Meu nome é Matt e minha infância não foi normal. Em nenhum sentido. Algo aconteceu com minha família que é quase impossível de se entender. Mas vou dar meu melhor para explicar aqueles cinco anos. Cinco anos a minha vida que foram de puro horror. Cinco anos que passamos com medo. Cinco anos que nunca vamos recuperar.
Meu pai, Spence, não era um homem muito forte, nem fisicamente, nem mentalmente. Era o tipo de pai que deixava a mãe falar por ambos. Bem, não era um pau-mandado, mas geralmente estava contente de ir com a correnteza ao invés de alterá-la. Trabalhava duro e dedicava seu tempo livre à nós, sua família. Fazia questão de que tivéssemos tudo que precisássemos, sua confiança suave sempre sendo a base da nossa família.
Minha mãe, Megan, era a cabeça da casa. Era extrovertida, independente, e extremamente fiel à todos nós. Ela amava o jeito quieto do meu pai, e mesmo quando eu era bem novo, podia ver a química que rolava entre os dois.
Minha irmãzinha, Stephanie, era um ano mais nova que eu. Ela se espelhava em mim e meu pai sempre dizia que era minha responsabilidade cuidar dela. Tentávamos nos dar bem da melhor forma possível, e mesmo que eu dificultasse o lado dela por ser seu irmão, eu a amava.
Nós morávamos em um bairro de classe média, uma família de comercial de margarina. Meu pai trabalhava em um emprego respeitável das 8h às 17h, enquanto minha mãe dava aulas particulares de yoga. Era uma vida boa; organizada e estruturada. Tudo era discutido, considerado e feito pela família. Era um ótimo lar para se crescer.
Mas isso antes dele aparecer.
Isso era antes do novo membro da família.
***
Julho de 1989
Eu estava sentado na mesa esperando meu pai terminar a comida. Era a vez dele cozinhar e meu estômago estava roncando pelo seu frango com alecrim. Minha irmã, Stephanie, estava deitada de barriga para baixo no chão da sala, colorindo. Seus cabelos loiros caiam em cachos sobre seus ombros quando olhou para mim, sorrindo. Ela mostrou o desenho que estava fazendo e eu só acenei com a cabeça, sem me impressionar.
Fez uma cara de desprezo e continuou com seu esboço. Minha mãe entrou na cozinha, tirando o cabelo de seu rosto limpo, tinha acabado de sair do banho.
"Todos já foram?" Meu pai perguntou enquanto olhava o forno.
Minha mãe assentiu, "Sim, Spence, a casa é só nossa de novo. É tão melhor dar as aulas de yoga no porão, muito mais fresco. Estou feliz que conseguimos terminar de construir o porão no inverno. Meus alunos também estão bastante contentes. Está fazendo um dia muito quente lá fora."
"Mãe, você pode, por favor, se sentar para a gente comer?" Implorei, já sentado no meu lugar na mesa. Minha mãe se virou para mim e riu.
"Matt, o menino de seis anos de idade mais faminto do Mississipi. Por que você não pede para o seu pai se apressar? Ele que está cozinhando!"
Encostei a testa na mesa, "Paaaaaaaaaai, eu vou morrer!"
Stephanie olhou para mim lá da sala, "Matt, não seja louco."
"Você que é louca," resmunguei, sem olhar para ela.
"Não-não!" Ela falou, mostrando a língua para mim.
"Tá bom, tá bom," meu pai disse, se virando do forno. Nas mãos segurava uma forma fumegante de frango.
"Venha para mesa, Steph, a comida está pronta!" mandei minha irmã, a visão da carne suculenta fazendo minha boca salivar.
Enquanto ela se levantava e minha mãe ia se sentando ao meu lado, todos nós congelamos quando alguém bateu na porta. Minha mãe e meu pai trocaram olhares confusos. Meu pai colocou o frango na mesa e nos falou para esperarmos um minutinho.
Gemendo, observei meu pai ir até a porta. Ele espiou pelo olho mágico e percebi que estava visivelmente tenso, seu corpo inteiro como uma estátua de mármore.
"Quem é, Spence?" Minha mãe perguntou.
Meu pai se virou para nossa direção, pálido como um fantasma. Seus olhos estavam arregalados e eu podia ver o medo em suas pupilas dilatadas. Ele lambeu os lábios e olhou para Stephanie.
