Jimin se sentou ao meu lado no sofá da sala — e eu nem havia percebido quando exatamente ele havia entrado no meu apartamento —, mas eu não prestava muita atenção nele, sinceramente, meus olhos estavam grudados no jogo de console que passava a minha frente. Meus dedos mexiam freneticamente no controle, tentando evitar que o carro de gráfico não batesse nas muretas, enquanto meu personagem fugia de dois carros e um helicóptero da polícia.
— Yoongi… — sua voz mansa e baixa me chamou e eu só pude escutar justamente por ele estar perto de mim.
— O que foi? — perguntei, ainda vidrado no jogo da televisão.
Demorou alguns segundos até que ele soltasse a pérola que tinha que soltar. Para ser honesto, não é algo que se escuta por aí, muito menos o que se pergunta a uma pessoa assexual, mas para tudo tem a primeira vez. Eu, sinceramente, perguntar-me-ia mais vezes essa questão, porque esse tipo de animal — allossexual — é algo que deve ser estudado.
— Como é namorar um allossexual?
Acho que antes que eu responda a Jimin, eu preciso dizer algo que está entalado na minha garganta faz anos: vocês, caros leitores, já devem ter escutado, lido ou visto em algum lugar estúpido da internet — ou fora dela — perguntas do tipo: “como é namorar uma pessoa assexual?”, ou seja, como é estar em um relacionamento com uma pessoa que experiencia atração sexual de forma “diferente”, seja ela rara, pouca ou nula. Claro que, por muitos anos e séculos, a assexualidade era vista como doença mental ou uma falta de libido — vontade de fazer sexo —, mas, de uns tempos para cá, a comunidade assexual vem tentando mudar essa ideia precipitada e dizer ao mundo e sociedade que é apenas mais uma sexualidade normal e que não significa preservação de sexo ou virgindade, muito menos a falta de vontade em fazer sexo. Isso vem mudando e, se você não sabia disso, pois muito bem, está sabendo agora e comece a reproduzir direito o discurso.
Entretanto, mesmo com essas mínimas mudanças — ainda em processo, devo enfatizar —, ainda somos vistos como troféus de luta diária entre os allossexuais, como se fosse impossível ou algo de outro mundo uma pessoa namorar um assexual. Enquanto eu estou junto a Taehyung durante esses três anos, eu já cansei de escutar os amiguinhos allonormativos — nem todos heteros, só para enfatizar — parabenizá-lo por simplesmente — não é brincadeira minha, juro — me namorar… Sim, eu sou assexual e ele não.
É sério, eles apertavam a mão do meu namorado na minha frente e diziam em tom de brincadeira: “corajoso, parabéns.”
No início, era óbvio que Kim sorria e acenava com a cabeça, porque, mesmo que ele ficasse confuso com aquela parabenização estúpida, ele acreditava que não era capaz de ofender alguém, mas, bem, me ofende. Dizer que um allossexual é corajoso por namorar um assexual seria a mesma coisa que parabenizar uma pessoa sem deficiência a namorar outra com deficiência.
Não faz sentido, é ofensivo.
Depois que eu mostrei ao meu namorado que eu não gostava daquela merda — e isso porque era uma entre várias coisas imbecis e allonormativas que eu sabia que perguntavam e faziam contra Taehyung por me namorar, mas que existiam outras —, ele passou a encarar os amigos e até mesmo cortou algumas amizades. Eu não pedi por aquilo, afinal eram colegas e pessoas próximas a ele, eu nunca seria capaz de exigir tal coisa, mas ele decidiu assim, e, quando ele coloca alguma coisa na cabeça, olha, nem se eu abrisse o crânio dele seria capaz de tirar aquela ideia.
Talvez eu tenha me perdido um pouco no raciocínio, mas, voltando para o Jimin, eu resolvi o responder da melhor e mais irônica forma possível que eu consegui pensar naquele momento, tentando tirar do fundo da minha cachola oca como uma pessoa allossexual responderia aquele tipo de pergunta escrota.
