu relato:
– Enquanto isso, ela e seus anõezinhos haviam se tornado o terror de Mahakam. Até que, certo dia,
eles tiveram uma séria discussão… Não sei se foi por causa da divisão do fruto de um saque ou pela
decisão de quem passaria a noite com ela… O fato é que acabaram sacando os punhais. Os anões não
sobreviveram àquela noite de punhaladas. A única a sobreviver foi ela, a Picança. Na época, eu já
estava na região. Encontramo-nos frente a frente: ela me reconheceu de imediato e se lembrou do
papel que eu desempenhara em Creyden. Digo-lhe, Geralt, que mal tive tempo de pronunciar um
feitiço e minhas mãos tremiam como não sei o quê quando a furiosa gata se lançou sobre mim com a
espada em punho. Enfiei-a num belo bloco de cristal rochoso de seis côvados por nove. Quando ela
entrou em letargia, joguei o bloco para dentro da mina dos anões e tapei sua entrada.
– Que trabalho malfeito! – comentou Geralt. – Aquele seu feitiço poderia ser desfeito. Por que não
a reduziu a um punhado de cinzas? Afinal, vocês, magos, conhecem tantos feitiços simpáticos!
– Eu não. Não é minha especialidade. Mas você está coberto de razão; fiz um trabalho malfeito.
Ela foi encontrada por um príncipe idiota que gastou mundos e fundos para desenfeitiçá-la e, ao
consegui-lo, levou-a triunfalmente para casa, um obscuro principado no leste. Seu pai, um velho
saqueador, mostrou-se mais sensato. Deu uma sova no filho e decidiu arrancar da Picança o paradeiro
do tesouro amealhado por ela e seus anões. Seu erro foi permitir que o filho mais velho estivesse
presente quando ela, totalmente despida, foi colocada sobre a mesa de tortura. Já no dia seguinte, o
primogênito, órfão e sem irmãos, reinava sobre o país, com a Picança na posição de primeira favorita.
– O que quer dizer que ela não era feia.
– É uma questão de gosto, e gosto não se discute. Mas ela não permaneceu naquela posição por
muito tempo… apenas até o primeiro golpe palaciano, e estou sendo muito gentil por chamar aquele golpe de “palaciano”, pois o tal “palácio” mais parecia um estábulo. Em pouco tempo ficou patente
que a Picança não me esquecera. Sofri três atentados encomendados por ela em Kovir, de modo que
resolvi me esconder em Pontar. Mas ela me achou e eu fugi para Angren, onde ela também me
encontrou. Não sei como ela consegue fazer isso, pois tenho evitado deixar qualquer tipo de rastro.
Deve ser uma das características da mutação genética.
– O que o impediu de enclausurá-la novamente num bloco de cristal? Remorso?
– Não. Nunca tenho isso. O que se revelou é que ela ficou imune a feitiços ou outros atos de magia.
– Isso não é possível.
– Pois saiba que é. Basta dispor do adequado artefato ou de aura. Ou talvez isso tenha a ver com
sua mutação, que continua progredindo. Fugi de Angren e me refugiei aqui, na Arcomerânia, em
Blaviken. Tive um ano de paz, mas ela voltou a aparecer.
– Como você sabe? Ela já está na cidade?
– Sim. Eu a vi nesta bola de cristal. – O feiticeiro apontou para a ponta de seu cajado. – Ela não
está sozinha, mas no comando de uma quadrilha de malfeitores, o que significa que planeja algo sério.
Geralt, não tenho mais para onde fugir; não existe um só lugar onde eu possa me esconder. O fato de
você aparecer por aqui exatamente neste momento não pode ser mero acaso. É obra do destino.
O bruxo ergueu as sobrancelhas.
– O que você quer dizer com isso?
– Parece-me claro: que você vai matá-la.
– Eu não sou assassino de aluguel, Stregobor.
– Concordo que você não é assassino.
– Sou pago para matar monstros, bestas que ameaçam pessoas, criaturas evocadas por feitiços e
encantos feitos por gente como você, não seres humanos.
– Mas ela não é um ser humano. Ela é um monstro, uma mutante, um maldito engendro. Você
trouxe uma quiquimora; pois saiba que a Picança é muito pior. Quiquimoras matam porque estão com
fome, enquanto a Picança mata por prazer. Mate-a e eu lhe pagarei a soma que quiser…
evidentemente dentro do razoável.
– Eu já disse que não acredito em uma só palavra dessa história de mutações e maldição de Lilith.
A jovem tem razões de sobra para querer acertar contas com você, e não tenho a mínima intenção de
me meter nisso. Peça proteção ao intendente, à guarda municipal. Você é o feiticeiro oficial da cidade
e está protegido pelas leis locais.
– Eu me lixo para as leis, para o intendente e para a eventual proteção que ele possa me oferecer –
explodiu Stregobor. – Não preciso de proteção; quero que você a mate! Ninguém poderá entrar nesta
torre. Aqui estou totalmente protegido, mas e daí? Não pretendo ficar trancado até o fim de meus dias.
A Picança nunca vai desistir, tenho certeza. Portanto, o que me resta? Permanecer nesta torre
aguardando a morte?
– Foi o que as jovens fizeram. Sabe de uma coisa, feiticeiro? Você deveria ter deixado a caçada às
princesas para outros magos, mais poderosos que você; deveria ter previsto as consequências de seus
atos.
– Eu lhe imploro, Geralt.
– Não, Stregobor.
O feiticeiro ficou calado por um tempo. O irreal sol num céu irreal não se deslocara na direção do
zênite, porém o bruxo sabia que em Blaviken anoitecia. Sentiu fome.
– Geralt, quando ouvimos Eltibaldo, muitos de nós tivemos dúvidas, mas decidimos escolher o
mal menor. Agora, sou eu que peço a você escolha semelhante.
– Um mal é um mal, Stregobor – retrucou seriamente o bruxo, pondo-se de pé. – Menor, maior,
médio, tanto faz… As proporções são convencionadas e as fronteiras, imprecisas. Não sou um santo
eremita e não pratiquei apenas o bem ao longo de minha vida. Mas, se me couber escolher entre dois
males, prefiro abster-me por completo da escolha. Está na hora de ir embora. Ver-nos-emos amanhã.
– Talvez – falou o feiticeiro. – Se você chegar a tempo.
III
A Corte Dourada, a mais chique das estalagens da cidadezinha, estava cheia e barulhenta. Os
clientes, tanto os locais como os de fora, discorriam sobre assuntos próprios de suas profissões ou
nacionalidades. Os mercadores mais sérios discutiam com os gnomos preços de produtos e taxas de
juros aplicadas ao crédito, enquanto os mais frívolos beliscavam o traseiro das garçonetes que
levavam às mesas cerveja e repolho com ervilhas. Os patetas do lugar adotavam ar de estarem bem
informados de tudo. As prostitutas se esforçavam em agradar aos clientes que aparentavam dispor de
dinheiro, ao mesmo tempo desestimulando os avanços dos que pareciam não ter. Carreteiros e
pescadores bebiam como se no dia seguinte fosse entrar em vigor um decreto proibindo o cultivo de
lúpulo. Marinheiros entoavam canções que enalteciam as ondas do mar, a coragem dos capitães e os
encantos das sereias, estes com abundância de detalhes.