"Spence!" Minha mãe o pressionou, seu rosto se contorcendo de preocupação.
"Não... isso não pode acontecer... não de novo," ouvi meu pai sussurrar, olhando para o nada.
A porta chacoalhou com outra séries de batidas que ecoaram pela casa.
Minha mãe se levantou, sua voz tremida pelo medo contagioso, "Quem é, Spence?! O que está acontecendo?"
"Eu sinto muito," Meu pai murmurou, segurando o estômago, o rosto branco com uma folha de papel, "tenho que deixá-lo entrar."
Antes que qualquer um de nós pudesse falar qualquer coisa, ele se virou e abriu a porta. A luz do sol me cegou momentaneamente e espremi os olhos para ver quem era o visitante não anunciado.
"Oi! Eu sou o Tommy Taffy! É ótimo revê-lo, Spence!"
Observei meu pai recuando lentamente para longe da porta aberta. Um homem entrou na casa e fechou a porta.
Minha mente jovem tentava ver algum sentido no que estava vendo, mas mesmo sento pequeno, sabia que tinha algo errado com aquele visitante.
Ele tinha mais ou menos 1,80, cabelos loiros raspados no estilo militar. Vestia bermudas caqui e uma camiseta branca que dizia "OI!" em uma letra vermelha cartunizada.
Mas não foi isso que chamou minha atenção. Era a sua pele... completamente desprovida de poros, perfeitamente lisa, textura cremosa que quase parecia como um plástico flexível. Seu rosto era de um tom rosa bebê, sua boca um corte alegre de bochecha a bochecha que revelava uma tira branca de dentes... mas não eram dentes. Era uma coluna lisa, sem divisões, como se estivesse usando um protetor bucal. O nariz era apenas uma leve protuberância no centro do rosto, como o de uma boneca, sem narinas.
E seus olhos...
Seus olhos eram piscinas gêmeas de um azul brilhante, reluzindo em seu rosto estranhamente sem imperfeições. Eram arregalados, como se estivesse em estado permanente de surpresa, e se movimentavam rapidamente enquanto olhava o lugar, movimentos brucos.
Seu sorriso se alargou e levantou a mão perfeita para nós que estávamos sentados a mesa, "Oi! Sou o Tommy Taffy! É bom conhecer vocês!"
Percebi que ele não tinha unhas ou defeitos na pele. Sem rugas ou hematomas, nada. Era como se fosse um boneco vivo em tamanho humano que falava.
"Spence," minha mãe resmungou, o reconhecimento daquele ser brotando em seus olhos.
"Vai ficar tudo bem, Megan," meu pai falou, sua voz tremendo, "Vamos ser educados com nosso novo convidado, ok?"
O homem, Tommy, virou a cabeça na direção do meu pai, "Hehehehehehe."
Meu pai deu um passo para trás, levantando as mãos, "Q-quero dizer, nosso novo amigo!"
O sorriso congelado nunca saiu do rosto moldado de Tommy, "Hehehehehe." Não havia humor em sua risada estranha. Parecia mais que estava pigarreando ou imitando muito mal um cacarejar. Era pronunciado de mais, cada silaba bem destacada.
Meu pai forçou um sorriso, "Q-quero di-dizer..." Ele olhou desesperadamente para minha mãe, que não ofereceu nenhuma ajuda, o corpo dela totalmente congelado pelo medo.
"Quero dizer: Conheçam o seu novo pai, crianças!"
Stephanie, que estava perto de nossa mãe, franziu o cenho, "Ele não é nosso papai, você é. E porque ele é tão estranho?!"
"Stephanie!" Minha mãe quase gritou, agarrando os ombros de minha irmã.
Tommy riu, andou e se agachou na frente de Stephanie, "Não é legal fazer piada com as pessoas que são diferentes, não é mesmo?"
Stephanie olhou para os pés e corou.
Tommy bagunçou o cabelo dela, "Tudo bem! Anime-se, menina! Nós vamos nos dar muito bem! Vou ajudar seus pais a te criar! É um grande trabalho ser uma mamãe e um papai! As vezes eles precisam de ajuda!"
Tommy se virou para meus pais, aquele sorriso plástico se alongando em seu rosto, "Eu ajudei as mamães e os papais deles a criá-los! Não é mesmo Spence? Megan?"
Megan puxou Stephanie para longe dele enquanto meu pai assentia com a cabeça nervosamente.