— Sabe, Jimin — Comecei. Pausei o jogo, deixei o controle de lado e virei-me no sofá para olhá-lo nos olhos —, é muito estranho para mim namorar um allossexual… — Cruzei a minha perna direita sobre a esquerda e pousei minhas mãos sobre minhas coxas, queria parecer sério. — Porque saber que Taehyung sente atração sexual é um negócio muito novo para mim, mas que devo respeitar, certo? — Vi Park desviar as suas íris de mim e segurar o riso. — Allo também é gente, eu acho.
Jimin foi um amigo meu que conheci via internet e que acabou por se mudar para Daegu a fim de continuar os estudos que havia parado alguns anos atrás. Ele, dentre várias camadas da assexualidade e como a expressamos, é assexual estrito, ou seja, ele não sente atração sexual por ninguém, mas óbvio — e ressaltando — que isso não significa que ele não se interesse por sexo… Mesmo que ele realmente não o faça, porém sempre bom lembrar que uma coisa não liga a outra.
Acho que a pergunta dele foi realmente séria, para ser honesto, porque sei que ele já havia se apaixonado e já quis se relacionar romanticamente com algumas pessoas, mas nunca havia de fato feito, já que a insegurança sempre foi maior em si do que a própria vontade de ser feliz.
Eu mando todo mundo ir se foder e chupar a minha rola ao invés de falar merda por aí, mas tenho sempre em mente que nem todo mundo é desse jeito e comentários que eu tenho escutado durante esses anos enquanto estive com Taehyung poderiam abalar demais Park, algo que eu realmente não desejo a ninguém.
Claro que não existe “estereótipo assexual” — levando em conta o comportamento —, além do doente mental e virgem mal-amado, ou seja, eu posso andar pelas ruas, entrar em lugares e falar com as pessoas sem que elas percebam que eu sou assexual — creio eu que a mesma coisa ocorre com outros LGBTs que são heteronormativos e cis-passáveis —, então sinceramente nunca sofri agressão verbal, moral ou física na rua justamente e unicamente por conta da minha sexualidade, entretanto, o preconceito pode vir de diversas formas, incluindo a taxação de que sou traumatizado sexualmente e preciso de terapia urgente.
Eu, literalmente, já escutei “eu sinto muito” quando eu falei que era assexual, e não foi nem brincadeira da pessoa, eu realmente fui visto como um doente. Dói muito ter que passar por isso, e não é uma vez, são várias vezes, por isso eu tenho medo, e até mesmo vergonha, de falar abertamente sobre minha assexualidade, seja na internet ou fora dela.
Quando perguntam minha orientação sexual, eu penso umas quinze vezes antes de dizer que sou assexual, fico me questionando se vou escutar pela milésima vez as mesmas piadas de mal gosto ou as mesmas perguntas clichês e infelizes de sempre. Na maioria das vezes, eu estou certo sobre isso, as pessoas realmente nem me surpreendem mais.
Porém, além dessa vergonha, eu também tenho medo de sofrer agressão depois que eu afirmo que sou assexual. Eu sempre imagino que vá sair alguém de algum lugar e dizer que sou assim porque ninguém despertou nada em mim ainda, que eu não encontrei alguém certo ainda, que eu não tive sexo com a pessoa certa ainda. Tenho medo de alguém tentar me “consertar” da pior maneira possível — na verdade, o fato de ter uma pessoa que quer te “consertar” já é por si só algo horrível de se fazer e até mesmo de se dizer, mas o “pior” veio em seguida para completar, dizendo que, sim, tenho pavor de alguém me forçar a fazer algo. Isso, infelizmente, já aconteceu com muitos assexuais por aí.
Eu sou assexual, não preciso de conserto, não sou doente, muito menos traumatizado sexualmente. Assexualidade tem a ver com a forma como experienciamos a atração sexual, nada além disso. E, sim, fazemos parte da comunidade LGBTQI queira você ou não.
— Então você acha que allossexuais têm cura? — Jimin me olhou de lado e eu acabei sorrindo quando eu o vi segurar mais o riso.