– Puxe pela memória, Setnik – disse Caldemeyn ao albergueiro, inclinando-se sobre o balcão para
poder ser ouvido em meio à algazarra geral. – Seis rapagões e uma jovem, todos com roupas de couro
preto com adornos de prata, à moda de Novigrad. Eu os vi na praça do pedágio. Estão hospedados aqui
ou n’Os Atuns?
O albergueiro enrugou a testa proeminente, limpando um caneco com o avental listrado.
– Aqui, senhor intendente – respondeu por fim. – Disseram que vieram para a feira. Estão todos
armados, inclusive a jovem, e, como o senhor falou, vestidos de preto.
– E onde estão neste momento? – perguntou o intendente. – Não os vejo aqui.
– No salão privativo. Pagaram com ouro.
– Irei até lá sozinho – falou Geralt. – Por enquanto, não há motivo para tratar este assunto como
oficial. Vou trazê-la para cá.
– Talvez seja melhor. Mas tome cuidado, porque não quero confusão.
– Vou tomar cuidado.
A canção dos marinheiros, a julgar pela crescente quantidade de expressões vulgares, parecia estar
chegando ao grandioso final. Geralt ergueu a ponta da dura e pegajosa cortina que separava o salão
principal do privativo. Neste, seis homens estavam sentados em torno de uma mesa. Aquela que ele
esperava encontrar não estava entre eles.
– O que foi? – indagou rudemente um careca com o rosto deformado por uma cicatriz que
começava na sobrancelha esquerda, passava pela base do nariz e acabava na bochecha direita.
– Quero falar com a Picança.
Duas figuras idênticas – o mesmo rosto imóvel, os mesmos cabelos louros desalinhados até os
ombros, as mesmas roupas apertadas de couro preto brilhando com adornos de prata – ergueram-se e,
com movimentos idênticos, pegaram duas espadas, também idênticas, que repousavam sobre um
banco.
– Acalme-se, Vyr. Sente-se, Nimir – falou o homem com a cicatriz, apoiando os cotovelos no
tampo da mesa. – Com quem mesmo você quer falar, irmãozinho? Picança?
– Você sabe muito bem de quem se trata.
– Quem é esse sujeito? – perguntou um suado brutamontes com o torso desnudo atravessado por
dois cinturões em cruz e aguilhões protegendo os antebraços. – Você o conhece, Nohorn?
– Não – respondeu o homem da cicatriz.
– É um albino – riu zombeteiramente um esbelto homem de cabelos negros, sentado junto de
Nohorn. Os traços delicados, os enormes olhos negros e as orelhas pontudas traíam sua origem élfica.
– É um albino mutante, uma anomalia da natureza. Como é revoltante notar que se permite a entrada
desses aleijões nas tabernas, no meio de pessoas decentes.
– Eu já o vi em algum lugar – afirmou um homem troncudo, com pele queimada de sol e cabelos
presos numa longa trança, medindo Geralt com olhar maligno.
– Não importa que você o tenha visto, Tavik – disse Nohorn. – Escute, irmãozinho, agora mesmo,
Civril insultou você horrivelmente. Não vai exigir satisfações? A tarde está tão entediante…
– Não – respondeu o bruxo, com toda a calma do mundo.
– E a mim, se eu derramar esta sopa de peixe em sua cabeça, também não vai exigir satisfações? –
perguntou desafiadoramente o homem de peito desnudo.
– Calma, Quinzena – falou Nohorn. – Se ele disse que não, é não, pelo menos por enquanto. E
então, irmãozinho, diga o que tem a dizer e, depois, suma daqui. Estou lhe dando a oportunidade de
sair andando com as próprias pernas. Se não aproveitá-la, será carregado para fora pelos empregados
do albergue.
– Não tenho nada a dizer a você. Meu assunto é com a Picança. Com Renfri.
– Vocês ouviram isso, rapazes? – Nohorn olhou para os companheiros. – Ele quer se encontrar com
Renfri. E com que propósito, irmãozinho, se é que podemos saber?
– Não, não podem.
Nohorn voltou-se para os gêmeos, que deram um passo à frente, fazendo tilintar as fivelas
prateadas das botas de cano alto.
– Já sei! – exclamou repentinamente o homem de trança. – Já sei onde o vi!
– O que você está balbuciando, Tavik?
– Que já sei onde eu o vi. Foi diante da casa do intendente. Ele trouxe um tipo de dragão para
vender, uma mistura de aranha com crocodilo. As pessoas comentavam que ele é bruxo.
– O que é um bruxo, Civril? – quis saber Quinzena, o de peito desnudo.
– É um mágico de aluguel – respondeu o meio-elfo. – Um prestidigitador que se contrata por um
punhado de moedas. Como já disse: uma anomalia da natureza, uma ofensa às leis dos homens e dos
deuses. Tipos como ele deviam ser queimados em fogueiras.
– Nós não gostamos de feiticeiros – rosnou Tavik, sem desgrudar os olhos de Geralt. – Algo me
diz, Civril, que vamos ter aqui mais trabalho do que esperávamos. Deve haver mais deles, pois todos
sabem que os bruxos andam em bandos.
– É verdade, eles parecem se atrair mutuamente – sorriu com malícia o mestiço. – E pensar que há
no mundo seres assim. Afinal, quem poderia engendrar criaturas como você?
– Seja um pouco mais tolerante, se não for incômodo – falou calmamente Geralt. – Pelo que vejo,
sua mãe deve ter andado muitas vezes sozinha pela floresta, já que você tem motivos para duvidar da
própria origem.
– É possível – retrucou o meio-elfo, sem parar de sorrir. – Mas eu, pelo menos, conheci minha
mãe, enquanto você, por ser bruxo, não pode afirmar o mesmo.
Geralt empalideceu e mordeu os lábios, algo que não escapou a Nohorn, que soltou uma
gargalhada.
– Bem, agora, irmãozinho, você não pode deixar passar em branco uma ofensa de tal gravidade. O
que você carrega aí, às costas, é uma espada. Então, como vai ser? Vai duelar com Civril? A tarde está
tão chata…
O bruxo não reagiu.
– Covarde! – bufou Tavik.
– O que ele falou da mãe de Civril? – continuou monotonamente Nohorn, apoiando o queixo nas
mãos entrelaçadas. – Algo nojento, me pareceu… Que ela dava aqui e ali. Ei, Quinzena, você acha
certo ouvir calado um vagabundo qualquer ofender a mãe de um colega? Mãe, com mil demônios, é
coisa sagrada!
Quinzena levantou-se prontamente e desprendeu a bainha com a espada, atirando-as sobre a mesa.
Estufou o peito, ajeitou as proteções dos antebraços cheias de pontiagudos tachões de prata, cuspiu
para o lado e deu um passo à frente.
– Caso ainda tenha alguma dúvida – falou Nohorn –, esclareço-lhe que Quinzena o está desafiando
para uma luta. Eu lhe avisei que seria carregado para fora. Abram espaço.
Quinzena aproximou-se com os punhos para cima. Geralt levou a mão à empunhadura da espada.
– Pense bem no que vai fazer – disse. – Mais um passo e você estará procurando a mão no
assoalho.
Nohorn e Tavik ergueram-se de um pulo, pegando suas armas. Os calados gêmeos sacaram as suas,
com gestos idênticos. Quinzena recuou. O único que não se mexeu foi Civril.
– O que está se passando aqui? Será que não é possível deixar vocês sozinhos nem por um
instante?