"I-Isso é ver-verdade, crianças, ele ajudou!"
Tommy sorriu e se virou para mim. Eu ainda estava sentado na mesa, observando aquela cena bizarra. Não conseguia entender o que estava acontecendo, nem sabia quem era aquele homem estranho e o que queria conosco. O que ele falava não fazia sentido, mas meus pais pareciam conhecê-lo, então deixei minhas especulações para mim mesmo.
"E você deve ser Matt," Tommy falou, andando em minha direção.
Não olhei para ele, forçando meus olhos a encarar meu prato vazio. De repente, já não sentia mais fome. Podia sentir o homem esquisito ao meu lado, sua presença sobre minha cabeça. Lambi os lábios e senti meu coração acelerar. Eu não gostava deste intruso. Algo nele parecia ser muito perigoso.
Tommy foi para trás de mim, dando risadinhas, suas mãos sobre meus ombros magros, "Ah, parece que temos um tímido aqui. Tudo bem. Vou ajudá-lo com isso," falou para meus pais. Seus dedos cravando em minha pele. Eu me encolhi, mas não soltei um pio.
"Não toque nele," minha mãe sibilou, olhos arregalados.
Tommy olhou para ela, boca esticada, “Hehehehehe.”
Meu pai estendeu as mãos, alarmado, "Hm, não seja tão grosseira, Megan!"
Tommy continuou a olhar para minha mãe que abaixou o olhar nervosamente.
"Você vai ficar para o jantar?" Stephanie perguntou de repente, quebrando o silêncio.
O estranho homem-boneco soltou meus ombros, uma de suas mãos escorregando pela minha bochecha e depois pelos cabelos.
"Ah, sim. Vou ficar aqui por um bom tempo."
***
E foi assim que Tommy Taffy entrou em nossas vidas. Aos seis anos, eu não sabia nada além do que questionar seriamente o que estava acontecendo. Mesmo que meus pais tivessem agido instavelmente quando ele chegou, suas garantias constantes de que era um amigo afastou qualquer dúvida persistente que eu tinha. Quando os dias foram se transformando em semanas, comecei a me acostumar com a presença de Tommy em nossa casa. Meu medo inicial lentamente retrocedeu à apenas uma cautela.
Logo aprendi que Tommy não gostava de companhia. Sempre que minha mãe tinha que dar aulas de Yoga, Tommy puxava-a para um canto e cochichava algo. Eu observava isso em silêncio. Então eu via o rosto de mamãe ficar pálido e depois assentia com a cabeça, cochichando de volta outra coisa. Então Tommy se virava, com aquele sorriso emplastado em seu rosto, subia as escadas e ficava lá em cima até a aula acabar.
Meus pais falaram para mim e para Stephanie que não podíamos contar sobre Tommy para nossos amigos. Fora de casa Tommy não fazia parte de nossas vidas. Não sei porquê, mas nós dois obedecemos essa ordem.
Outra coisa que notei era que Tommy nunca comia. Ele se sentava na mesa conosco, mas nunca participava da refeição. Stephanie uma vez perguntou para ele se ele nunca sentia fome, Tommy apenas sorriu e silenciosamente acariciou seus cabelos.
De noite, ele reunia toda a família na sala de estar e nos dava uma pequena lição de como ser uma pessoa boa. Nossos pais nunca falavam durante essas conversas, só se sentavam lá, assentindo com a cabeça. Tommy nos falava para não fazermos piadas com os outros, para amar nossos amigos e inimigos, e sempre ajudar aqueles que precisam. Falou que era por isso que estava com a gente. Para ajudar nossos pais a nos criar. Que poderíamos conversar com ele se tivéssemos algum problema na escola ou se não soubéssemos como lidar com uma certa situação.
Foi assim por um mês.
E foi aí que minha mãe surtou.
***
Agosto de 1989
Meu pai tinha acabado de chegar do trabalho e eu estava sentado na mesa da cozinha fazendo minhas tarefas escolares. Minha mãe estava fazendo a janta e Stephanie estava praticando a dança que faria em uma apresentação no colégio. Ela ia ser uma bailarina e tinha três semanas para aprender algumas piruetas simples e outros rodopios. Ela estava praticando severamente nos últimos dias, mas não conseguia acertar. Era novinha demais e seu nervosismo estava fazendo-a errar.
Foi aí que Tommy decidiu ajudar.