— Infelizmente ainda precisa de muitos estudos para entender essa espécie — respondi e a gente caiu na gargalhada.
Piadas entre aces¹ sempre envolvem bolo e falar mal allo, e sempre é engraçado para nós dois.
Para falar a verdade, eu e Taehyung nunca tivemos problemas diretamente por conta disso. Desde o momento que ele me chamou para sair, eu já deixava claro em todas as minhas redes sociais que eu era ace, bastava ele aceitar isso ou foda-se, arranjasse outro. Ele diz que nunca se importou com isso, sequer passou na cabeça dele perder o interesse em mim por conta disso. Claro que ele foi o primeiro allo que falou aquilo, pelo menos o primeiro que eu tive a noção que existia — eu realmente acreditava que era mito. Kim nunca foi allonormativo, ou seja, não enfiava sexo em tudo e todos, não ligava para quem fazia sexo e quem não, ele era e é muito foda-se para isso.
Uma vez ele me disse que, no ensino médio, todos os seus amigos estavam loucos para fazer sexo, para conhecer alguém capaz de tirar a virgindade deles, e qualquer um que fosse ainda virgem na sala deles era zoado até o cu fazer bico². Ele disse que perdeu o cabaço por pura pressão, como também acredita que mais da metade de sala tenha feito o mesmo por conta disso.
É incrível como os próprios allossexuais criam e desfrutam da allonormatividade, ao mesmo tempo que a sociedade coloca a perda da virgindade e o ato sexual lá no topo da casa do caralho, e depois sofrem em cima disso.
Claro que a diferença unicamente entre allossexualidade — que é onde encontramos a heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade e demais — e assexualidade é e sempre será a forma como os dois grupos vivem a atração sexual. Nada além disso. E ser allonormativo não vem somente de pessoas allo, como heteronormatividade ou cisnormatividade não vem somente de pessoas completamente fora da comunidade LGBTQI.
Descobrir-se assexual também é um trabalho árduo, porque crescemos acreditando que somente existem as sexualidades hetero, homo e bi, o resto foda-se, então passamos a vida toda nos forçando dentro da allossexualidade, fingindo interesse, atração, mas sabendo que, no fundo, somos diferentes e ficamos nos perguntando o que tem de errado, o porquê somos daquele jeito ou do porquê sermos “atrasados”.
Agora mudando de assunto, porque eu sou uma pessoa muito raivosa e preciso falar de vários assuntos ao mesmo tempo: dentre os espectros da assexualidade, eu sou graysexual — uma pessoa assexual que sente atração sexual raramente —, mas também há outros termos, então vamos lá:
A assexualidade é uma comunidade que adere várias classificações e são muito abrangentes, e algumas delas são ace estrito, gray, fluído, mir etc. Dentro de “gray”, há a demissexualidade e outras; é uma lista imensa. Parece estranho olhando assim, mas depois você larga o foda-se, porque lembra que não é a sua vida.
Há assexuais que se classificam, mas há outros que não e foda-se também, quem liga?
Não, eu não sinto atração sexual pelo meu próprio namorado, mas isso não é uma ofensa quando claramente ele escolheu e concordou em namorar com uma pessoa assexual, então ele não liga e sabia desde o começo qual era minha sexualidade.
E só para não saciar a curiosidade allo de vocês — já que eu nunca vi uma raça se preocupar tanto com a vida sexual alheia como vocês fazem — eu não vou falar se a gente transa ou não, porque foda-se também, vão cuidar da vida de vocês.
— Eu comecei a conversar com uma pessoa recentemente… — Jimin continuou a nossa conversa. Abaixou a cabeça e ficou brincando com as luvas de lã sobre suas mãos pequenas; fora do apartamento, devia estar um gelo, principalmente por estar nevando. — Ela é allo e isso me preocupa. — Soltou uma risada seca. — Tenho medo de ser rejeitado.