Geralt virou-se lentamente e deparou com um par de olhos azul-esverdeados, como a água do mar.
Parada no vão da porta, apoiada na ombreira, estava uma jovem quase tão alta quanto ele. Tinha
cabelos cor de palha cortados irregularmente, logo abaixo das orelhas. Vestia corpete de veludo
cingido por um belo cinturão e saia assimétrica, que chegava à panturrilha esquerda e deixava
descoberta a bem torneada coxa direita sobre o cano da bota de pele de alce. Do lado esquerdo da
cintura, pendia uma espada e, do direito, um estilete com um enorme rubi no punho.
– E então? Ficaram mudos de repente?
– É um bruxo… – balbuciou Nohorn.
– E daí?
– Ele queria falar com você…
– E daí?
– É um feiticeiro! – gritou Quinzena.
– Nós não gostamos de feiticeiros – rosnou Tavik.
– Calma, meninos – falou a jovem. – Ele quer falar comigo? Pois isso não é crime. Continuem
brincando, mas sem fazer algazarra. Amanhã é o dia da feira. Vocês não querem, espero, que suas
travessuras estraguem um acontecimento tão importante na vida desta simpática cidadezinha, não é?
No silêncio que se seguiu, ecoou, bem baixo, um desagradável risinho. Civril, que continuava
esparramado sobre o banco, ria gostosamente – Você tem cada uma, Renfri! – disse, quase engasgando. – Acontecimento importante… uma ova!
– Cale a boca, Civril. Imediatamente.
Civril parou de rir. Imediatamente. Geralt não se espantou. Na voz de Renfri soara algo muito
estranho, algo que evocava reflexos vermelhos em lâminas de espadas, uivos de homens sendo
assassinados, cavalos relinchando e cheiro de sangue. Os demais devem ter tido a mesma impressão,
porque até o rosto queimado de sol de Tavik empalideceu.
– Venha, Cabelos-Brancos – falou Renfri, quebrando o silêncio. – Vamos até o salão principal
juntar-nos ao intendente, pois tenho certeza de que ele também quer conversar comigo.
Caldemeyn, que permanecera junto do balcão conversando com o albergueiro, interrompeu a
conversa assim que os viu, endireitando-se e cruzando os braços sobre o peito.
– Escute bem, minha senhora – disse duramente, sem perder tempo em cumprimentos corteses. –
Soube pelo bruxo de Rívia aqui presente o motivo que a trouxe a Blaviken. Aparentemente, a senhora
nutre um rancor por nosso feiticeiro.
– Talvez nutra. E daí? – indagou baixinho Renfri, também em tom de poucos amigos.
– Daí que para esse tipo de contendas existem os tribunais da cidade e da corte. Todo aquele que
aqui, na Arcomerânia, queira vingar-se com ferro passa a ser considerado um bandido qualquer.
Portanto, ou a senhora e sua negra comitiva somem de Blaviken amanhã cedinho, ou terei de trancar
todos nas masmorras de maneira prev… Como se diz mesmo, Geralt?
– Preventiva.
– Sim, preventiva. Entendeu, minha jovem?
Renfri retirou de uma bolsa presa a seu cinto um pergaminho dobrado várias vezes.
– Leia isto, senhor intendente, caso seja alfabetizado. E nunca mais me chame de “minha jovem”.
Caldemeyn pegou o pergaminho, leu-o com cuidado e, sem dizer uma palavra, passou-o a Geralt.
– “A meus regentes, vassalos e súditos livres” – leu o bruxo em voz alta. – “Declaro urbi et orbi
que Renfri, princesa de Creyden, continua a nosso serviço e é pessoa de nossa estima, de modo que
todo aquele que ousar prejudicá-la atrairá nossa ira sobre si. Audoen, rei…” “Prejudicá-la” está escrito
errado, mas o selo parece autêntico.
– Porque é autêntico – disse Renfri, arrancando-lhe o pergaminho. – Foi aposto por Audoen, vosso
magnânimo amo. Por isso aconselho todos vocês a não tentar me prejudicar. Independentemente de
como tal palavra está escrita, sua consequência poderá lhes ser funesta. Senhor intendente, não vai
trancar-me numa masmorra, nem mais chamar-me de “minha jovem”. Não infringi a lei, pelo menos
por enquanto.
– Mas, se você infringi-la, nem que seja um bocadinho – ameaçou Caldemeyn, parecendo prestes a
cuspir –, vou enfiá-la na masmorra, com esse pergaminho. Juro por todos os deuses, minha jovem.
Vamos embora, Geralt.
– Um momento, bruxo. – Renfri tocou no braço de Geralt. – Gostaria de trocar algumas palavras
com você.
– Não se atrase para o jantar – falou o intendente –, senão Libusza vai ficar furiosa.
– Não me atrasarei.
Geralt apoiou-se no balcão e, brincando com seu medalhão com cabeça de lobo, fixou a jovem nos
olhos azul-esverdeados.
– Ouvi falar de você – disse ela. – Você é Geralt de Rívia, o bruxo de cabelos brancos. Stregobor é
seu amigo?
– Não.
– Isso facilita as coisas.
– Nem tanto. Não tenho a intenção de permanecer como simples espectador.
Os olhos de Renfri se estreitaram.
– Stregobor morrerá amanhã – afirmou baixinho, afastando da testa os cabelos cortados
irregularmente. – O mal seria menor se ele fosse o único a morrer.
– Se… Ou melhor… Antes que Stregobor morra, morrerão outras pessoas. Não vejo outra
possibilidade.
– “Algumas”, senhor bruxo, é um termo demasiadamente modesto.
– Para assustar-me, Picança, vai ser preciso muito mais do que meras palavras.
– Não me chame de Picança. Detesto esse apelido. O fato é que vejo outras possibilidades. Valeria
a pena analisá-las com você, mas não será possível; Libusza o aguarda. Pelo menos ela é bonita?
– Isso é tudo o que você tinha a me dizer?
– Não. Mas você precisa ir. Libusza o aguarda.
IV
Havia alguém em seu quartinho no sótão. Geralt soube disso antes mesmo de aproximar-se da
porta, graças à vibração de seu medalhão. Apagou a lamparina que usara para iluminar as escadas e,
tirando o estilete do cano da bota, colocou-o às costas, por trás do cinturão. Moveu a maçaneta. O
quarto estava escuro, mas não para ele.
Entrou devagar, fechando silenciosamente a porta atrás de si. No segundo seguinte deu um longo
salto e caiu sobre a figura sentada na cama, pressionando-a contra os lençóis, colocando o antebraço
esquerdo debaixo de seu queixo e levando a mão ao punhal. Não chegou a desembainhá-lo. Havia algo
errado.
– A coisa está começando melhor que o esperado – disse ela com voz abafada, deitada imóvel
debaixo dele. – Contava com isso, mas não esperava que fôssemos acabar na cama tão rápido. Se não
for muito incômodo, poderia tirar a mão de minha garganta?
– Você?!
– Sim, sou eu; e há duas possibilidades: primeira, você desce de cima de mim e vamos conversar;
segunda, permanecemos nesta posição, só que, nesse caso, gostaria de tirar pelo menos minhas botas.
O bruxo optou pela primeira possibilidade. A jovem soltou um suspiro, levantou-se e ajeitou a saia
e os cabelos.