Ele estava sentado no sofá assistindo-a praticar quando levantou de repente e foi para trás da minha irmã, colocando as mãos delicadamente em seus ombros.
"Deixe-me ajudá-la, querida," murmurou, sua voz carregando uma nota de felicidade. Minha mãe virou-se do fogão para olhar a sala e pude perceber que estava visivelmente tensa. Ela não gostava que Tommy nos tocasse. Apertou a colher de pau que estava segurando até que seus dedos ficassem brancos, observando enquanto Tommy se agachava e cobria o corpo de Stephanie com o dele. Ele pegou os braços dela e posicionou gentilmente na cintura de Stephanie, pressionando seu corpo suavemente contra o de minha irmã.
"Tommy, deixe ela aprender sozinha," Minha mãe disse, sua voz tremendo.
Tommy nem se quer olhou para ela, só continuou a guiar minha irmã. Pude ouvir meu pai descendo as escadas, tinha acabado de trocar as roupas depois de um dia cheio no trabalho.
Tommy estava ajudando minha irmã, e pela primeira vez ela conseguiu fazer a pirueta, seus pézinhos girando enquanto acompanhava o movimento perfeito de circulo. Tommy bateu palmas, depois se curvou e deu um beijo na bochecha de Stephanie.
"Boa menina!"
"NÃO FAÇA ISSO!" Minha mãe guinchou, derrubando a colher no chão, seu rosto completamente desprovido de sangue. Dei um pulo na minha cadeira e engoli a seco. Não entendi porque minha mãe estava tão brava, ele só queria ajudar.
Eu também sabia que, bem lá dentro do meu ser, era uma má ideia gritar com o novo membro da família. Esse era o meu instinto infantil, um aviso gentil que ficava sempre na boca do meu estômago.
Tommy se levantou, “Hehehehehehe.”
Meu pai estava de pé no pé da escada, congelado, sem saber o que fazer.
"Megan, o que houve?" perguntou.
Os olhos de minha mãe não saíram de Tommy, "Spence, não aguento mais. Não posso continuar fingindo que isso está certo. Nós sabemos o que é esse monstro é! Nós sabemos o que ele fez com nossa cidade anos atrás. Eu o quero fora dessa casa."
Os olhos do meu pai quase saltaram da cara, pânico em sua expressão, "Megan!", ele lambeu os lábios, olhando para nós e para ela, para nós e para ela. "Não seja grosseira! Tommy tem nos ajudado muito!"
Minha mãe rangeu os dentes, "Para. Para de fingir que você o quer aqui. Não posso assistir isso acontecer. QUERO ELE FORA DAQUI!"
Vagarosamente, Tommy andou até a cozinha e parou na frente da minha mãe. Ficou olhando para ela, seus olhos azuis perfeitos brilhando como duas luas de cristal.
Sua voz era como seda congelada, "Megan, você poderia vir até o porão comigo? Preciso dar uma palavrinha com você."
Minha mãe deu um passo para trás, "Fique longe de mim. Fique longe da minha família! Você não é mais bem vindo aqui!" Ela olhou desesperadamente para meu pai, "Spence, FAÇA ALGUMA COISA!"
Meu pai levantou as mãos como quem diz que não podia fazer nada. Eu podia perceber que estava aterrorizado. Stephanie estava observando da sala, lábios tremendo, olhos cheios d'água. Senti uma vontade absurda de confortá-la, mas era como se estivesse colado na minha cadeira.
"Vamos lá, Megan, só uma palavrinha."
"Vá se foder," Minha mãe quase cuspiu essas palavras. Eu perdi o ar. Nunca tinha ouvido minha mãe falar um palavrão e isso me deixou cheio de medo.
De repente, Tommy segurou minha mãe pela nuca, o sorriso nunca saindo de seu rosto, e puxou-a em direção da porta do porão.
"Spence FAÇA-O PARAR! ME AJUDE!" Minha mãe gritou, tentando tirar a mão de Tommy de sua nuca, mas sem sucesso.
Tommy lançou um olhar para o meu pai que o deixou congelado.
"E-eu sinto muito, Megan... Nó-nós te-temos que fazer o que ele manda!" Quase chorou. Stephanie chorava muito agora, lágrimas escorrendo por suas bochechas. Me senti enjoado enquanto olhava Tommy abrir a porta e arrastar minha mãe para a escuridão do porão.
A porta se fechou com um estrondo.