— Você sabe o que eu vou te falar…
— “Assuma que é ace antes de se apaixonar para a decepção não ser tão grande.” — Ele repetiu a minha frase e eu fiquei surpreso por ele saber já de cor. Eu devo encher muito o saco dele com essa porra. — E eu sei, vou falar, mas sei lá… Cansado das pessoas perderem o interesse em mim por causa dessa merda. — Sua voz amargurada fez meu coração quebrar em mil pedacinhos e perceber que ele estava quase chorando fez com que meus olhos começassem a arder involuntariamente.
— Fala agora, eu ‘tô aqui contigo — falei e levei minha destra até a sua coberta pela luva, com isso, Jimin levantou a cabeça e me olhou; seus olhos de pálpebras caídas estavam banhados em lágrimas salgadas. Só queria segurar meu melhor amigo no colo e proteger do restante do mundo.
Ele assentiu e pegou seu celular do bolso do sobretudo preto que usava, então tirou as luvas — que atrapalhavam o touch — e passou a digitar rápido uma mensagem… Na verdade, foi um texto enorme, tenho pena da pessoa.
— Qual é o nome da pessoa? — perguntei curioso e ele, sem tirar os olhos da tela de brilho baixo, respondeu-me:
— Alana, é estrangeira.
— É uma mulher? — Ok, posso não ser heteronormativo ou allonormativo, mas talvez eu seja um pouco cisnormativo, quero colocar gênero em tudo.
— Não-binária alinhada ao gênero feminino, acho que demigarota³.
— Adoro o fato de alguns não-binários serem tão específicos às vezes — falei brincando e ele riu baixo. — Ela se importa de ser chamada como mulher ou coisa do tipo?
— Não, já perguntei a ela, porque não queria cometer o mesmo erro que fiz com Jeon. — A treta aconteceu porque ele chamou Kook de “garoto”, enfatizando também que ele não gosta de ser chamado de “garota”; parece bobo, mas para ele não é e eu e Jimin, como cis, calamos a boca e passamos a respeitar, óbvio.
Enfim, escutei a mensagem enviar e não demorou muito para a pessoa começar a digitar. Naqueles poucos minutos esperando a resposta, eu pensei que Jimin fosse ter um ataque e nem estou brincando. Ele começou a tirar a roupa de frio, porque estava suando, depois eu jurava que ele fosse desmaiar de pressão baixa, ou qualquer coisa do tipo. Isso tudo em, literalmente, um curto período de tempo.
— Meu deus, ela me respondeu — falou incrédulo e eu meti logo a minha fuça para ver a mensagem, então começamos a ler em silêncio.
Assim como o emocionado do meu amigo, parecia que Alana era igualmente assim, porque, puta que pariu, olha o tamanho do texto que ela mandou.
Eu estava imaginando que seria uma rejeição. Claro que eu não estava colocando praga no futuro relacionamento dos dois, mas sei lá, prefiro pensar negativamente às vezes para evitar que o meu ódio pelo mundo cresça mais.
Bem, depois de quinze horas lendo a mensagem — o que realmente só levou alguns minutos —, vou resumir: ela falou que estava tudo bem entre eles e que a assexualidade do Jimin não era e nunca seria problema para ela. Da mesma forma como ele a respeita quanto não-binária, ela também respeitaria sua orientação sexual. Nada para se bater palma, porque não fizeram mais do que a obrigação, porém mesmo assim eu fiquei imensamente feliz por Jimin, por Alana e pelo futuro relacionamento dos dois.
Park me abraçou na hora e quase caímos do sofá com aquilo, mas estávamos igualmente felizes, principalmente ele, é óbvio.
Outro mito envolvendo assexuais é que não somos capazes de nos apaixonar ou de experienciar o amor romântico, ou que não temos necessidade em entrar em um relacionamento amoroso, mas existem muitos por aí que são igualmente abertos a se envolver com outro alguém quanto qualquer allo. Nossa falta ou rara atração sexual não atrapalha em nada.
Claro que existem os arromânticos, mas isso é assunto para outro dia.
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