– Acenda a vela. Diferentemente de você, não enxergo no escuro e gosto de ver meu interlocutor.
Aproximou-se da mesa e, alta, esbelta e ágil, sentou-se, esticando as pernas enfiadas em botas de
cano alto. Parecia não estar armada.
– Você tem aqui algo para beber?
– Não.
– Então, fiz bem em trazer isto – riu, colocando sobre a mesa um odre de vinho e dois copos de
couro.
– É quase meia-noite – falou friamente Geralt. – Podemos ir direto ao assunto?
– Já, já. Tome. A sua saúde, Geralt.
– À sua, Picança.
– Meu nome é Renfri, com todos os diabos! Permito-lhe omitir meu título nobiliárquico, mas pare
de me chamar de Picança!
– Fale mais baixo, senão vai acordar a casa toda. Será que finalmente vou ser informado do motivo
que a fez entrar pela janela em meu humilde quarto?
– Como você é pouco perspicaz, bruxo! Quero poupar Blaviken de uma carnificina. Com esse
intuito, andei pelos telhados como uma gata no cio. Espero que aprecie minha atitude.
– Aprecio, só que não sei em que poderá resultar nossa conversa. A situação é mais do que clara.
Stregobor está fechado em sua torre e, para pôr as mãos nele, você terá de sitiá-la. Se fizer isso, de
nada lhe adiantará seu salvo-conduto. Audoen não a defenderá se você infringir frontalmente a lei. O
intendente, a guarda municipal e toda Blaviken se virarão contra você.
– Toda Blaviken, caso se vire contra mim, se arrependerá amargamente – retrucou Renfri com um
sorriso, mostrando dentes predatórios. – Você deu uma boa olhada em meus rapazes? Garanto-lhe que
são mestres em seu ofício. Consegue imaginar o que poderá acontecer se houver um combate entre
eles e a guarda municipal, cujos membros mal sabem segurar uma alabarda?
– E você, Renfri, acha que ficarei parado olhando calmamente para um combate desses? Como
pode ver, moro na casa do intendente. Em caso de necessidade, me sentirei na obrigação de ficar do
lado dele.
– E não tenho dúvida – respondeu ela seriamente – de que você o fará. Mas provavelmente será o
único, porque os demais se esconderão nos porões. Não existe no mundo guerreiro capaz de dar conta
de outros sete, armados como eu e meus rapazes. Assim, Cabelos-Brancos, vamos parar com essas
ameaças mútuas. Como falei, a carnificina e o derramamento de sangue poderão ser evitados.
Basicamente, duas pessoas estão em condições de impedi-los.
– Sou todo ouvidos.
– A primeira é o próprio Stregobor. Basta ele sair voluntariamente da torre. Então, eu o levarei
para longe daqui e Blaviken retornará à sua feliz apatia, esquecendo em pouco tempo todo o incidente.
– Stregobor até pode parecer maluco, mas não a tal ponto.
– Quem sabe, bruxo, quem sabe. Existem argumentos que não podem ser refutados, assim como
propostas irrecusáveis. Uma delas, por exemplo, é o ultimato de Tridam, que farei ao feiticeiro.
– E de que se trata?
– É um doce segredo meu.
– Que seja. No entanto, duvido muito de sua eficácia. Um ultimato capaz de fazê-lo colocar-se
voluntariamente em suas lindas mãozinhas teria de ser de fato poderoso. Portanto, é melhor passarmos
para a segunda pessoa capaz de impedir uma carnificina em Blaviken. Tentarei adivinhar quem seria.
– Estou curiosa de ver a que ponto chega sua perspicácia, Cabelos-Brancos.
– É você, Renfri. Você mesma. Você demonstraria uma principesca… que digo eu?… uma
majestática magnanimidade e renunciaria a sua vingança. Acertei?
Renfri jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, tapando a boca com a mão para abafá-la.
Depois adotou ar mais sério e fixou os olhos brilhantes no bruxo.
– Geralt, eu fui princesa, mas em Creyden. Tive de tudo o que se pode imaginar, mesmo sem
pedir: camareiras prontas para me atender ao menor gesto, vestidinhos, sapatinhos, calcinhas de
cambraia, joias e bijuterias, um cavalinho baio, peixinhos dourados num lago artificial, bonecas e uma
casa para elas maior do que este quarto. E foi assim até o dia em que esse seu Stregobor e aquela puta
Aridea mandaram um guarda-florestal levar-me a uma floresta, matar-me e levar para eles meu coração e fígado. Bonito, não?
– Não, é horrível. Fico feliz por você ter dado conta daquele guarda-florestal, Renfri.
– Ter dado conta dele? Que nada! É verdade que ele ficou com pena de mim e me soltou, mas
antes me violou e roubou meus brincos e um diadema de brilhantes.
Geralt, brincando com seu medalhão, fixou os olhos diretamente nos da jovem. Renfri sustentou o
olhar.
– E esse foi o fim da princesinha – continuou ela. – O vestidinho se rasgou, a cambraia perdeu
irremediavelmente a alvura. Em seguida, sucederam-se sujeira, fome, fedor, bastonadas e pontapés.
Entregava-me a qualquer um por um prato de sopa ou um teto sobre a cabeça. Você sabe como eram
meus cabelos? Como de seda, chegavam a quase metade da coxa. Quando peguei piolhos, foram
cortados com uma tesoura de tosquiar ovelhas e fiquei quase careca. Nunca mais voltaram a ser como
foram.
Calou-se por um momento, afastando da testa as madeixas cortadas irregularmente.
– Roubava para não morrer de fome – retomou. – Matava para não ser morta. Ficava trancada em
masmorras fedendo a urina, sem saber se seria enforcada no dia seguinte ou simplesmente surrada e
posta para fora. E por todo aquele tempo tanto minha madrasta como esse seu feiticeiro viviam em
meus calcanhares, despachando assassinos, tentando envenenar-me, lançando feitiços. Mostrar-lhe
magnanimidade? Perdoar-lhe de maneira majestática? Eu vou é cortar-lhe majestosamente a cabeça
ou, antes, as duas pernas, dependendo do desenrolar dos acontecimentos.
– Aridea e Stregobor tentaram envenená-la?
– Sim. Com uma maçã impregnada com extrato de urtiga. Fui salva por um gnomo, que me deu
uma substância emética. Achei que ia botar as tripas para fora, mas sobrevivi.
– Foi um daqueles sete gnomos?
Renfri, que estava enchendo os copos, interrompeu o gesto com o odre na mão.
– Vejo que sabe muito de mim. O que tem contra gnomos ou outros humanoides? Para ser mais
precisa, devo lhe dizer que eles foram muito melhores comigo do que a maior parte dos seres
humanos. Isso, porém, não lhe diz respeito. O que estava lhe contando era que Aridea e Stregobor
ficaram me caçando como a um animal selvagem enquanto puderam. Então, eu passei a ser a
caçadora. Aridea esticou as canelas no próprio leito; teve muita sorte por eu não a ter alcançado, já
que lhe havia preparado um programa todo especial. E agora tenho um para o feiticeiro. Geralt, digame com toda a sinceridade: ele não merece morrer?
– Não sou juiz; apenas bruxo.
– Pois é. Eu falei que duas pessoas poderiam impedir um banho de sangue em Blaviken. A segunda
pessoa é você. Stregobor o deixará entrar na torre e você poderá matá-lo.