Tudo ficou silencioso por alguns minutos... até que os gritos começaram.
Nunca tinha ouvido minha mãe gritar antes... e aquele som me deixou em pedaços. Meu pai correu para a cozinha e me colocou de baixo de um de seus braços e depois Stephanie no outro. Nos guiou para o segundo andar até seu quarto e nos colocou em sua cama. Ficamos lá sentados por horas, nenhum de nós proferiu uma palavra.
Minha mãe continuou a gritar.
Finalmente, muito depois que o sol se pôs, nós ouvimos a porta do porão se abrir.
"Hoje a mamãe vai dormir no porão!" Tommy gritou.
***
Março de 1991
Dois anos haviam se passado. Depois daquela noite, minha mãe nunca mais resistiu ou contrariou Tommy. Quando ela saiu do porão na manhã seguinte ao evento, esperava vê-la coberta de roxos, hematomas e sangue. Mas não havia nenhum machucado visível.
Eu era novo demais para entender o que havia acontecido, e porquê minha mãe agora andava mancando e continuou andando assim até o final de sua vida. Ela não falou com meu pai por um mês e mesmo depois disso só falava o necessário. Notei que meu pai chorou muito durante aqueles dois anos. Eu não fazia ideia do que estava acontecendo com minha família, mas continuei com minha boca fechada e obedecendo as regras.
Ouça o Tommy. Não fale sobre Tommy com os outros.
As coisas ficaram calmas durante esses dois anos. Tommy continuou a nos das as lições de vida e a ser um morador da nossa casa. Ninguém, a não ser os membros da nossa família, sabiam que ele morava conosco. Era o nosso segredo, a estrela negra que pairava sobre nossas cabeças. Aprendi a sorrir na presença de Tommy, assim como minha irmã. Se ele pensava que estávamos felizes, ficava mais relaxado.
Mas naquela noite minha mãe o desafiou... isso mudou algo. A cada dois ou três meses, Tommy se certificava sua autoridade sobre meus pais. Ele os testava, medindo os limites da paciência e nervos deles.
Na maioria das vezes, meu pai e minha mãe se curvavam humildemente a qualquer joguinho sujo que ele jogava. Na maioria das vezes, ele fazia ou dizia algo para Stephanie ou para mim. Algo que sempre me deixava desconfortável. As vezes nos fazia sentar em seu colo e acariciava nossos cabelos. As vezes cantava musicas estranhas sobre amor para minha irmã. As vezes fazia com que tomássemos banho juntos enquanto ele assistia.
Eu sempre tentava manter minha cara de coragem nesses momentos. Stephanie ainda era bem nova, então não se incomodava tanto quanto eu. Era desconfortável e eu sempre olhava para meu pais procurando apoio. Com os rostos pálidos, só assentiam com a cabeça silenciosamente enquanto nós continuávamos a fazer qualquer atividade que ele estivesse mandando.
Foi no começo de 1991 quando o próximo desastre aconteceu com nossa família.
Tommy passou dos limites de novo.
***
Esfreguei meus olhos sonolentos enquanto olhava meu relógio em formato de carro de corrida na parede. Os ponteiros que brilhavam no escuro marcavam duas da manhã. Pude ouvir algo no corredor perto do meu quarto. Parecia alguém chorando.
Onde será que Tommy estava?
Olhei para todos os cantos escuros do meu quarto para ter certeza que ele não estava lá, me observando dormir. Quando tive certeza que não estava, empurrei as cobertas para o lado e pisei suavemente no chão. Saí de fininho do meu quarto e olhei para o breu do corredor.
Pude ver um sombra sentada no chão perto da porta fechada do quarto da minha irmã. Era uma pessoa. Deixei meus olhos se acostumarem e percebi que era meu pai, com as mãos sobre o rosto. Estava soluçando, costas contra a parede.
"Pai?" Sussurrei.
Meu pai olhou para mim e imediatamente fez gestos com a mão dizendo para eu voltar para o meu quarto. Eu só fiquei ali parado. O rosto do meu pai era uma mistura de sangue e hematomas.
"Vá para a cama, Matt, por favor.", resmungou.
Dei um passo hesitante no corredor, "Pai, o que aconteceu com seu rosto? O que está acontecendo? Foi o Tommy?"
Os olhos dele se arregalaram e colocou o dedo sobre a boca enquanto fazia "Shhh". "Não, claro que não! Não diga coisas desse tipo. Tommy é um... ele está ajudando nossa família a ser melhor."
Cheguei mais perto mas congelei enquanto passava a porta do quarto de Stepanhie. Eu podia ouvir um choro abafado. Podia ouvir o medo.
"Pai..." sussurrei, apontando para a porta. "O que há de errado com Steph?"
Meu pai limpou o sangue do canto da boca, olhos lacrimejando, a angustia se esticando por suas feições, "Venha cá, Matt."
Engatinhei até os braços esticados do meu pai enquanto ouvia uma batida forte contra a parede do quarto dela. Dei um pulo e meu pai me abraçou contra seu peito. Pude sentir lágrimas quentes contra minha cabeça.
"Tommy está lá dentro, né?", falei baixinho.
Meu pai fungou, "Sim, filho."
Olhei para o seu rosto ensanguentado, "O que você fez, pai?"
Meu pai tentou sorrir, mas seu rosto não cooperava, "Ele... ele queria fazer algo com sua irmã e eu não gostei. Falei não para ele."
Enquanto ele falava, percebi o choro da minha mãe vindo do quarto deles.
Ele segurou meu rosto com as mãos em conchas. "Nós não podemos dizer não para o Tommy, tá bom? Lembre-se disso."
Minha irmã deu um grito dentro do quarto, um berro agudo e estridente que arrepiou minha alma. Eu apertei o braço de meu pai.
"Por que ele está aqui?" sussurrei, "Por que ele não vai embora?"
Ficou em silêncio por algum tempo e depois aproximou a boca do meu ouvido, "Ouça bem, Matt. Isso é muito importante. Quando você crescer, não tenha filhos. Ele segue as pessoas que tem filhos." Ele rangeu os dentes, mas lágrimas pingando de seus olhos, "Não sabemos quem ele é ou porquê faz isso. Apareceu na nossa cidade quando éramos crianças, assim como você e Steph. Sua mãe e eu morávamos a duas casas de distância. Tommy infestou nosso bairro. Não sei como. Ele estava...em todo o lugar... sempre. Ele estava na minha casa, mas também na casa do outro lado da rua, e também na casa de sua mãe... ao mesmo tempo. Não sei o que ele quer, qual o seu propósito. Simplesmente apareceu um dia. Apareceu e não foi mais embora. Deus sabe que meu pai tentou fazê-lo ir."
"Foi assim que o vovô morreu?" Perguntei. Eu nunca conhecera o vovô, só sabia que havia falecido vários anos antes do meu nascimento.
Meu pai fez que sim com a cabeça, "Sim, Matt. Tommy... Tommy teve que dar uma lição nele. Teve que ensinar uma lição para todo o bairro. E depois disso... depois disso..."
"Porque você simplesmente não... mata ele?" Sussurrei, ainda mais baixo.
Ele continuou com os lábios perto do meu ouvido, sua voz um sussurro quase inaudível. "Nós tentamos. Tentamos de tudo. Queimamos ele, atiramos nele, cortamos em pedaços... mas nada funcionou. Sempre voltava, batendo em nossas portas. E alguém tinha que pagar. Se nós não seguíamos suas regras... alguém...iria... pagar. Tommy era o nosso segredo. Nosso monstro invisível, escondido do mundo externo. Mortes foram encobertas... abusos e hematomas escondidos debaixo do tapete... porque sabíamos... se alguém falasse uma palavra, Tommy faria o PIOR possível para que o desafiasse."
Digeri tudo aquilo da melhor forma que um menino de oito anos conseguiria, e a única coisa que conseguia pensar era, "Quando ele vai embora?"
Meu pai beijou o topo de minha cabeça, "Agora só faltam três anos..."
A porta do quarto abriu repentinamente e meu pai pulou, empurrando-me para longe de seu abraço. Tommy estava parado na escuridão, seu rosto totalmente calmo, exceto por sua respiração ofegante. Seu rosto de plástico me deu muito medo, seus olhos azuis brilhando na escuridão.
Tommy apontou para o quarto de Stephanie e disse, "Essa aí vai dormir feito pedra hoje a noite."
***
Setembro de 1993
Tínhamos mais um ano pela frente. Eu quase podia ver o desespero dos meus pais crescendo a cada dia, implorando para que o calendário virasse suas páginas mais rapidamente. Estávamos quase no fim do pesadelo.