– Renfri – disse Geralt calmamente –, será que em suas caminhadas pelos telhados você não caiu
de cabeça em um deles?
– Você é ou não um bruxo, com todos os diabos? Disseram-me que você matou uma quiquimora e
a trouxe no lombo de um burro para ser avaliada e vendida. Stregobor é muito pior que uma
quiquimora, que é uma besta irracional e mata pessoas porque assim foi formada pelos deuses. Já
Stregobor é um cruel monstro maníaco. Traga-o para mim em cima de um burrico e eu serei generosa
com o ouro.
– Não sou assassino de aluguel, Picança.
– Sei que não é – concordou ela com um sorriso, inclinando-se para trás sobre o banco e colocando
as longas pernas sobre a mesa sem fazer esforço algum para cobrir a coxa desnuda. – Você é um bruxo, defensor dos homens, aos quais protege do Mal. Só que, nesse caso, o Mal é o ferro e o fogo
que causarão um terrível estrago caso venhamos a nos confrontar. Não lhe parece que estou lhe
propondo o menor dos dois males, a melhor das soluções para todos? Inclusive para aquele Stregobor
filho da puta? Você poderá matá-lo de maneira indolor, de um só golpe. Ele morreria sem saber que
estava morrendo, algo que eu não poderia garantir.
Geralt permaneceu calado. Renfri espreguiçou-se esticando os braços para cima.
– Compreendo sua hesitação – falou –, mas preciso de uma resposta imediata.
– Você sabe o motivo pelo qual Stregobor e a princesa queriam matar você, tanto em Creyden
como mais tarde?
Renfri endireitou-se rapidamente, tirando as pernas de cima da mesa.
– Parece-me óbvio – explodiu. – Eles queriam se livrar da primogênita de Fredefalk, porque eu era
a herdeira do trono. Os filhos de Aridea eram fruto de um matrimônio morganático e, como tais, não
tinham nenhum direito a…
– Renfri, não é a isso que estou me referindo.
A jovem abaixou a cabeça, mas só por um momento. Seus olhos brilharam.
– Muito bem, que seja. Supõe-se que eu seja maldita, contaminada ainda no ventre materno.
Supõe-se que eu seja…
– Vamos, conclua a frase.
– Um monstro.
– E você é?
Por um breve momento a jovem pareceu indefesa, alquebrada… e muito triste.
– Não sei, Geralt – sussurrou. Logo, no entanto, seus traços readquiriram a dureza anterior. – Pois
como, com todos os diabos, eu poderia saber? Quando machuco meu dedo, sangro. Também sangro
todo mês. Se me empanturro de comida, tenho dor de barriga e, quando bebo demais, me dói a cabeça.
Canto quando estou feliz e praguejo quando estou triste. Quando odeio alguém, o mato, e quando…
Ah, que merda! Chega disso. Sua resposta, bruxo.
– Minha resposta é: “Não.”
– Você está lembrado do que lhe falei? – perguntou Renfri, após um breve silêncio. – Existem
propostas irrecusáveis; suas consequências podem ser terríveis. Estou advertindo-o com toda a
seriedade, pois a minha é exatamente uma dessas. Pense bem.
– Já pensei bastante. E leve-me a sério, pois minha advertência a você também foi feita com toda a
seriedade.
Renfri ficou calada, brincando com um colar de pérolas que dava três voltas em seu belo pescoço
antes de desaparecer provocativamente entre as duas atraentes semiesferas visíveis no decote do
corpete.
– Geralt, Stregobor lhe pediu que me matasse?
– Sim. Em sua opinião isso seria o mal menor.
– Posso concluir que você rejeitou a oferta dele, assim como a minha?
– Pode.
– Por quê?
– Porque não acredito no mal menor.
Renfri sorriu levemente antes de seus lábios se contorcerem num esgar que, à luz amarelada da
vela, pareceu muito desagradável.
– Você diz que não acredita – falou. – Pois saiba que tem razão, mas só parcialmente. Existem
apenas o Mal e o Mal Maior, e por trás deles, a sua sombra, oculta-se o Mal Supremo. O Mal
Supremo, Geralt, é algo que você nem pode imaginar, embora esteja convencido de que nada mais no
mundo poderia surpreendê-lo. E saiba que ocorrem momentos em que o Mal Supremo nos agarra pelo
pescoço e diz: “Escolha, irmãozinho: ou eu, ou aquele outro, um pouquinho menor.”
– Posso saber aonde quer chegar?
– A lugar algum. Bebi um pouco e estou filosofando, procurando verdades absolutas. Acabei de
descobrir: o mal menor existe, mas nós não podemos escolhê-lo. É o Mal Supremo que poderá nos
forçar a esse tipo de escolha, independentemente se queremos ou não fazê-la.
– Pois não bebi como você – disse o bruxo, sorrindo amargamente. – Já passa da meia-noite,
portanto vamos ao que interessa: você não matará Stregobor em Blaviken, porque não permitirei que o
faça. Não permitirei que se chegue a um combate e a uma carnificina. Volto a propor: desista de sua
vingança. Não prossiga no intento de matá-lo. Desse modo, provará a ele, e não só a ele, que não é um
sanguinário monstro desumano, um mutante ou uma aberração da natureza. Mostrará a ele que estava
enganado e que seu erro causou um grande dano a você.
Renfri ficou olhando para o medalhão que Geralt fazia girar na fina corrente entre os dedos.
– Se eu lhe disser, bruxo, que não sou capaz de perdoar nem de desistir de uma vingança, isso seria
uma admissão de que ele, e não só ele, estava certo? E, ao mesmo tempo, comprovaria que sou
efetivamente um monstro, um demônio desumano amaldiçoado pelos deuses? Pois ouça uma coisa,
bruxo. Logo no começo de minha via-crúcis, fui acolhida por um camponês. Achava-me atraente, mas
eu o considerava repugnante. Toda vez que ele queria me possuir, espancava-me a tal ponto que eu
mal podia me arrastar para fora da tarimba na manhã seguinte. Certo dia levantei-me quando ainda
estava escuro e cortei sua garganta com uma foice. Àquela época eu não tinha a experiência que tenho
hoje, e uma faca pareceu-me demasiadamente pequena. E sabe de uma coisa, Geralt? Quando o ouvi
gorgolejar e engasgar e olhei para suas pernas se agitando convulsivamente, tive a sensação de que as
marcas de seu cajado e de seus punhos não doíam mais e me senti tão livre e tão bem que… que parti
dali assoviando, alegre, saudável e feliz da vida a ponto de… nem sei de quê… E, depois, toda vez
acontecia o mesmo. Se não fosse assim, quem perderia tempo com vinganças?
– Renfri, independentemente de seus motivos, você não sairá daqui assoviando e sentindo-se tão
bem, alegre e feliz, mas sairá viva. Partirá amanhã bem cedo, como lhe ordenou o intendente. Repito:
você não matará Stregobor em Blaviken.
Os olhos da jovem brilhavam à luz da vela; brilhavam as pérolas no decote do corpete; brilhava o
medalhão com cabeça de lobo girando na fina corrente de prata.
– Tenho pena de você – falou Renfri repentinamente, com voz pausada e os olhos fixos no
cintilante disco prateado. – Você afirma que não existe mal menor. Vejo você parado na praça central
coberta de sangue, sozinho, por não saber fazer uma escolha, mas tê-la feito assim mesmo. Você
jamais saberá, jamais terá certeza, jamais… E, em vez de dinheiro, receberá pedradas e palavrões.