Pensei com frequência naquilo que meu pai havia me dito no corredor. Pensei em tudo que ele deve ter passado quando era criança. Tudo que ele sentiu. Fiquei imaginado a que ponto havia chegado para Tommy ter que assassinar meu avô. Percebi que, apesar de todas as coisas terríveis que estavam acontecendo conosco, era a submissão de meu pai que nos mantinha vivos. Seu silêncio agonizante mantinha a raiva de Tommy ancorada.
Olhando agora, mal posso imaginar a tortura mental que ele teve que aguentar naqueles cinco anos.
Stephanie não falava muito depois daquela noite em Março. Presenciei sua personalidade carismática mudar repentinamente, logo se transformou em uma criança silenciosa que não sorria mais. Não acho que ela tenha entendido o que aconteceu naquela noite, mas provavelmente, enquanto crescia sua mente foi construindo uma parede em volta daquela memória.
Meus pais pareciam estar muito mais tolerantes naquele último ano. Fizeram questão de participar com entusiasmo das lições noturnas de Tommy, e minha mãe tentava desesperadamente que eu e Stephanie regressismos de formas que fizessem Tommy feliz.
Mas não consegui sair ileso.
Tommy fez questão de deixar uma marca em cada membro de nossa família.
***
Eu estava no meu quarto com a porta fechada. Era quase hora da janta e todos estavam no andar debaixo. Pude ouvir Tommy rindo na sala de estar.
Olhei para a revista que um dos meus colegas tinha e emprestado. Era uma Playboy. Nós tínhamos olhado as páginas na escola, rindo e cochichando sobre as mulheres nuas que estavam nas fotos. Eu nunca havia visto nada desse tipo. Foi meu primeiro contato com aquele mundo. Fazia meu coração acelerar e eu gostava da sensação estranha, porém prazerosa, que pulsava dentro de mim. Perguntei para o meu amigo se eu podia pegar a revista emprestada, e ele deixou.
Me arrumei na cama e fiquei olhando as fotos. Não conseguia acreditar que algumas mulheres deixavam pessoas tirarem fotos delas daquele jeito. Senti um fisgada na minha virilha e virei para outra página. Meu coração estava acelerando e sentia calor, minhas bochechas coradas.
Eu estava na última página quando ouvi um barulho vindo da porta.
"O que você tem aí, Matt?"
Levantei minha cabeça rapidamente, dando um pulo, a revista caindo no chão. Tommy estava me observando perto da porta. Eu não havia ouvido ele abrindo-a.
"Na-nada," murmurei, pegando a Playboy do chão e coloquei debaixo do travesseiro.
Tommy andou em minha direção, “Hehehehehehe.”
"Nã-não ouvi vo-você entrnado," murmurei de novo, corando.
Tommy colocou a mão de baixo do meu travesseiro e pegou a revista, "Não é legal mentir. Já te falei isso. Por que está mentindo para mim, Matt?"
Engoli seco, meu coração se debatendo contra minha caixa torácica, " Des-desculpa. Eu estava... Eu estou..." Olhei para o lado miseravelmente enquanto Tommy olhava as páginas.
Olhou para mim, "Você gosta disso?"
Sabia que não podia mentir para ele de novo. Assenti com a cabeça, meu rosto vermelho, olhando para o chão.
Tommy sorriu e se sentou na cama do meu lado, colocando uma de suas mãos na minha coxa, "Essas fotos te fazer se sentir... bem?"
Não olhei para ele, mas fiz que sim com a cabeça novamente.
De repente, Tommy escorregou a mão até a minha virilha e apertou gentilmente, "Faz o seu pênis se sentir bem, Matt?"
Dei um pulo, seu toque tinha me assustado. Ele recolheu a mão e riu, tua tira de não-dentes brilhando.
Tommy colocou a revista de lado e fechou as mãos em concha em volta do meu rosto, "Você sabe se masturbar, Matt? Seu pai já te ensinou como é?"
Minha respiração estava curta e ofegante, suas mãos lisas e geladas contra o meu rosto. Não fazia ideia sobre o que ele estava falando, não sabia qual resposta ele gostaria de ouvir. Apenas fiquei o encarando desesperadamente.
Tommy suspirou, "Provavelmente seja melhor que ele não tenha ensinado. É uma conversa muito delicada, e sinto que é melhor que eu a tenha com você, não ele. Quantos anos você tem agora... dez?"