Tenho pena de você.
– E quanto a você? – indagou o bruxo baixinho, quase num sussurro.
– Eu também não sei escolher.
– Quem é você?
– Sou o que sou.
– Onde você está?
– Estou com… frio.
– Renfri! – exclamou o bruxo, apertando o medalhão.
A jovem ergueu rapidamente a cabeça, parecendo despertar de um sonho. Espantada, piscou os
olhos repetidas vezes. Por um breve momento, pareceu assustada.
– Você ganhou, bruxo – disse asperamente. – Amanhã, logo de madrugada, partirei de Blaviken e
nunca mais voltarei a esta cidade rançosa. Nunca. Sirva-me um pouco de bebida, se é que sobrou
alguma gota no odre.
Ao colocar o copo de volta na mesa, seu rosto já apresentava o costumeiro sorriso maroto e
zombeteiro.
– Geralt?
– Sim?
– Esse maldito telhado é muito escorregadio. Eu preferiria sair daqui já com a luz do dia. No
escuro, posso cair e me machucar. Sou uma princesa, meu corpo é delicado; consigo sentir um grão de
ervilha através do colchão, evidentemente se ele não estiver bem recheado com palha. O que diz
disso?
Geralt não pôde refrear um sorriso.
– Renfri, será que o que está dizendo é adequado a uma princesa?
– E o que você, com todos os diabos, pode saber de princesas? Já fui uma e sei que a única
vantagem é a de poder fazer tudo o que se deseja. Devo dizer-lhe detalhadamente o que desejo ou você
vai adivinhar?
Geralt continuou a sorrir, mas não respondeu.
– Não quero nem admitir a possibilidade de eu não lhe agradar – disse ela, fazendo beicinho. –
Prefiro supor que você está com medo de ter o mesmo destino daquele campônio. Ah, CabelosBrancos, não precisa se preocupar; não tenho arma cortante alguma. Aliás, certifique-se por si mesmo.
Estendeu as pernas sobre os joelhos de Geralt.
– Tire minhas botas. O cano é o melhor lugar para ocultar um punhal.
Já descalça, abriu a fivela do cinturão.
– Como pode ver, aqui também não escondo nada; nem aqui. Apague essa maldita vela.
Do lado de fora um gato miava desesperadamente.
– Renfri?
– Sim?
– Isto é mesmo cambraia?
– Claro que sim, com todos os diabos. Afinal, sou ou não uma princesa?
V
– Papai – repetia monotonamente Marilka –, quando iremos à feira? Vamos à feira, papai.
– Fique quieta, Marilka – resmungou Caldemeyn, limpando o prato com um pedaço de pão. – O
que está dizendo, Geralt? Que eles vão sair da cidade?
– Sim.
– Nunca pensei que isso acabasse tão facilmente. Graças àquele pergaminho com o selo de
Audoen, eles me tinham pelo pescoço. Banquei o machão, mas a bem da verdade nada poderia fazer
contra eles.
– Mesmo se tivessem violado abertamente a lei, desencadeado uma briga e perturbado a ordem
pública?
– Mesmo assim. Audoen é um rei muito melindrável e manda pessoas ao cadafalso por qualquer
motivo. Tenho mulher e filha, gosto de meu trabalho e não preciso quebrar a cabeça para saber onde
vou arrumar algo para encher minha pança. Em outras palavras, ainda bem que eles vão embora. Mas
diga-me, como isso se passou?
– Papai, eu quero ir à feira!
– Libusza! Tire Marilka daqui! Saiba, Geralt, que não achei que você conseguiria. Andei sondando
Setnik, o dono do albergue A Corte Dourada, sobre aquele grupo de Novigrad. Eles não são de
brincadeira, e alguns foram reconhecidos.
– Verdade?
– Aquele com a cicatriz no rosto é Nohorn, antigo ajudante de ordens de Abergardo na Companhia
Independente de Angren. Já ouviu falar de tal companhia? Lógico que sim; todos ouviram. O touro
chamado Quinzena também era um deles; e, mesmo que não fosse, não creio que seu apelido provenha
de quinze boas ações que ele tenha feito na vida. O nome do meio-elfo de pele escura é Civril, um
bandido e assassino de aluguel. Parece que teve algo a ver com o massacre de Tridam.
– De onde?
– De Tridam. Não ouviu falar? Falou-se muito disso há uns três… sim, há três anos, porque
Marilka tinha dois naquela ocasião. O barão de Tridam mantinha encarcerado um bando de
assaltantes. Outros companheiros deles, incluindo o tal mestiço Civril, sequestraram no meio do rio
uma balsa cheia de peregrinos, porque aquilo ocorreu durante a Festa de Nis. Então, exigiram que o
barão soltasse os presos. Como era de imaginar, o barão se recusou, e aí eles começaram a matar os
peregrinos um a um. Até o barão amolecer e soltar os prisioneiros, os que estavam na balsa já haviam
matado mais de dez. Em seguida, ameaçaram expulsar o barão de seus domínios e condená-lo à morte.
As opiniões estavam divididas: alguns o criticavam por ter cedido somente depois de tantas pessoas
terem sido assassinadas; outros diziam o contrário, que ele fez um grande mal ao estabelecer um
prece… precedente e que deveria ter ordenado atacar a balsa, mesmo que isso resultasse na morte do
todos os reféns. Durante o processo, o barão afirmou que escolhera o mal menor, porque na balsa
havia mais de vinte e cinco pessoas, com mulheres e crianças entre elas…
– O ultimato de Tridam – murmurou o bruxo. – Renfri…
– O que foi?
– Caldemeyn, a feira!
– O que tem a feira?
– Você não compreende, Caldemeyn? Ela me enganou. Eles não irão embora. Forçarão Stregobor a
sair da torre assim como fizeram com o barão de Tridam. Ou então me forçarão a… Será que você não
consegue entender? Eles vão começar a assassinar as pessoas na feira. A praça central, murada por
todos os lados, é uma armadilha perfeita!
– Por todos os deuses, Geralt! Acalme-se! Aonde você está indo?
Marilka, assustada com a gritaria, começou a choramingar encolhida num canto da cozinha.
– Eu não falei?! – exclamou Libusza, apontando o dedo na direção de Geralt. – Falei! Este aí só
traz desgraças!
– Cale-se, mulher! Geralt, sente-se!
– É preciso detê-los. Agora, antes de as pessoas se juntarem na praça central. Chame os guardas.
Assim que aquele bando sair do albergue, prenda-o e leve-o para as masmorras.
– Geralt, seja razoável. Não podemos fazer isso assim, sem mais nem menos, sem que eles tenham
feito algo errado. Eles vão se defender; sangue vai ser derramado. Trata-se de profissionais que
acabarão rapidamente com meus homens. Se isso chegar aos ouvidos de Audoen, pagarei com minha
cabeça. Posso colocar meus homens em estado de alerta e ir até a feira para ficar de olho nesses
bandidos…
– Isso não será o suficiente, Caldemeyn. Se a multidão entrar na praça central, nada mais poderá
ser feito; você não conseguirá evitar o pânico e a carnificina. Aqueles facínoras têm de ser
neutralizados imediatamente, enquanto a praça ainda está vazia.
– Mas isso seria contra a lei. Não posso permitir uma coisa dessas. Aquela história do meio-elfo e
do ultimato de Tridam pode ser apenas um boato. Você poderia estar enganado, e aí? Aí, Audoen vai
me esfolar vivo.
– É preciso escolher o mal menor!
– Geralt, eu lhe proíbo! Como intendente desta cidade, eu lhe proíbo! Largue a espada! Não saia
desta casa!
Marilka chorava, cobrindo o rosto com as mãozinhas.
VI
Civril, protegendo os olhos com a mão, observou o sol saindo de trás das árvores. A praça estava
começando a se animar. Carroças se deslocavam por toda parte, e os primeiros vendedores enchiam
suas barracas com mercadorias. Martelos batiam, galos cantavam, gaivotas soltavam gritos
estridentes.
– O dia promete ser lindo – falou pensativamente Quinzena.
Civril olhou para ele de soslaio, mas não disse nada.
– Como estão os cavalos, Tavik? – perguntou Nohorn, vestindo as luvas.
– Prontos e selados. Civril, continuo achando que ainda há pouca gente na praça.
– Haverá mais.
– Deveríamos comer alguma coisa.
– Mais tarde.
– É isso mesmo; mais tarde você terá mais tempo… e mais apetite.
– Olhem – falou repentinamente Quinzena.
Na rua principal surgia a figura do bruxo, que, passando por entre as barracas, vinha diretamente
na direção deles.
– Não é que Renfri tinha razão? – disse Civril. – Nohorn, passe-me a besta.
Pegando a arma, Civril encurvou-se, fixou o cepo com o pé apoiado no estribo, colocou uma seta e
esticou a corda. O bruxo aproximava-se cada vez mais. Civril colocou o dedo no gatilho.
– Nem mais um passo, bruxo!
Geralt parou a uns quarenta passos do grupo.
– Onde está Renfri?
O mestiço fez uma careta de escárnio.
– Diante da torre, fazendo uma proposta ao feiticeiro. Ela sabia que você viria aqui e mandou lhe
transmitir dois recados.
– Fale.
– O primeiro é apenas uma frase: “Sou o que sou. Escolha: ou eu, ou aquele outro, menor.” Pelo
que ela me disse, você saberá do que se trata.
O bruxo fez um aceno com a cabeça e logo ergueu o braço, pegando na empunhadura da espada
que estava a suas costas. A lâmina traçou um arco brilhante sobre sua cabeça. Com passos lentos,
encaminhou-se na direção do grupo.
Civril soltou uma risada horrenda e ameaçadora.
– Até isso ela previu, bruxo. Assim, você receberá a segunda coisa que ela lhe mandou, direto no
meio de seus olhos.
Geralt continuava a avançar. O meio-elfo encostou o rosto no arco da besta. Fez-se um silêncio
sepulcral.
A corda vibrou. O bruxo brandiu a espada. Ouviu-se um prolongado som de metais se chocando. O
projétil desviou sua trajetória voando para cima e, rodopiando, bateu secamente num telhado, caindo
com estrondo dentro de uma das calhas. O bruxo avançou mais.
– Ele rebateu… – gemeu Quinzena. – Rebateu em pleno voo…
– Agrupem-se! – ordenou Civril.
Sibilaram as espadas tiradas das bainhas. O grupo se uniu ombro a ombro, com as lâminas
erguidas.
Geralt apressou o passo; seu andar, surpreendentemente fluido e suave, se transformou numa
corrida, não bem na direção do cerrado círculo de lâminas pontudas, mas em volta dele, cercando-o
numa espiral cada vez mais estreita.
Tavik não aguentou. Foi o primeiro a se atirar ao combate, logo seguido pelos dois gêmeos.
– Não se dispersem – urrou Civril, perdendo o bruxo de vista. Soltou um palavrão e pulou para um
lado, vendo o grupo se desfazer por completo e correndo sem rumo por entre as barracas.
Tavik foi o primeiro a cair. Estava perseguindo Geralt quando, de repente, o viu passar por ele,
correndo na direção oposta. Tentou frear seu ímpeto, mas, antes que conseguisse erguer a espada, o
bruxo estava a seu lado. Sentiu um forte impacto logo acima do quadril. Virou-se e constatou que caía.
Já de joelhos, olhou espantado para o ferimento e começou a berrar.
Os gêmeos, ao atacarem simultaneamente a negra e borrada figura correndo em sua direção,
esbarraram um no outro e perderam o ritmo. Foi o que bastou. Vyr, quase cortado em dois por um
golpe no peito, inclinou-se para a frente, deu uns passos com a cabeça abaixada e desabou sobre uma
barraca de verduras. Nimir foi golpeado na têmpora, girou sobre si mesmo e caiu pesadamente na
sarjeta.
– Pela esquerda, Quinzena! – berrou Nohorn, correndo em semicírculo a fim de atacar o bruxo por
trás.
Quinzena virou-se rápido, mas não o suficiente. Recebeu um corte na altura da barriga, suportou-o
e se preparou para desferir uma resposta, porém não conseguiu. Geralt foi mais ágil e acertou-o na
cabeça, logo abaixo da orelha. Quinzena endireitou-se, deu quatro passos cambaleantes e caiu sobre
um carrinho cheio de peixes. Com o ímpeto, o carrinho andou para a frente, e o brutamontes de peito
desnudo deslizou sobre o pavimento prateado de escamas.
Civril e Nohorn atacaram simultaneamente, cada um de um lado: o meio-elfo com um impetuoso
golpe cortante de cima para baixo, e Nohorn, agachado, com uma estocada horizontal. Ambos os
golpes foram aparados, e os sons de dois choques metálicos juntaram-se num só. Civril pulou para o
lado e tropeçou, mas conseguiu permanecer de pé ao se apoiar na estrutura de madeira de uma das barracas. Nohorn lançou-se a sua frente para protegê-lo, mantendo a espada erguida. Aparou um golpe
desferido com tal força que foi atirado para trás e teve de se apoiar em um dos joelhos. Erguendo-se
rapidamente, tentou aparar outro golpe, porém dessa vez foi lento demais; a lâmina do bruxo acertou o
outro lado de seu rosto, deixando nele uma marca simétrica à cicatriz anterior.
Civril desvencilhou-se da barraca e saltou por cima de Nohorn, enquanto este caía e, girando o
corpo, desferia um golpe segurando a espada com as duas mãos. Errou o alvo e se afastou
imediatamente. Não sentiu o impacto; seus joelhos se dobraram no exato momento em que, após uma
parada, preparava-se para um novo ataque. A espada caiu-lhe da mão decepada à altura do cotovelo.
Tentou erguer-se, mas não conseguiu. Deixou que a cabeça lhe caísse sobre os joelhos e morreu nessa
posição, numa poça vermelha entre repolhos, rosquinhas e peixes.
Renfri adentrou a praça central. Aproximava-se lentamente, com leves passos felinos, desviandose de carrinhos e barracas. A multidão, que, aglomerada nas ruas laterais, zumbia como abelhas numa
colmeia, calou-se repentinamente. Geralt permaneceu imóvel, segurando a espada firmemente com a
mão abaixada. A jovem chegou a dez passos de distância dele e parou. O bruxo notou que ela vestia
uma curta cota de malha por baixo do colete.
– Você fez sua escolha – constatou Renfri. – Está absolutamente certo de que foi a mais adequada?