Assenti, congelado no mesmo lugar.
Vagarosamente, Tommy colocou a mão de novo na minha virilha, "Quer que eu te mostre como é?"
Me contorci ao seu toque, "Nã-não, obrigada."
Tommy sorriu gentilmente, "É normal ficar com medo. Crescer é assustador. Você será um homem lindo." Ele acariciou minha bochecha com a outra mão, a outra ainda lá. "Você já deu o seu primeiro beijo?"
"To-Tommy, po-por favor..." resmunguei, sentindo as lágrimas se acumulando em meu olhos.
Tommy me forçou a deitar na cama, e agora eu estava olhando para ele debaixo para cima, enquanto ele segurava meu rosto, "Você não precisa ter medo de crescer. Há várias coisas boas que vão acontecer com você. E imagine só... quando você tiver filhos, eu vou ir na sua casa ajudar a criá-los. Vai...ser... divertido."
"Me so-solte," sussurrei, chorando abertamente agora, sentindo sua respiração em meu rosto.
De repente, Tommy se inclinou e me beijou, seu lábios engolindo os meus. Deixei sair um guincho de pânico enquanto sentia sua língua deslizar pela minha boca, o seu apertar ficando cada vez mais forte. A boca dele tinha gosto de frutas podres e carne estragada, algo nojento que preencheu minhas papilas gustativas.
Roçou os lábios mais um pouco nos meus e depois se afastou sorrindo e sussurrando, "Não vai ficar duro para mim?"
Eu só chorei, olhando-o em choque, pânico transbordando dos meus olhos.
Tommy sorriu e sussurrou no meu ouvido, "Não tem problema."
De repente se sentou na cama, me soltando, "Vamos lá, a janta está pronta."
Tremendo, eu enxuguei as lágrimas e o deixei me ajudar a levantar da cama. Eu não sentia fome.
***
Julho de 1994
Enquanto nós nos aproximávamos cada vez mais de Julho, minha família desenvolveu um silêncio otimista, desesperados pela liberdade que faria tudo isso acabar. Para ele ir embora. Minha mãe e meu pai fizeram questão de deixar tudo certo para que ninguém mais recebesse uma lição. Imploraram para nós que fizéssemos tudo que ele pedisse até Julho, para não acontecer outro incidente.
Só no dia 3 de Julho, quando acordamos de manhã, descobrimos que Tommy Taffy tinha ido embora. Cinco anos exatos. Mal podíamos acreditar. Ele simplesmente desapareceu da noite para o dia. Checamos a casa toda, minha mão enxugando as lágrimas de felicidade ao saber que aquele pesadelo finalmente tinha acabado. Depois de conferir todos os cômodos da casa umas três vezes, nos reunimos na sala de estar para nos abraçar e comemorar.
Tommy tinha ido embora.
A sentença tinha terminado.
Meu pai pediu férias do trabalho e fomos para praia por duas semanas. Durante aquelas duas semanas, eu ficava na expectativa de acordar e encontrar Tommy ao lado da minha cama, me olhando, com aquele sorriso horrível no rosto. Mas isso não aconteceu.
Tinha acabado.
Meus pais deram o melhor para tentar reconstruir nossa família, preencher as rachaduras que tinham se formado naqueles longos anos. E eu os amo profundamente por isso. Mas alguns monstros não podem ser esquecidos.
Não faço ideia de o que Tommy Taffy era ou de onde veio. Acho que nunca saberei. Qual era o seu propósito? Por que fez aquelas coisas terríveis conosco? Fico me remoendo, pensando nisso de novo e de novo até que começo a chorar, as memórias são muito doloridas para serem lembradas. Algumas coisas são feitas para serem deixadas mortas no passado.
Mas eu não esqueci o que meu pai me falou naquela noite no corredor, quando ficamos sentados do lado de fora do quarto da minha irmã.
Tenho trinta e três anos agora e continuo sendo solteiro e sem filhos. Não posso arriscar. Não posso arriscar a possibilidade daquele monstro voltar para minha vida. Nunca entendi porquê meus pais decidiram ter filhos. Ambos tinham enfrentado Tommy durante suas infâncias... então porquê ter eu e Stephanie? Talvez eles não acreditassem que ele voltaria.
Mas eu acredito. E estou com muito medo.
Porque, sabe... ontem minha irmã deu a luz a
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