– Não haverá aqui um segundo Tridam – afirmou Geralt, com evidente esforço.
– Nem teria havido. Stregobor riu na minha cara. Falou que eu poderia matar todos os habitantes
de Blaviken e os dos vilarejos vizinhos, que ele não sairia da torre nem permitiria que nenhuma
pessoa, incluindo você, entrasse nela. Por que está olhando para mim desse jeito? Sim, enganei você.
Se passei a vida toda enganando as pessoas por necessidade, por que faria uma exceção agora?
– Vá embora, Renfri.
A jovem deu uma risada.
– Não, Geralt – respondeu, sacando a espada com rapidez e destreza.
– Renfri…
– Não, Geralt. Você fez sua escolha. Agora é a vez de eu fazer a minha.
Com um gesto violento, arrancou a saia dos quadris e girou-a no ar, fazendo-a enrolar no antebraço
esquerdo. O bruxo recuou, ergueu o braço e fez o Sinal. Renfri voltou a rir.
– Não perca seu tempo, Cabelos-Brancos. Isso não tem efeito sobre mim. Somente a espada.
– Renfri, vá embora – repetiu Geralt. – Se cruzarmos os gumes, eu… não poderei… mais…
– Estou ciente disso – respondeu ela. – Mas o problema é que eu também não posso agir de outra
maneira. Você e eu somos o que somos.
Dito isso, avançou em sua direção segurando a espada com a mão direita e arrastando a saia com o
braço esquerdo. Geralt recuou dois passos.
Renfri lançou-se ao ataque. Agitou o braço esquerdo; a saia rodopiou no ar e, por trás dela, brilhou
a lâmina da espada, num golpe curto e contido. Geralt esquivou-se; o tecido nem chegou a tocá-lo, e a
lâmina da jovem deslizou obliquamente sobre a dele. Respondeu instintivamente ao golpe, girando a
espada como se fosse a pá de um moinho com o intuito de fazer Renfri soltar a arma. Foi um erro. Ela
afastou a lâmina e, dobrando levemente os joelhos e balançando os quadris, desfechou um golpe
horizontal na direção de seu rosto. O bruxo mal teve tempo para defender-se e fazer uma pirueta,
esquivando-se mais uma vez e pulando para o lado. Renfri atirou-se sobre ele, jogou a saia em seus
olhos e tentou atingir seu rosto. Geralt se defendeu virando-se bem próximo dela, mas a jovem
conhecia o truque. Girou com ele tão perto que sentia sua respiração e conseguiu deslizar o gume da
lâmina em seu peito. A dor foi muito aguda, mas o bruxo não perdeu o ritmo. Virou-se mais uma vez, porém no sentido oposto; deteve a lâmina dirigida a sua têmpora, fez uma finta e contra-atacou. Renfri
deu um pulo para trás e preparou-se para desferir um corte de cima para baixo. Geralt dobrou um dos
joelhos e deu uma estocada com a ponta da espada, atravessando a coxa exposta e a virilha da jovem.
Renfri não emitiu nem um som sequer. Caindo sobre um dos joelhos, largou a espada e segurou
com as mãos a coxa perfurada. Por entre seus dedos escorreu um brilhante regato de sangue, caindo no
cinturão decorado, nas botas de pele de alce e no imundo pavimento. A multidão, refugiada nas
ruazinhas, ondulou e gritou.
Geralt guardou a espada.
– Não vá embora… – gemeu Renfri, toda encolhida.
O bruxo não respondeu.
– Estou com… frio…
Geralt nada disse. A jovem voltou a gemer, encolhendo-se ainda mais. O sangue, agora jorrando
com mais força, preenchia os espaços entre as pedras do calçamento.
– Geralt… abrace-me…
O bruxo permaneceu calado.
Renfri virou a cabeça e ficou imóvel, com o lado esquerdo da face encostado numa pedra. Um fino
punhal, até então escondido sob seu corpo, escapou dos dedos inertes.
Ao cabo de um momento que pareceu durar uma eternidade, o bruxo ergueu a cabeça ao ouvir o
som do cajado de Stregobor batendo nas pedras. O feiticeiro aproximava-se rapidamente, desviando-se
dos cadáveres pelo caminho.
– Mas que carnificina! – exclamou, ofegante. – Vi tudo, Geralt. Vi tudo em minha bola de
cristal…
Aproximou-se do corpo de Renfri e abaixou-se sobre ele. Vestido com seu longo traje negro e
apoiado em seu cajado, tinha o ar muito envelhecido.
– Inacreditável – falou, meneando a cabeça. – A Picança está morta.
Geralt não respondeu.
– Muito bem, Geralt. – O feiticeiro endireitou-se. – Pegue um carrinho. Vamos levá-la para a torre.
É preciso fazer uma autópsia.
Olhou para o bruxo e, sem esperar resposta, voltou a se inclinar sobre o corpo.
Alguém que Geralt não conhecia sacou rapidamente a espada da bainha.
– Toque em um só cabelo dela, feiticeiro – disse aquele que o bruxo não conhecia –, encoste a mão
nela e sua cabeça voará ao solo.
– O que está acontecendo com você, Geralt? Enlouqueceu? Você está ferido e em choque! Uma
autópsia é o único modo de verificar…
– Não toque nela!
Stregobor, ao ver a lâmina erguida, afastou-se agitando o cajado.
– Muito bem! – gritou. – Que seja como você quer! Mas você nunca saberá! Nunca terá certeza!
Nunca, está me ouvindo, bruxo?
– Suma da minha frente.
– Pois não – respondeu o feiticeiro. – Voltarei para Kovir; não pretendo passar mais um dia sequer
neste buraco. Venha comigo. Não fique aqui, porque essa gente não sabe de nada e somente viu como
você mata. E sua maneira de matar é repugnante. E então, você vem?
Geralt não respondeu nem se dignou de olhar para Stregobor, que deu de ombros e foi embora, batendo ritmicamente seu cajado.
Uma pedra voou da multidão, espatifando-se no chão. Uma segunda passou zunindo sobre o ombro
de Geralt. O bruxo, mantendo-se ereto, ergueu as duas mãos e fez um breve gesto com elas. Da
multidão emanou um murmúrio ameaçador, seguido por mais pedras, mas o Sinal as desviava,
fazendo com que passassem ao largo do alvo defeso por uma invisível armadura oval.
– Basta!! – berrou Caldemeyn. – Parem com isso, seus cagões!
A multidão soltou um murmúrio que soou como ondas do mar numa ressaca, mas as pedras
pararam de voar. O bruxo permanecia imóvel.
O intendente aproximou-se dele.
– É este – falou, apontando com um largo gesto para os corpos espalhados pela praça – o mal
menor que escolheu? Você já fez tudo o que achava necessário?
– Sim – respondeu Geralt, com evidente esforço e não de imediato.
– Seu ferimento é grave?
– Não.
– Então, suma daqui.
– Sim – falou o bruxo, evitando o olhar do intendente e começando a se afastar lentamente, muito
lentamente.
– Geralt.
O bruxo se virou.
– Nunca mais volte aqui – finalizou Caldemeyn. – Nunca mais.
* Picanço: agressiva ave de médio porte, caçadora de pequenos mamíferos, répteis e aves menores, que tem por hábito guardar o
resto das presas, espetando seu corpo em espinhos de árvores e arbustos. (N. do T.)
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